domingo, 17 de fevereiro de 2008

Não verás mundo nenhum

A pintura é simples e direta, feito um quadro primitivista. Pinceladas fortes, rápidas e irregulares registraram, sempre em marrom, a silhueta de estruturas cilíndricas que podem ser conjuntos habitacionais padronizados, chaminés industriais ou torres de comunicação. A impressão geral é de tédio e de imutabilidade. O espectro da cor única é, no conjunto, desagradável. Começa com tons claros, semelhantes aos da terra seca e sem vida; passa por uma tonalidade pouco mais escura, que lembra a cor de excrementos; com algo de vermelho, parece ser o marrom de uma casca de ferida em processo de cicatrização; tendendo ao preto, aparenta ser a crosta de matéria em putrefação. O quadro, pintado por Ivan Hegenberg, artista plástico formado pela USP, acabou servindo de capa para o romance de estréia dele próprio, lançado no final de 2007: Será, uma estranha e niilista ficção científica nacional.

Distopias são um dos temas mais recorrentes na tradição da FC mundial e renderam algumas das melhores obras do gênero em diversas mídias. Historicamente, a palavra parece ter sido empregada pela primeira vez, com seu sentido literal de lugar mau - e em oposição à utopia, o lugar nenhum-, pelo filósofo e economista inglês John Stuart Mill, em um discurso no Parlamento Britânico, no ano de 1868. Estamos às vésperas do aniversário de 140 anos de sua criação, portanto. Quando o mundo das artes se apropriou do termo, em reação aos sonhos de futuros idealizados, tecnologicamente avançados e socialmente justos, começaram a ser produzidos livros como 1984, de George Orwell; quadrinhos do nível de V de vingança, de Alan Moore e David Lloyd; e um sem-número de filmes que se passam em tempos pós-apocalípticos como a trilogia Matrix dos irmãos Wachowski. Todas obras marcadas pelo autoritarismo dos governantes, humanos ou não, ou por grandes catástrofes globais, sejam causadas pelo homem, sejam naturais. O paulistano, com seu segundo livro - o primeiro foi uma coletânea de contos, A grande incógnita, publicada em 2005 pela editora Annablume -, pode ser incluído nesta lista de autores desesperançados com os dias que virão.

No início de Será - para ser exato, em seus dois primeiros capítulos, “História do mundo” e “Água” - o cenário geral é traçado. Apesar do longo histórico internacional deste subgênero, tais trechos da obra do iniciante lembram mesmo a mais famosa e bem sucedida distopia já produzida no Brasil, escrita por um veterano conterrâneo dele, em 1981. Não verás país nenhum, livro mais conhecido de Ignácio de Loyola Brandão, antecipou há mais de 25 anos muitas das preocupações ambientais que vivemos nesta primeira década do século XXI. Será também mostra a tentativa de sobrevivência de personagens que vivem as consequências do abuso dos recursos naturais do planeta.

A maior diferença é que, na obra da década de 80, a narrativa ficava circunscrita ao Brasil, mais que isso, a São Paulo, e tinha um protagonista claro, Souza; no livro lançado em 2007, a abrangência é mundial e há uma profusão de personagens sem uma hierarquia clara entre eles na ordem das coisas. Datas não são definidas com muita precisão ao longo do texto, mas uma brincadeira quase oculta nas últimas páginas faz supor que estejamos por volta do ano de 2348. A população mundial praticamente triplicou em relação à de nossos dias, são 15 bilhões de pessoas disputando o mesmo espaço. Se número já assusta, ele poderia ser ainda maior, se não houvesse ocorrido cerca de 6 bilhões de mortes por doenças virais, um século antes dos eventos narrados no livro.

Para respirar, a solução foi retirar oxigênio diretamente dos oceanos, o que faz um dos personagens se perguntar se é o consumo desse “ar para peixes” que os faz se sentirem tão “desadaptados”. É uma boa questão, pois o clima de apatia é dominante neste futuro amarronzado, em que as necessidades mínimas de todas as pessoas, de moradia à alimentação, são atendidas em pé de igualdade. Se no livro de Brandão havia um poder por trás de tudo, o Esquema, aqui há o Sistema, uma forma de democracia direta mediada por softwares. Tudo é motivo para consultas plebiscitárias à população adulta para que os sistemas de inteligência artificial - que são sempre citados, mas não exercem uma presença física nas páginas do livro - tomem as providências executivas.

