sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Estranhos em terras estranhas

Brasileiro elogiado por argentinos é tão raro que vale a pena reproduzir a opinião manifestada no site www.axxon.com.ar, referência latino-americana sobre literatura fantástica: "Carlos Orsi Martinho es periodista y, probablemente, el mayor autor del género de terror en lengua portuguesa". O comentário se deu porque um conto daquele autor foi publicado lá, "Ya no" (tradução de "Não mais") que flerta com a possibilidade de o Brasil continuar a ser uma monarquia por influência de uma substância misteriosa. O reconhecimento do personagem em questão não veio só da parte de nossos vizinhos do Sul. Nos EUA, também já apostaram no talento dele, quando o selecionaram para participar de Rehearsals for oblivion (algo como ensaios para o esquecimento), coletânea em tributo a Robert W. Chambers. Pouco conhecido no Brasil, mas considerado forte influência de H.P. Lovecraft, o americano serviu de inspiração para os participantes do livro, todos eles dos EUA ou da Inglaterra, sendo o brasileiro o único do projeto a não ter o inglês como primeiro idioma. Ele, que já podia ser considerado sucesso de crítica entre argentinos, agradou também ao público americano. Seu conto "The machine in yellow" - referência a "The king in yellow", peça teatral fictícia sempre citada nos contos de Chambers e fonte da idéia original para o igualmente fictício Necronomicon lovecraftiano -, ambientado durante a última ditadura brasileira, é o mais bem cotado entre os comentários publicados por leitores no site www.amazon.com

Sim, Carlos Orsi Martinho - ou, simplemente, Carlos Orsi, como prefere assinar os textos ficcionais - é jornalista especializado em divulgação científica, nasceu em Jundiaí, interior de São Paulo, e pode ser considerado um dos grandes escritores de nossa língua de histórias de terror. Mas não só isso, ele é também um dos maiores autores de sua geração quando o assunto é a prima-irmã do gênero: a ficção científica. Orsi estreou profissionalmente como ficcionista aos 21 anos com o conto "Aprendizado" lançado em uma das últimas edições da Isaac Asimov Magazine, publicação que a editora Record trouxe ao Brasil bem no início da década de 1990. Desde então, faz 15 anos que aproveita as chances que lhe aparecem ou que ele mesmo cria. Já publicou contos e novelas de FC e horror em praticamente todos os espaços disponíveis no país, desde fanzines como o tradicional Scarium, até a seção de ficção da revista Pesquisa Fapesp, passando pelas coletâneas de diversos autores lançadas pela antiga editora Ano-Luz - da qual ele foi um dos sócios -, como Phantastica brasiliana (onde saiu originalmente "Não mais") e Intempol. Há ainda os livros solo Medo, mistério e morte, impresso pela Didtática Paulista, em 1996, e O mal de um homem, da já citada Ano-Luz, publicado quatro anos depois.

Porém, o melhor ponto de partida talvez seja uma outra obra com material mais atualizado do jundiaiense. Tempos de fúria - Contos de aventura e terror é o nome do livro publicado em 2005 com o selo da coleção Novos talentos da literatura brasileira na qual escritores dividem despesas com a editora Novo Século. Os seis contos da coletânea são uma boa amostra de um autor que amadureceu em estilo e em influências, deixando um pouco de lado a presença quase sufocante exercida por Lovecraft nos seus primeiros textos, a exemplo, de entre outros, "Sob o signo de Xoth" (presente no livro Outras copas, outros mundos). Neste seu trabalho mais recente, o escritor explorou novas fronteiras como fica claro já pelos autores mencionados na página de agradecimentos; uma eclética lista formada por gente do nível do brasileiro Monteiro Lobato, do argentino Jorge Luis Borges e do americano Robert E. Howard. Não apenas as influências variam, também são variados elementos misturados nas 160 páginas de Tempos de fúria.

