sábado, 13 de dezembro de 2008

A prática dos jogos

No dia 15 de outubro de 2003 uma nova palavra entrou de vez para o vocabulário e para o imaginário dos que se interessam por temáticas espaciais. Naquela data, ao orbitar a Terra a bordo da nave Shenzhou 5 Yang Liwei, um chinês de 38 anos, se tornou o primeiro taikonauta da história, o nome que as autoridades de seu país escolheram para o mesmo profissional que, em tempos de guerra fria, foi chamado de astronauta pelos americanos e de cosmonauta pelos russos. O prefixo utilizado para diferenciar a conquista chinesa daquela feita pelos rivais históricos décadas atrás – derivado de “taikong”, espaço em mandarim – serviu de inspiração para batizar a mais ousada e ambiciosa iniciativa multimídia ligada à ficção científica no Brasil. Seu lançamento oficial ocorreu exatamente meia década depois da longa marcha espacial de Yang Liwei: foi em 27 de outubro deste ano que a empresa catarinense Hoplon Infotainment apresentou ao público o game on-line Taikodom, um produto que passou justamente os últimos quatro anos e meio em desenvolvimento, consumiu investimentos na ordem de R$ 15 milhões e será o mote de vários outros meios nos quais se contarão histórias sobre o Domínio do Espaço. O primeiro deles foi lançado em outubro em São Paulo, juntamente com o game, e também no início de dezembro, em Florianópolis, e é o motivo desta resenha, o romance Taikodom: Despertar, editado pela Devir e escrito por João Marcelo Beraldo.

O autor é um game designer carioca, com formação em história e desenho industrial, que já havia publicado um outro livro com abordagem futurística e espacial – Véu da verdade – e foi contratado pela Hoplon para cuidar do enredo do jogo, dos personagens, das missões e de todo material escrito. Para tanto, Beraldo segue as regras criadas pelo seu conterrâneo Gerson Lodi-Ribeiro, o responsável pelo contexto histórico do universo Taikodom, aquilo que no jargão dos games e séries do cinema e da TV é chamado de Bíblia. Neste mundo ficcional, a iniciativa privada começa levar seus projetos para o espaço a partir do ano de 2013, pouco mais de meio século depois, algumas colônias em torno da Lua e do Cinturão de Asteróides conseguem a autonomia em relação à Terra.

O evento mais traumático, e que muda por completo o rumo dos acontecimentos, ocorre em 2073. É quando um campo de origem desconhecida cerca o planeta, impedindo o retorno de qualquer um ao local, mas não a fuga em massa que acabaria por evacuar um planeta que em poucos anos se tornou quase inabitável. O surgimento desse campo demarcou uma nova era, os fatos passaram a ser considerados Antes da Restrição ou sendo da Era da Restrição. Os acontecimentos narrados neste primeiro livro se dão no ano 153 ER, ou seja, em 2226, pelo nosso calendário, quando duas das pessoas que tiveram que fugir às pressas daquele mundo condenado são despertadas, após passarem um século e meio em animação suspensa, e tentam se adaptar à vida em um tempo pouco amistoso a elas.

Jorge Santiago e Augusto Carrera são os protagonistas da história, brasileiros que eram respectivamente piloto e co-piloto na Terra nos tempos pré-Restrição. Os dois colegas voltam à vida porque foram selecionados, entre os incontáveis terrestres hibernantes, pelo conglomerado privado que dita as regras naquele universo. Na ausência de governos ou mesmo de estados, é o Consortium quem provê a segurança e o bem-estar dos habitantes do chamado Taikodom, porém a iniciativa é alvo de ataques de diversos grupos: sejam eles piratas, mercenários ou mesmo fanáticos religiosos. Por isso, de tempos em tempos, de acordo com a demanda do momento, alguns daqueles fugitivos do campo de restrição recebem a chance de voltar à vida, passar por um período de adaptação em estações que levam nomes como Jules Verne e tentar a sorte, por exemplo, como piloto em alguma das forças de segurança existentes. O problema está nessa adaptação.

Vindos com a mentalidade do século XXI, os ressurectos, como são chamados, formam a classe mais baixa em um mundo dominado por três castas de humanos mais bem adaptadas ao século XXIII. Os mais presentes no livro são os spacers, aqueles que vivem em estações espaciais; os mais misteriosos são os worms, habitantes dos subterrâneos de satélites como a Lua; há ainda os belters, presentes em asteróides. Neste contexto, Santiago e Carrera podem ser vistos como fornecedores de mão-de-obra barata em uma distopia com cara de utopia.

Mesmo entre esse grupo com tão poucas perspectivas, há variáveis nos caminhos a se seguir. E aquela dupla representa bem isso. Ironicamente, é Carrera, o antigo co-piloto, quem se adapta melhor ao novo mundo, passa a subir posições e ganhar a confiança dos seus superiores na esquadrilha em que passa a servir. Dono de um temperamento genioso, muito apegado à antiga existência na Terra e resistente às novas tecnologias, Santiago se mostra um ressurecto bem mais difícil de se lidar e sobrevive à base de bicos. Apesar das diferenças quase irreconciliáveis, ambos, cada um a seu modo, vão se envolver diretamente em uma trama de espionagem e conspirações que vai tomar proporções de uma guerra sem precedentes naquele novo mundo.