Novamente a exemplo de Não verás país nenhum, a água potável se tornou um artigo raro. Se no primeiro livro, eram os civiltares que exerciam um controle coercitivo da população, em Será existe uma milícia chamada Comando Água para fazer o serviço sujo. Aparentemente, os programas governantes imaginados pelo brasileiro seguem a famosa legislação proposta por Isaac Asimov que os proíbe de matar pessoas. Isso não os impede de tentar fazer passar uma lei para promover a esterilização em massa da humanidade e ainda permitir que os agentes do tal comando executem todos aqueles considerados inaptos para continuar a viver.

Sim, essa é a impressão gerada pelas primeiras 40 das 240 páginas totais de Será, com o dilema de Ganton e William, dois velhos amigos separados pelas escolhas que fizeram. Um a de servir indiretamente ao Sistema, matando sem culpa os indivíduos mais fracos, os que de certa forma desistiram de resistir, para garantir a existência da coletividade. O outro, um integrante da Sobrevivência Unida, tem como norte moral a certeza de que a humanidade deveria sucumbir junta, de que “morrer com suprema beleza é bem mais digno do que matar com avidez”. Mas a aparência é falsa, pois no restante do livro - a cada capítulo primeiro; a cada página em certos momentos; a cada páragrafo em certos casos -, as sensações, os climas, os estilos, os ritmos vão se alterando, se confundindo, se mesclando, apesar de seguirem aquele esboço inicial. É como se o leitor fosse convidado a acompanhar a feitura de um quadro momento a momento: a confusão de pinceladas e raspagens aparentemente caóticas que acabam dando origem a uma pintura figurativa, ainda que expressionista.

Para exemplificar tal alternância estilística, podemos seguir o sumário dos capítulos. “Dia qualquer”, o terceiro, tem um quê de absurdo à Kafka; já a personagem principal de “Passagem”, o seguinte, a garota Seda, lembra as crianças superdotadas de Orson Scott Card, autor de livros de FC como o Jogo do Esterminador. É no quinto, “Zeitgeist”, que a coisa se complica ainda mais. Hegenberg se utiliza de outra modificação que introduziu em seu mundo ficcional - através de métodos não explicados, a humanidade desenvolveu e difundiu um certo nível de telepatia - para de fato passar aos leitores o espírito da época daquele cenário. Helmut, um homem centenário, se utiliza de seus dons para bancar o voyeur telepático. O resultado é uma colagem de curtas sequências de pessoas vivendo suas vidas, praticando sexo casual, casamentos sendo desfeitos, resumos de sonhos, trechos de aulas, conversa de mãe pra filho... Uma autêntica cacofonia em meia centena de páginas.

Possivelmente, uma pista das intenções do autor pode ser encontrada no sexto capítulo, “O Supremo Esteta”. Logo de início, aquelas páginas se destacam por apresentar uma editoração diferenciada, com as letras em negrito. O motivo por trás de tal recurso só fica claro ao final do curto capítulo, que se revela uma montagem intertextual pós-moderna do escritor. Além da forma, o que “O Suprem Esteta” tem a oferecer em termos de conteúdo é uma especulação sobre a principal visão religiosa do futuro de Será, o Esteticismo-maior. Dois terços da população do planeta parecem ter substituído do panteão universal os deuses com uma visão moralista de mundo, com a divisão entre certo e errado, bom e mau, por uma noção baseada na estética acima de tudo, tanto nas relações naturais, quanto nas ações humanas.

Não parece tanto que o objetivo do novo romancista seja o de propriamente lançar as bases de uma nova religião. Mas aparenta ser uma declaração de princípios de uma autor em relação à sua forma de expressão e, quem sabe?, com a vida. O fato é que, apesar de tantas outras leituras possíveis, é difícil ler aquelas páginas, ou mesmo evocar em termos literários a expressão supremo esteta, e não pensar em um dos maiores defensores da arte pela arte. Em um dos prefácios mais conhecidos de todos os tempos, aquele que Oscar Wilde redigiu para O retrato de Dorian Gray, ficou resgistrado:

“A vida moral do homem forma parte do argumento e do material do artista. Mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um instrumento imperfeito. Nenhum artista pretende provar o que quer que seja. A própria verdade não pode ser provada.