Os textos que abrem e fecham o livro, "Estes 15 minutos", com 13 páginas, e "A aventura da criança perdida", com 11, são os mais curtos e exemplificam tal diversidade. O primeiro está mais para o realismo fantástico, com a história de um traficante pé-de-chinelo no Rio de Janeiro. Em uma viagem, entre os místicos do Nepal, o personagem conhecido como magro fez uma descoberta capaz de mudar sua carreira. Ele ficou sabendo que a realidade como a conhecemos não é o fluxo linear de acontecimentos que aparenta - a cada 15 minutos, um universo novo ocupa o lugar do antigo, são pequenos flashes que dão a ilusão de continuidade num eterno liga e desliga. Uma anologia possível, é Festim diabólico, filme clássico de Alfred Hitchcock. No longa do diretor inglês, somos convencidos de que a trama foi rodada em tempo real, um plano sequência com a duração do filme. Na verdade, por questões técnicas, houve a necessidade de se filmar cenas de, no máximo, 15 ou 20 minutos. Foi na montagem que ocorreu a mágica capaz de nos enganar. Votando ao conto: magro conseguiu um truque para burlar a montagem que algum diretor invisível executa em nosso universo e faz planos para tentar levar vantagem com isso. No final, descobrimos a utilidade que pode haver em uma balinha de hortelã. O único problema do conto é que o autor não se decidiu se deveria escrever o número 15 por extenso ou se deveria usar algarismos.

Trecho: "O mundo, cara, é cheio de remendos. Quando ainda existia vitrola, o que a gente chamava de 'pulos da agulha'. Emendas malfeitas entre os pedaços de 15 minutos. Costuras ruins. Merda, tá entendendo? Como diziam os romanos, Xíti rápens".

Já o outro curta-metragem de Orsi, o que encerra o livro, tem ainda mais ingredientes. "A aventura da criança perdida" mistura elementos de space opera - aquele subgênero com cenários interplanetários cujas principais referências são Guerra nas estrelas e Jornada nas estrelas -, FC hard - no qual escritores buscam trabalhar conceitos das ciências exatas sendo o mais precisos possíveis - e histórias de detetive à Sherlock Holmes. Na ambientação criada pelo paulista, teremos um futuro em que agências de segurança oficais são formadas por grupos nada recomendáveis, tais como mafiosos italianos e guerreiros islâmicos, competindo por contratos com todo tipo de jogo sujo. Outro aspecto bizarro deste mundo é a mutação que ocorre no nome das pessoas: Ângyla e Edowardo são exemplos, sendo que este último se trata da criança do título. O local do desaparecimento é uma interessante especulação do autor, uma plataforma espacial que serve para o atraque e o lançamento de naves. O encarregado para resolver o impasse criado com o sumiço do pequeno Edowardo é o narrador Fersen Quartelmar, que para resolver o caso não precisa nem abandonar seu escritório, um asteróide com meio quilômetro de comprimento. Bastam algum conhecimento de física e malandragem para se virar com o jogo de interesses que chama a atenção de gente perigosa.

Trecho: "O seqüestro e, mais do que ele, a concorrência aberta entre as empreiteiras havia colocado todo o sistema Terra-Lua e respectivas estruturas orbitais em polvorosa. Não havia criminoso ou vagabundo livre que não tivesse o braço ou outro apêndice torcido, quebrado ou chutado; puta que não fosse subornada ou drogada; preso que não fosse interrogado sob rede neural ou mesmo torturado. Como o moleque não reaparecia, ficou claro que nada disso estava dando resultado".