Beraldo lida muito bem tanto com o lado mais humano da trama – com os jogos de interesses políticos, as investigações feitas em botecos suspeitos e os momentos de confraternização de companheiros de batalha – quanto, e principalmente, com a parte puramente bélica – caças são abatidos por naves bem maiores, dróides explodem como buchas de canhão e enormes frotas espaciais são posicionadas de acordo com as estratégias de seus comandantes. Apesar de faltar alguma consistência, por exemplo, nas motivações de Santiago – a relação dele com outra personagem fica muito rasa para explicar o porquê das tomadas de decisões tão arriscadas – o autor é bastante hábil em um gênero controvertido da ficção científica, a space opera, que tem seus fãs e seus detratores. Ele até fez uma divertida e nada sutil homenagem a um dos expoentes do estilo, em uma fala de Augusto Carrera, na página 254: “Santiago, eu sou um piloto de caça, não um cavaleiro Jedi”.

É importante que o leitor tenha em mente que Taikodom: Despertar é uma aventura que põe um jogo em prática. Isso quer dizer que várias das soluções em suas páginas foram criadas originalmente para tornar o game atrativo e não com finalidades literárias. Gerson Lodi-Ribeiro, o criador deste universo, é reconhecido por sua afinidade com a ficção científica hard, aquela em que as extrapolações científico-tecnológicas são mais plausíveis. Apesar disso, para se ajustar às necessidades típicas de um game, ele teve que fazer concessões. Um exemplo bem básico diz respeito à virtual imortalidade dos personagens.

Como eles representam jogadores, foi necessário encontrar uma solução que garantisse o seu retorno mesmo após serem mortos em combate. Era isso ou cada jogador teria que recomeçar sempre do zero a cada derrota. A saída foi dotar os pilotos desta realidade com uma espécie de computador pessoal no cérebro; além de municiá-lo com informações, o recurso ainda faz uma espécie de backup da personalidade do usuário o que permite cloná-lo mais tarde, resultando em uma nova vida para o gamer. Outra questão diz respeito aos avanços tecnológicos que permitem itens como campos de força, geradores de gravidade artificial e atalhos por regiões do espaço. Tudo isso é explicado pela ação de misteriosos alienígenas (provavelmente os mesmos responsáveis por aquele campo de restrição) que desapareceram de vista não sem deixar para trás artefatos cuja tecnologia está mais próxima da fantasia que da ciência.

Felizmente para o leitor, João Marcelo (ou J.M. como assina o livro)Beraldo consegue utilizar tais recursos, que poderiam significar uma camisa-de-força na história, em benefício da trama. Um exemplo é o uso inteligente que um personagem faz do seu computador cerebral – na verdade, Organizador Neural Intracraniano – para driblar a própria morte e proteger informações valiosas no processo. Ou ainda, nos momentos da estratégia de guerra, aqueles atalhos espaciais se mostram um trunfo importante para um dos lados da batalha. O envolvimento com o romance garante a necessária suspensão de descrédito para que se possa apreciar a aventura sem tropeçar em impropriedades científicas. O texto direto e agradável do autor contribuí para tanto. Contribuiria ainda mais se, com uma revisão um pouco mais criteriosa, fossem eliminados certos erros e algumas palavras repetidas que surgem poluindo muitas frases.

Outro bom achado da edição lançada pela Devir – que inclui ainda um CD de instalação do game – é a bela capa de autoria do jornalista e artista gráfico Ivan Jerônimo, também funcionário da Hoplon. Apesar de um dos principais diferenciais do jogo ser os gráficos 3D, foi bastante agradável a escolha de uma ilustração mais, digamos, orgânica – apesar de ser uma pintura eletrônica – para a obra impressa. Mesmo assim, para instigar a curiosidade dos leitores e potenciais jogadores, além de aproveitar o material desenvolvido por um batalhão de designers, uma falha da edição foi a de não incluir no interior do livro algumas imagens disponíveis do game. Um apanhado das incontáveis naves, de todas as classes e modelos, citadas ao longo do romance poderia ilustrar a abertura dos 41 capítulos espalhados por 320 páginas, por exemplo.

Taikodom: Despertar é uma boa amostra do que se pode esperar dos próximos lançamentos editoriais que devem expandir o universo do jogo. Há histórias em quadrinhos sendo produzidas e novos livros previstos. O próximo lançamento deve ser uma coletânea de contos de autoria de Gerson Lodi-Ribeiro, alguns disponíveis no site, que se passam antes e depois da história contada neste primeiro romance. A previsão é de que os lançamentos cruzem fronteiras e sejam exportados para outros países, em um primeiro momento, para Portugal. Isso tudo fora as perspectivas de Taikodom, o game, propriamente dito. Nada mal para um projeto que começou quase simultaneamente com o primeiro passo dado pelo chinês Yang Liwei no espaço.