Artista algum tem preferências éticas. Uma preferência moral, em um artista, é imperdoável maneirismo de estilo

Não há artista doentio. O artista pode exprimir tudo”.

Essas palavras escritas no século XIX poderiam bem resumir o manifesto do Esteticismo-maior se for feita uma leitura puramente estética da obra, levando-se em conta que o artista é o deus de seu mundo criativo. Escolhas estéticas em detrimentos dos julgamentos morais parecem ser um dos pontos fortes de Será. Nas páginas seguintes, na segunda metade do livro, o efeito permanece e até se amplia. A sucessão interminável de personagens e de situações parece seguir tais critérios, segundo a vontade do criador, sem se submeter a um roteiro linear, um destino traçado e coerente. Em “Explorações”, um dos melhores capítulos do livro, por exemplo, a narrativa se divide em três momentos para contar simultaneamente a visita de um filósofo ao show de um comediante, os bastidores de um filme pornográfico e, em uma rara concessão a temas mais típicos da FC, um empreendimento científico ousado: um grupo de pesquisadores é encolhido a nível microscópico para desbravar o interior de uma célula.

O livro lançado pela editora Ragnarok, da qual Ivan Hegenberg é um dos sócios, é em boa parte a fusão dos autores que mais reconhecidamente o influenciaram, uma criatura com o esqueleto de Friedrich Nietzsche e as carnes de Clarice Lispector. A obra acaba servindo para coletar uma série de relexões filosóficas do escritor a respeito de diversos aspectos da vida. Em alguns casos, as falas e pensamentos dos personagens chegam a soar algo ingênuo, como nas críticas constantes feitas ao capitalismo - que fariam o já citado John Stuart Mill dar boas risadas liberais. Porém, em certos pontos, o livro consegue um efeito bastante interessante, ainda mais levando-se em conta que ele foi escrito por um autor tão jovem - o paulistano nasceu em 1980. Quase sempre o resultado é bastante incômodo, o que faz voltar a lembrar daquele prefácio de Wilde: "Não existe livro moral nem imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo”. E Será, com sua narrativa sobre tédio e imutabilidade, sobre a terra seca e sem vida, sobre feridas que podem cicatrizar e outras que já apodreceram, é um livro bem escrito.

Serviço: O livro custa R$ 30 e se encontra à venda pelos sites da Livraria Cultura (www.livrariacultura.com), Devir (www.devir.net.com) e em outros endereços listados no blog do autor: www.ivanhegenberg.blogspost.com

A supremacia da estética

Ele apresenta duas motivações estranhas para ter iniciado o curso de Artes Plásticas na Universidade de São Paulo: uma curta carreira de pintor de rodapés na Inglaterra e a proximidade que teve com os maiores museus da Europa enquanto esteve naquele continente. De volta ao Brasil, passou a se dedicar mesmo a outra forma de expressão, a literatura, tendo recentemente lançado seu segundo livro, Será um romance distópico de ficção científica, e ainda abriu uma editora que pretende se especializar neste nicho literário. Falando diretamente da capital paulista, o escritor e pintor comenta as diferenças entre esses dois mundos artísticos; descreve as vantagens da FC para se contar histórias que tenham a sociedade como protagonista; e filosofa sobre a função da estética. Com vocês, o filho espiritual de Friedrich Nietzsche e de Clarice Lispector, Ivan Hegenberg.

Você é um artista plástico por formação, mas tem se dedicado à literatura como forma de expressão. Poderia fazer um breve retrospecto de sua produção literária e nas artes plásticas?


Antes de entrar em Artes Plásticas, na USP, eu cursei um ano de Letras, já pensando em me tornar escritor. Logo vi que Letras prepara bons professores, mas não me ajudaria muito a escrever, e tranquei a faculdade para ficar nove meses vagando pela Europa. Não sei se foi minha experiência como pintor de rodapés em Londres ou a proximidade com os principais museus do mundo, mas quando voltei estava decidido a enveredar pelas artes plásticas. Eu sempre gostei de desenhar, e acho que há situações que se expressam melhor com cores do que com palavras. Mas não parei de escrever, a essa altura eu estava terminando os contos do primeiro livro. A grande incógnita circulou pouco mas teve uma boa aceitação por outros escritores. Foi fácil perceber que o ambiente literário, por mais que tenha seus problemas, está bem mais arejado do que o das artes plásticas – não é à toa que este ano teremos em São Paulo a primeira Bienal do Vazio. Acho que escapar um pouco do ambiente de artes plásticas e escrever o Será me deu ânimo para agüentar bobagens desse tipo. De uns tempos para cá, tenho escrito alguns artigos sobre arte contemporânea, tentando combater as idéias fixas que eu encontro nas exposições e na crítica.