Voltando à seqüência original dos contos, já que todos os outros se encaixam na categoria média-metragem - ou seja, textos que apresentam por volta de 30 páginas -, temos um dos pontos altos de Tempos de fúria: "Questão de sobrevivência". Seus estranhos personagens e cenário lembram um tanto as melhores obras do movimento cyberpunk, como Piratas de dados, de Bruce Sterling. A diferença é que, na criação do brasileiro, o alvo da pirataria é algo mais tangível que bytes. No elaborado pano de fundo da história, vemos São Paulo em um futuro tão apocalíptico quanto verossímil. Na capital, acompanhamos as reflexões morais de Zé Mateus, um dos líderes do Campo Fidel, dito o maior acampamento urbano do Ocidente e que ocupa a maior parte do centro histórico da cidade. Em outro ponto do Estado, a ação é comandada por Pedro Minanhanga (Diabo-feito-Homem, segundo o autor), empenhado em capturar uma preciosa carga. Ele e seus companheiros agem no meio de uma favela transformada em área contaminada após um bombardeio, autorizado pelo governo. O resultado foi o surgimento de um local tão inóspito em que basta se respirar o ar sem proteção para encurtar drasticamente a perspectiva de vida. Para piorar a situação das pessoas que tentam viver no local, outra intervenção pública - a distribuição de anticoncepcionais na água - só serviu para impedir que mães pudessem amamentar diretamente seus filhos. Leite materno, agora, apenas o processado industrialmente, como o daquele carregamento que atravessa o estado em um caminhão para embarcar no Porto de Santos e ser exportado como mercadoria de luxo.

Com a narrativa dividida entre os pontos de vista dos dois protagonistas, o líder sem-teto com dilemas de consciência e o pragmático agente de campo, o conto segue estruturado em persongens bem construídos vivendo um contexto igualmente bem delineado. Carlos Orsi conseguiu dar uma consistência ao conto que outros autores seriam incapazes de obter em um romance. Aos poucos, os leitores recebem informações históricas daquela realidade, como o fato de ter havido uma guerra nos morros cariocas em 2011; terem ocorrido grandes saques aos supermercados sete anos depois; culminando com um período de repressão marcado pela chuva bioquímica naquela favela, no início da década seguinte. Detalhes das motivações e do grau de comprometimento de cada jogador também vão clareando lentamente até os atos finais. É interessante notar que o autor, apesar de andar no fio da navalha o tempo inteiro, com uma história que poderia cair para o maniqueísmo rasteiro, consegue se livrar das tentações e manter a trama em um grau de complexidade exemplar.

Trecho: "A autoria do epíteto 'Vale da Norte' era incerta - se de inspetores de Direitos Humanos da ONU que tinham visitado o local após os bombardeios, ou se de um locutor de telejornal - mas a expressão pegou. E o conjunto de ruínas, árvores retorcidas e solo venenoso, calcinado, deixou, de uma vez por todas, de ser o 'jardim' que jamais havia sido".

Se "Questão de sobrevivência" é mesmo um dos cumes do livro, "Desígnios da noite" está mais para um vale. O conto tem muitas qualidades, sempre naquele binômio de bons e exóticos personagens e cenários. Em um período de nosso futuro, quando começam experiências de colonização no espaço, o cotidiano na Terra está bastante modificado. Para se resolver pendências jurídicas, as pessoas passaram a dispensar advogados para confiar sua honra a duelistas profissionais, agentes que se enfrentam em pelejas que podem terminar em nocaute ou com a morte de um dos contendores. É o caso do narrador do conto, veterano de duelos e ex-combatente de tropas de elite, conhecido como Marco e que tem uma questão pessoal a resolver. De positivo ainda, há inovações tecnológicas propostas, como tatuagens utilitárias; a apropriação inteligente que o autor faz de uma pseudociência, no caso, astrologia zodiacal; e, claro, o estilo do texto - para quem decora manuais, no quais sempre se condena o uso dos adjetivos, talvez seja um choque a passagem na página 115 na qual são empilhados nove deles para descrever um relacionamento. De fato, são muitos pontos positivos, tantos que, talvez, o problema seja esse mesmo. Mesmo sendo o maior texto do livro, com 34 páginas, o espaço é pouco para tamanha fartura de informações, cenas de ação e de investigação. Caso fosse um plot de uma série, "Desígnios da noite" seria excelente. Como história única e fechada, peca pelo excesso.