Em seu primeiro romance, apesar de ele estar inserido em um nicho da ficção científica dos mais tradicionais, a distopia, é notável a influência que outros autores fora da literatura de gênero exerceram sobre você, sem falar da área da filosofia. Friedrich Nietzsche e Clarice Lispector são os mais notáveis, mas não devem ser os únicos. Que outros escritores, de FC ou não, estão entre seus preferidos e lhe servem como referência?

Na verdade, não me apego muito aos gêneros. Acho que o melhor da ficção científica – por exemplo, Bradbury, Huxley, Orwell, K. Dick – vai muito além dos clichês e atinge o patamar da alta literatura. Do mesmo modo, Márcia Denser e Henry Miller fazem muito mais do que literatura erótica, Rubem Fonseca não faz apenas romance policial, nem Edgar Allan Poe escreve terror para assustar criancinhas. O importante é que o livro seja bom. James Joyce é quase o oposto de Kafka, mas os dois são excelentes. Guimarães não tem nada a ver com Bukowski, mas os dois me interessam. Não dá pra fechar a lista, mas, de todos, considero Nietzsche uma espécie de pai espiritual, sendo Clarice minha mãe. Também tenho lido bastante Deleuze, que a meu ver coloca Nietzsche diante dos problemas de hoje.

Por que você escolheu um cenário típico de ficção científica para contar uma história tão atípica de ficção científica? Qual sua ligação com este gênero específico da literatura fantástica?

Nos meus primeiros contos eu falei muito do indivíduo, e dessa vez eu quis falar sobre a sociedade. Mas em vez de colocar meus personagens no mesmo mundo em que vivemos, preferi criar um outro ambiente, para olhar alguns problemas a uma distância estratégica. Decidi então jogar um monte de coisas em que eu estava pensando para o futuro. Um dos elementos atípicos do Será é o fato de termos um futuro estagnado, uma desaceleração na história do homem, apesar de ainda repleta de conflitos. Minha intenção era fazer com que os problemas fossem percebidos com o máximo de pureza, por isso não podia ser uma história no presente: eu não queria que as conseqüências fossem atribuídas a circunstâncias meramente conjunturais. Eu busquei nesses homens do futuro forças muito semelhantes às que agiam no homem primitivo, e que com o tempo só vão se sofisticando, mas não desaparecem.

Para mim, as questões principais do livro não se remetem nem ao presente nem ao futuro, acredito que sejam eternas, mas uma das coisas que mais me divertiu no processo de escrita foi compor a ambientação. O oxigênio retirado da água, o sangue como moeda de troca, as ações do Comando Água, a telepatia rolando solta, os experimentos científicos radicais, etc. Acho que é esse o grande barato da ficção científica: a imaginação se mostra capaz de recriar o universo inteiro, não só uma situação isolada. E ainda assim, o link com a realidade permanece, tanto que os franceses chamavam a literatura FC de “romances de antecipação”.

Um dos capítulos que mais chamam a atenção em seu livro é “O Supremo Esteta”, no qual você especula sobre uma nova religião que passa a ser predominante naquele cenário, um ideário mítico que sobrepõe conceitos estéticos a questões morais. Desde o lançamento do livro, já houve alguma reação dos leitores às idéias contidas naquele trecho da obra?

Sim. Já chegaram a me perguntar como faz para se converter. É bom deixar claro que é uma ficção, portanto “Será” deve ser entendido como “Poderia ser”. Acho que se eu fosse realmente esperto, fundaria uma religião, em vez de levar tão miseravelmente essa vida de escritor. Quantas seitas esquizofrênicas, uma mais bizarra que a outra, lucram com a ingenuidade alheia? Acho que se eu fosse mais cara-de-pau, o esteticismo-maior poderia mesmo vingar como religião, mas prefiro mantê-lo na ficção.

Além da leitura puramente estética, que outras intenções nortearam aquele capítulo?