Trecho: "Servotatuagens são o tipo de coisa que se espera encontrar em duelistas, atores, acrobatas - e bandidos comuns. Cada pigmento abriga um conjunto de circuitos e nanóides programado para ampliar determinadas perícias físicas, acelerar a transmissão de impulsos nervosos, induzir reflexos".

Os dois outros contos de Tempos de fúria formam o que poderia ser chamado de as crônicas venusianas de Carlos Orsi. O primeiro deles, "Pressão fatal" retoma a mistura de space opera, FC hard e história de detetive, mas com ainda mais eficiência que em "A aventura da criança perdida". Uma morte suspeita ocorre em uma estação espacial em órbita de Vênus, responsável por parte do projeto de terraformização do planeta. A expressão costuma ser mais aplicada a especulações sobre Marte, nosso outro vizinho no Sistema Solar, significando o conjunto de ações necessárias para tornar um ambiente extraterrestre compatível com a vida humana. Curiosamente, quase todos os tripulantes da Eros-III têm nomes franceses - a exceção é o médico chamado Mendes, cuja personalidade irascível lembra a de seu colega McCoy de Jornada nas estrelas. Para investigar a morte, ou o assassinato?, é convocado o inspetor-gendarme Henri Bernardin, um tipo que, pelo sotaque, trejeitos e cuidados com o bigode, lembra muito o detetive mais famoso do staff de Agatha Christie, Hercule Poirot. Exatamente como ocorre com Fersen Quartelmar - que, aliás, se formos compará-lo também aos personagens da Dama do Crime inglesa, estaria mais para o estilo de investigação de Miss Marple -, Bernardin tem nos conhecimentos científicos sua maior vantagem.

Trecho: "A atmosfera do planeta era um turbilhonar constante de cores mutáveis, um entrechoque de nuvens e matizes, salamandras azuis devorando javalis esverdeados que pisoteavam dinossauros vermelhos que comiam salamandras azuis, um caos vagamente harmônico de brilho e textura causado pela combinação do clima feroz do planeta com os dispositivos automáticos de terraformização - sondas, robôs e nanóides - com que a Eros-III bombardeava a superfície venusiana".

Para encerrar, o segundo conto ambientado em Vênus e, para dizer o mínimo, um dos melhores textos de FC já criados por brasileiros. "Planeta dos mortos" começa no clima de um dos grandes clássicos do gênero, Tropas estelares, do americano Robert Heinlein, uma vez que o personagem que narra a trama é um soldado, cujo nome desconhecemos, lotado no segundo Batalhão de Batedores de Florestas, Esquadrão de Caça, equipado para enfrentar qualquer ameaça. A terraformização, iniciada no conto anterior, está completa. O planeta conta com dois continentes, Afrodite e Ishtar, separados pelo Mar de Níobe, e com pelo menos um conjunto de ilhas, o Arquipélago de Têmis. Para ajudar na tarefa, o autor concebeu um mundo em que ocorreu uma formidável descoberta, ou melhor, redescoberta. Carlos Orsi faz novamente uso de um recurso pseudocientífico aqui, no caso, as teorias do psiquiatra Wilhelm Reich sobre o orgônio. Na reinterpretação do brasileiro, os polêmicos estudos do austríaco foram reabilitados no início do século XXII como parte de um novo campo de estudos: a neoquântica. Descobriu-se que existem partículas - bíons - que formam a energia que torna a vida possível. Elas fazem a diferença, "o salto quântico", entre algo apenas orgânico e o que é de fato vivo.