Eu mesmo não entendo muito bem o que eu quis dizer com “O Supremo Esteta”. Se eu soubesse com muita precisão tudo o que quero transmitir, eu nem me daria ao trabalho de escrever ficção. Aliás, aí é que está a força da estética: o fato de ela não poder se reduzir a nenhuma lógica identificável, por mais que alguns acadêmicos acreditem que sim. Acho que mais de cem anos depois, Nietzsche ainda não foi compreendido, caso contrário todo intelectual evitaria leituras moralistas de uma obra de arte, e infelizmente não chegamos a esse estágio de esclarecimento. Está mais do que confirmado que a moral só serve para escravizar o povo, pois nem a promessa católica de danação da alma por toda a eternidade impediu que os senhores abusassem dos servos. Sendo assim, como pensar que o moralismo das ideologias seria capaz de conter nossos instintos destrutivos? O homem está em perpétua mutação, mas se tem algum traço constante é a oscilação entre a vontade de criar e a de destruir. A estética é o campo ideal para exercitarmos as duas coisas ao mesmo tempo, mas essa ânsia deveria ser satisfeita livremente, sem o condicionamento de qualquer doutrina. Os autores que me fazem bem, que me aliviam das neuroses, são os que assumem uma visão trágica da existência. Ou seja, os que entendem que não existe bem nem mal, que a vida não faz sentido algum, que só tem felicidade quem suporta também o sofrimento e que nossos sentimentos e convicções costumam ser ambíguos. Vão nessa linha as traduções dos bons observadores da natureza humana. Na minha vida fui obrigado a me confrontar com tudo isso, que pode assustar mas também liberta, porque nos permite criar a vida conforme o paladar, sem dogmas, bela e inexplicável como uma obra de arte.

Os personagens do livro fazem constantes referências a um período histórico em que não viveram, que muitos deles chamam de “no tempo do capitalismo”. Curiosamente, apesar de muito do cenário proposto lembrar conceitos igualitários do socialismo, e mesmo com parte da trama se desenrolando em cidades como Pequim, não existe nenhuma comparação entre aquela realidade e as várias experiências socialistas reais que existem ou existiram em nosso mundo. Há alguma razão para essa ausência de referencial?

Boa pergunta. Eu não senti necessidade de falar diretamente sobre os países que vivem hoje o socialismo real porque seu processo histórico parece estar no fim, e portanto não alterariam muito os eventos que desembocariam na derrocada do capitalismo. Não considero a China um país socialista: está claro que vive uma lógica capitalista ainda mais selvagem que a nossa, com a agravante de estar sob uma ditadura. Por essa reviravolta Marx não esperava, e rasteiras da realidade desse tipo são ótimos motivos para os artistas não facilitarem uma captura muito materialista. Acho que se eu falasse muito do socialismo real, as interpretações tenderiam para a macropolítica, que eu considero ultrapassada e redutora. Eu deliberadamente evitei deixar o sistema social falar mais do que as personagens, exatamente porque creio que nosso campo de batalha está na subjetividade, e não nas grandes ideologias ou nos modelos econômicos. Arte não tem capacidade para mudar o mundo e faria muito melhor se tentasse mudar as pessoas.

Você pensa em retornar algum dia a esse mesmo universo ficcional ou já explorou tudo o que tinha vontade dele?

Sim. Escrevi um conto, “Vladja”, sobre um personagem coadjuvante de Será, que vai sair em uma coletânea da Record. O conto me satisfez tanto que eu já planejo um livro só com histórias curtas retomando o universo do Será.

O seu livro de estréia, A grande incógnita, foi publicado por uma pequena editora, a Annablume. Seu segundo livro já saiu por uma editora da qual você é um dos sócios, a Ragnarok. Pode fazer uma análise desses dois extremos tão distintos como forma de publicação?

A Annablume não é assim tão pequena, ela tem porte equivalente ao de uma Hedra, mas como trabalham mais com não-ficção, ainda estão construindo sua tradição na literatura. Estão no começo, mas acho que é uma das poucas editoras sérias do Brasil, que carece de gente com visão. Para o Será eu já queria uma editora um pouco maior, achei que o livro merecia divulgação, que ele podia desencadear discussões fortes, e despachei originais para todas as grandes. Foi uma decepção enorme, que diz muito sobre nosso mercado editorial: obtive ao menos duas respostas em que consideraram o livro muito bom, e mesmo elogiando não se arriscaram a investir. A lógica é essa mesma, acho que falta visão e falta coragem por conta dos editores. Eu escrevi para o Nelson de Oliveira desabafando, e ele me convidou para montarmos a Ragnarok. Tem sido um prazer trabalhar com o Nelson, que é um bom amigo e uma das figuras que mais respeito da nossa literatura. Outra coisa bacana é que ao montar uma editora independente você aprende muito sobre todas as etapas do processo.

Quais são os planos de sua editora para novos lançamentos? A Ragnarok pretende se especializar na área da literatura fantástica? Ela faz avaliação dos originais de outros escritores do gênero?

A Ragnarok já nasceu especializada em ficção científica e fantasia. Não é exatamente uma empresa, está mais para um clube, já que não bancamos as despesas do processo, mas também não estamos interessados em lucrar com o autor. A idéia é orientar sobre a capa, a gráfica, a diagramação e a divulgação, para que o livro, mesmo saindo em esquema independente, não faça feio diante de um produto das editoras profissionais.
Nos nossos planos está um livro de crônicas do André Carneiro, deliciosas de se ler, e um romance do Nelson, que ainda está sendo escrito. A gente faz avaliação de originais, com o tempo vamos mostrar algumas surpresas. Pode ser um pouco piegas citar Renato Russo, mas de fato o futuro não é mais como era antigamente, estamos em um momento em que a ficção científica tem de tudo para se renovar.

E você como escritor, já tem outros projetos planejados para o futuro próximo? Pretende voltar a trabalhar com temas da FC?

Recentemente, ganhei uma bolsa do governo de São Paulo para concluir meu próximo romance, Puro enquanto, que talvez seja meu livro mais ambicioso. Passei dez anos anotando meus sonhos pela manhã, e os costurei na história de um publicitário que entra em coma. Em certo momento, ele percebe que está sonhando e quer despertar, mas “despertar” ganha outros sentidos. A linguagem é pouco usual, com texto e imagens em constante diálogo. Também quero escrever para teatro e cinema. Quanto à ficção científica, só não quero escrever nada que me pareça inferior ao Será, mas assim que eu tiver um material consistente, lanço uma coletânea de contos.

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Rio de Janeiro de todos os tempos possíveis

O polivalente prefixo “meta” é de fundamental importância para se comentar um dos mais engenhosos textos de ficção científica já lançados no Brasil. Aquela partícula de origem grega ganha múltiplos sentidos a depender do seu uso na formação das palavras. Pode ser o de “posição posterior”, como em metacarpo ou em metatarso; “mudança” ou “alternância”, a exemplo de metafonia e metagênese; “transcendência”, caso clássico de metafísica; ou ainda “reflexão sobre si”, empregado em metalinguagem. Escrito pelo jornalista Jorge Moreira Nunes em 1999 e lançado em 2007 pela editora Differential, Macacos e outros fragmentos ao acaso propõe um complexo jogo a seus leitores, com partes sobrepostas formando um todo maior que sua simples somatória, desdobramentos inusitados e múltiplas camadas de compreensão se alternando ao longo de 126 páginas. Para entrar no terreno das metáforas, cada um pode escolher a de sua preferência: bonecas russas, dobraduras japonesas ou mesmo uma simples cebola da terra para tentar descrever os efeitos presentes neste metalivro.

Para início de conversa, o título já faz uma provocação com o próprio autor. Ele é baseado em um famoso exercício de probabilidade. “Escreveram em algum lugar que se um hipotético e longevo macaco martelasse num teclado de máquina de escrever aleatoriamente por alguns milhões de anos acabaria um dia escrevendo a Ilíada”, comentou Nunes. Com tal idéia na cabeça, antes mesmo de começar o livro, ele criou um projeto colaborativo, no final da década de 90, que antecipou outras iniciativas semelhantes, como a Wikipédia ou, no caso nacional, o Overmundo. No endereço www.macacos.net o escritor deu a arrancada a um experimento literário totalmente virtual, uma lista de palavras escrita em um interminável fluxo de consciência por colaboradores anônimos, um verdadeiro macaco coletivo. Novamente nas palavras do criador: “O que fariam alguns milhões de seres humanos escrevendo uma mesma obra, acrescentando cada um suas impressões aparentemente confusas e caóticas do mundo, mas genuinamente representativas de um subjacente inconsciente comum?”