Este é por si mesmo um dos melhores conceitos já trabalhados na ficção científica nacional, tanto que já foi utilizado por outro autor em seu romance de estréia: A mão que cria de Octávio Aragão - não por coincidência, é ele quem assina a apresentação de Tempos de fúria. Orsi vai além, explorando a idéia até as últimas conseqüências, dando uma explicação que soa plausível para um dos maiores fetiches dos filmes B de terror. No meio das divagações dos personagens, há espaço na trama para muitas e ótimas cenas de ação, as quais o autor parece dever a um daqueles escritores citados nos agradecimentos. Afinal, quantas vezes Robert E. Howard fez seus personagens se perguntarem - o cimério Conan à frente - como matar algo que já está morto? A prosa do jundiaiense está em grande forma neste conto, principalmente nas linhas finais. Entre suas qualidades, podemos dizer que Carlos Orsi é um mestre no desfecho das histórias, mas em "Planeta dos mortos" ele se esmerou. O final é lírico. Atroz, mas lírico.

Trecho: "Torsos. Tiros! Cabeças. Tiros! Membros. Não pessoas, mas partes - movendo-se (ou seria a luz?). Bocas sangrentas. Olhos sangrentos. Tiros! Unhas. Órbitas vazias.

Tiros!

Escuridão".

Da leitura da meia dúzia de textos que formam Tempos de fúria - Contos de aventura e terror ficamos com uma impressão inusitada. Afinal não é sempre que encontra um escritor de gênero capaz de trabalhar tão no limite quanto este. Há algo de iconoclasta em todas as histórias, um distanciamento de autocrítica em cada uma delas. Porém, ele não cai nunca nas armadilhas mais fáceis, nas paródias, na carnavalização dos temas. Há desconstrução, mas ao mesmo tempo há também uma disciplina por trás disso tudo, de quem sabe valorizar as particularidades da ficção científica, do terror, do mistério... Isso é raro. As aventuras vividas pelo traficante magro, pelo detetive Fersen Quartelmar, pelos revolucionários Zé Mateus e Pedro Minanhanga, pelo duelista Marco, pelo inspetor-gendarme Henri Bernardin e pelo soldado sem nome acabam sendo uma amostra pequena da produção de um dos mais prolíficos de nossos autores. Porém, como já foi dito, é um bom ponto de partida para os interessados em julgar se críticos argentinos e leitores americanos estão certos a respeito de Carlos Orsi.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Licença para pensar o impensável

Em 1992, quando a edição nacional da Isaac Asimov Magazine publicou em suas concorridas páginas um texto chamado "Aprendizado", estava sendo dada a oportunidade para a estréia de um jovem de 21 anos no ramo de escritor profissional de ficção científica, fantasia & horror. Desde então, em um cálculo aproximado, este autor publicou cerca de meia centena de histórias e conquistou a reputação, até internacional, de ser um dos melhores naquilo que faz. Diretamente de sua cidade natal, Jundiaí a 50 km da capital paulista, onde exerce a profissão de jornalista especializado em divulgação científica, ele relembra aqui os primeiros passos na literatura de gênero; comenta suas influências - incluindo aí o papel exercido por H.P. Lovecraft nos seus textos iniciais -; fala sobre as motivações atuais; e revela qual tipo de trabalho o faz se sentir, a exemplo de certo espião inglês, portador de uma licença especial. Com vocês, Orsi, Carlos Orsi.

Nestes últimos 15 anos, você se tornou um dos autores de FC mais prolíficuos do Brasil. Entre contos e novelas publicados em livros impressos e virtuais, revistas ou fanzines, dentro e fora do país, qual é o tamanho estimado de sua produção ficcional? Quantos prêmios você já recebeu ao longo da carreira? Há alguma chance de um dia vermos tudo isso reunido em um site, por exemplo?


Bom, por partes: o tamanho da obra? Não faço a menor idéia. E, várias trocas de HD depois, nem sei se ainda tenho cópias de tudo. Além disso, há os contos que eu chamo de "mutantes", que vão se transformando a cada publicação - não sei se deveria contar cada encarnação de uma mesma história como um conto independente ou juntar tudo. Fora que meus primeiros contos eram datilografados, não digitados, logo esses só existem, mesmo, nas páginas dos fanzines. Mas, supondo que de 1992 a 2003, mais ou menos, eu tenha escrito uns dez contos por ano, e achado 50% disso digno de publicação, então seriam umas 50 histórias cuja paternidade eu reconheço ou deveria reconhecer... Prêmios: tapìraì (do fanzine Megalon), Nova e um segundo lugar no Argos. Além do Prêmio Turno da Noite, de Portugal. Juntar tudo? Não sei. Há muitas histórias que, simplesmente, não me interessam mais. E nunca tive um site pessoal. Talvez tenha um dia - mas não creio que vá usá-lo como uma espécie de omnibus, não.

Você pode fazer um retrospecto de sua formação como autor? Que tipo de exercícios literários você fazia nos primeiros anos de atividade? Participou de oficinas ou foi mais em base autodidata mesmo? Como foi sua preparação antes de publicar o primeiro texto e como é seu cotidiano agora?

Publiquei meus primeiros textos ficcionais, mais puxados para a paródia e o humor escrachado, num fanzine, Anarquia, que saiu em três números aqui em Jundiaí, por volta de 1984-85. Era um fanzine meio político, animado pelo fim da ditadura, etc. Naquele tempo eu usava camiseta de Che Guevara. O zine gerou um convite para colaborar com o suplemento dominical do Jornal de Jundiaí, o que fiz, creio, de 1985 a 1990, mais ou menos. Em 87 fiz uma oficina literária com João Silvério Trevisan, no gabinete de Leitura Rui Barbosa, um clube-biblioteca aqui da cidade.

Não me lembro, realmente, de um dia ter tido alguma rotina específica para a preparação do texto. Acho que a coisa sempre foi constrangida pelos limites tecnológicos - no tempo da máquina de escrever, minha oportunidade de revisão era a fita corretora e/ou rasgar tudo e começar de novo. Hoje, com o computador dá pra "pentear" mais o texto. Hoje em dia eu escrevo, deixo o texto "de molho" alguns dias, mexo um pouco, peço pra minha mulher, a Renata, ler, presto atenção nos comentários dela, deixo o texto "de molho" mais um pouco, enquanto decido se acato (ou não) as sugestões dela, repasso mais uma vez e então dou o trabalho como pronto. Se - como geralmente acontece - passam-se meses ou anos antes de surgir uma oportunidade de publicação, reviso uma última vez imediatamente antes de submetê-lo.

Tempos de fúria, seu livro lançado há dois anos, aparenta ser um marco em termos de estilo. Seu trabalho anterior sempre foi bastante associado ao do americano H. P. Lovecraft, mas neste livro, a presença dele parece mais diluída. Houve alguma forma de ruptura com o velho mestre ou é apenas um movimento natural de busca de novos horizontes?

Olha, eu tendo a dizer que a influência de Lovecraft na minha obra foi meio que superestimada. Fiz alguns contos realmente calcados nos Mitos de Cthulhu, mas acho que a última história que consideraria lovecraftiana "puro sangue" foi "Deus dos abutres", ainda no século passado. O fato é que, quando comecei a escrever eu tinha um problema grave: meus esboços tinham clima, tinham boas ironias, eram engraçados, tinham um bom ritmo, eram inteligentes... Mas iam do nada ao lugar nenhum. Resumindo, eu tinha estilo mas não tinha competência narrativa, no sentido de, ok, os personagens entram na história na situação A e quero que saiam dela na situação B. Como ir de A para B? Eu não sabia. Não fazia a menor idéia.

Nesse aspecto, HPL foi muito importante porque ele tinha uma disciplina narrativa muito rígida - tão rígida que, em alguns contos, dava pra ver o final chegando como um trem vindo do fim do túnel. Além disso, tinha intensidade emocional, que era outra coisa que me faltava. Então, creio que o que houve foi que eu precisava aprender, e HPL - não só ele, toda aquela geração da [revista americana especializada em contos estilo pulp fiction] Weird Tales, com Howard e Ashton-Smith também - foi uma escola. Como nas artes plásticas, aprende-se imitando e, depois, desconstruindo os mestres.

O que mudou, de lá para cá, foram meus interesses temáticos. Estou migrando para a hard SF, e acho que vou ficar lá por algum tempo. Nesse sentido, ando lendo muita não-ficção (meu livro do ônibus atualmente é o Investigations, de Stuart Kauffman) e muito conto de FC hard contemporâneo. Há algumas ótimas antologias recentes, como Solaris book of new SF e uma antologia de space-operas Forbidden planets, e o Mammoth book of extreme SF. Para "limpar as papilas", como o copo de água que os enófilos tomam entre taças de vinho, encaixo um mainstream ou um policial.

Vários dos cenários e dos personagens presentes em Tempos de fúria poderiam render novas histórias, como é o caso das duas histórias em torno do planeta Vênus. Qual a sua opinião em retornar a antigos trabalhos? Você já fez isso em relação ao conto que publicou na coletânea original da Intempol, não é mesmo?

Retomar histórias para mim é meio complicado porque, geralmente, meus contos nascem de um ponto de enredo - digamos, quero escrever uma história sobre um ataque de zumbis. Aí, todo o resto nasce como estrutura de suporte, como andaimes para sustentar esse ponto. Uma vez que eu tenha desenvolvido o ponto, os andaimes simplesmente deixam de ser interessantes, para mim. Não que eu não tenha entusiasmos - por exemplo, cheguei a imaginar "Planeta dos mortos" como primeiro de uma série que culminaria com "Galáxia dos mortos", ou algo assim - mas o princípio motor da coisa toda, que era a publicação em uma revista, desapareceu antes que eu conseguisse pôr a idéia em prática, e logo outros temas chamaram minha atenção.

A Intempol, nesse aspecto, é uma coisa diferente. Em parte, pelo desafio de expandir um universo com a ajuda, e muitas vezes sob a orientação, de outras pessoas. Segundo, porque escrever para a Intempol me dá um certo senso de irresponsabilidade - eu me sinto, paradoxalmente, mais livre, talvez porque a carga da autoria fica meio que diluída: é como se escrever para a Intempol fosse uma espécie de "00" literário, "licença para pensar o impensável". Curiosamente, esse mesmo efeito faz com que meus trabalhos na série sejam alguns dos meus melhores trabalhos.

Por falar naquele conto situado no universo criado por Octávio Aragão: "A mortífera maldição da múmia" foi adaptado para uma versão em quadrinhos on line. Como foi a experiência de ter um trabalho traduzido para outra mídia? Pode haver outras novidades nessa área, seja com material já publicado, seja com roteiros inéditos? E, por fim, qual sua opinião sobre quadrinhos de um modo geral?

Trabalhar com a equipe que fez a adaptação do "MMM" foi muito legal. Eu criava uma espécie de pré-roteiro, com uma sugestão de diagramação e decupagem das cenas, além de adaptar o diálogo. Os quadrinhistas seguiam, adaptavam ou ignoravam minhas instruções, dependendo do que fosse melhor para a série (e estou certo de que eles sempre escolhiam o melhor). Fiz isso, um capítulo por semana, durante um semestre, creio. Pessoalmente, acho a versão em quadrinhos melhor que o conto. Tanto que "Melissa, a meretriz do mal" [um romance, dando continuidade a primeira história, que saiu em formato digital] segue, em detalhes, a HQ, não o conto, por exemplo.

Quanto a novidades, ei, se quiserem me adaptar, adaptem-me! Se for para um álbum de luxo franco-belga ou para uma minissérie Vertigo eu gostaria de ser pago, mas se não, só me dêem crédito e peçam educadamente.

Quadrinhos: adoro quadrinhos. Antes de querer ser escritor, quis ser quadrinhista - desisti porque não tenho paciência de aprender a desenhar. Ando lendo pouco, atualmente - acompanho a série do Conan da Dark Horse e fico de olho na obra do Warren Ellis, e quase nada além.

Você disse que a ficção científica estilo hard é, atualmente, seu principal interesse. Seus últimos trabalhos, como a maioria dos contos do livro e o texto que publicou recentemente no fanzine Scarium fazem parte do subgênero. Como jornalista especializado em divulgação científica, portanto acostumado a lidar com minúcias técnicas da área, é mais fácil passar pelo processo de pesquisa a que esse estilo obriga seus autores?

Eu tenho um profundo interesse, um grande respeito, pelo programa científico como postura filosófica - nenhuma idéia está acima de crítica, o grau e confiança numa afirmação depende da totalidade da evidência, a evidência articula-se logicamente - e traduzir isso para a literatura é um grande barato. É O grande barato, ao menos para mim, atualmente. Creio que minha atuação como divulgador ajuda, sem dúvida: as maiores fontes de idéias para boa FC estão nas páginas da Science e da Nature, que são revistas especializadas na publicação de trabalhos científicos e circulam semanalmente.

Por falar naquela edição da Scarium: nela foi publicado um artigo que gerou alguma polêmica entre fãs e críticos de FC por fazer a defesa de uma produção associada ao estilo pulp, como o da citada revista Weird Tales. Algumas pessoas associaram tal proposta a um perigo de se relaxar na qualidade literária, de ser algo ultrapassado. Qual sua opinião sobre essa controvérsia?

Pessoalmente, considero controvérsias literárias um campo meio estéril. Digo, cada um escreve o que acha melhor, e pronto. Por trás da idéia de controvérsia está a de programa - a de que existe um caminho a seguir, e a controvérsia se dá entre programas antagônicos - e eu simplesmente não acredito em programas literários com mais de um aderente. Cada escritor tem o seu, ou cada escritor tem vários ao longo da carreira, mas tentar vender um programa é meio inútil.

Reformulando: pode ser útil na medida em que os debatedores usam o debate para lançar um olhar crítico sobre seus próprios programas. Um debate vigoroso é sempre um bom estímulo à autocrítica. Mas o que geralmente acontece é um duelo entre homens de palha, com um lado atacando não o outro, mas uma caricatura do outro.

A finada Isaac Asimov Magazine foi muito importante para toda uma safra de escritores nacionais, por apresentar a eles parte do que era produzido no exterior e, obviamente, por representar um local de qualidade onde se poderia publicar. Não deve ser coincidência o fato de que dois dos mais respeitados escritores de FC do país tenham estreado naquelas páginas: Gérson Lodi-Ribeiro e você mesmo. É algo assim que está faltando hoje em dia para ajudar a popularizar o gênero entre novos leitores e novos autores?

Bom, obrigado pela parte que me toca! No meu caso específico, a IAM me ajudou a amadurecer minha visão do gênero - eu achava que FC era Lucky Starr e Jornada nas estrelas, e de repente estava lendo Kim Stanley Robinson. Isso faz falta hoje, assim como faz falta um mercado comprador de FC.

Você tem acompanhado a produção brasileira de ficção científica e de terror? Entre novatos e veteranos há alguém que tem chamado sua atenção nos últimos anos?

Acompanhar, não acompanho. Sou um escritor, não um crítico, e o que leio, basicamente, é o que me interessa ou o que acho que poderá ser útil na composição da minha obra. Autores que me cahamaram muito a atenção nos últimos anos foram Osmarco Valadão, de quem eu realmente gostaria de ler mais coisas, e uma "novata", Cristina Lasaitis, cujo conto de estréia na antologia Visões de São Paulo foi um dos melhores, se não o melhor, do livro.

Quais são seus próximos projetos em termos de ficção?

Continuar me aprofundando no lado “hard” da FC e continuar procurando onde publicar. Eu queria inverter o equilíbrio da minha produção de textos e fontes de renda - com a a ficção pesando cada vez nos dois quesitos - e sigo buscando oportunidades para conseguir isso. Quem sabe