Uma pequena parte da resposta se encontra enxertada no livro, em quatro capítulos, apresentando uma torrente de palavras em livre associação de idéias, uma extrapolação beatnik elevada à enésima potência. Apesar de nela se incluirem expressões, trocadilhos e frases feitas em inglês, francês, latim, italiano, tupi - sem falar nos neologismos inclassificáveis - o conjunto da obra é, ao mesmo tempo, intraduzível para outras culturas e coerente a um brasileiro. Curioso notar o fato de que, em determinados momentos, expressões se repetem como se a lista fosse se fagocitar em uma espiral, mas, de forma aparentemente expontânea, ela acaba encontrando outros caminhos, outras associações, e segue em frente. Transcendendo os limites do livro, a obra aberta continua sendo escrita pelo coletivo de macacos colaboradores; segundo a contagem apresentada em um texto na contracapa do livro, a corrente contava com 62 mil palavras, escritas por centenas de usuários cadastrados naquele site, quando o livro de estréia de Nunes foi lançado, em maio de 2007.

Mas os capítulos do projeto Macacos não são a única atração da obra. Há ainda os anunciados outros fragmentos ao acaso. Eles são formados por contos curtos escritos em diversos estilos pelo autor e em diferentes oportunidades. São cinco capítulos dedicados a eles. “Terraço”, um texto que estava inédito, narra de modo naturalista uma desventura na cidade do Rio de Janeiro, mistura sarcástica de sexo e violência na metrópole contemporânea. “Maelström”, publicado anteriormente no fanzine dedicado à literatura fantástica Megalon, é seu exato oposto, um conto de caráter metafísico bastante complexo e simbolista. “Presente de mãe”, outro que estava inédito, apesar de ter participado de um concurso de FC, trata de tema bastante caro ao gênero em suas feições pulp: o do viajante ocidental que parte para terras misteriosas, no caso a Índia, e traz de volta a seu lar conhecimentos secretos; o diferencial aqui está no uso que o narrador faz de tais conhecimentos em um estádio de futebol carioca.

“Saviana” é o único dos textos que já havia sido publicado em livro antes, pois foi uma das duas colaborações de Nunes na coletânea Intempol, lançada no ano 2000 pela editora Ano-Luz. Aquela obra, que reuniu o trabalho de oito escritores, representou, cronológica e profissionalmente falando, a estréia do jornalista em terreno literário. O conto faz parte do universo compartilhado de uma polícia internacional do tempo criado por Octavio Aragão. O leitor eventual pode entender a trama, mesmo sem conhecer todos os detalhes da Intempol - versão abrasileirada da Patrulha do Tempo, do veterano Poul Anderson, cujas diferenças principais estão nos métodos dos seus agentes, bem menos sutis que os de Manse Everard, protagonista da série americana. “Saviana” dá uma boa amostra disso, com sua história se desenrolando no Tahiti no ano de 1893. Por último, fechando o arco de contos reunidos em Macacos, um outro que também saiu originalmente em Megalon, “Ouroboros”, com sua visão transcendental de um Rio de Janeiro mil anos no futuro.

Descrevendo de tal forma, ao falar dos quatro capítulos formados pelo fluxo de pensamento livre do projeto Macacos e da apresentação de meia dezena de contos diversos, o livro em questão aparentemente estaria mais bem classificado se fosse chamado de coletânea. Acontece que, já na capa - de autoria do artista gráfico e também autor de textos de FC Osmarco Valladão -, Macacos e outros fragmentos ao acaso se autodenomina romance. E, de fato, são os outros seis capítulos do livro que, ao unificarem e darem um contexto aos demais fragmentos aparentemente aleatórios, permitem tal classificação, o de um romance que contém uma antologia de textos curtos. O exercício de metalinguagem proposto por Jorge Moreira Nunes se completa nesta meia dúzia de intervenções que surge com o título em comum de “La Granada”.

“O La Granada ficava estrategicamente localizado na esquina de uma rua transversal de Copacabana, bem no caminho da praia”. É assim que o autor descreve o espaço no qual se passa formalmente o roteiro de seu romance, um boteco tipicamente carioca. O tempo, seria as semanas finais do ano de 1999, a época que ficou simbolicamente marcada como sendo a virada do milênio, a despeito de, matematicamente falando, isso só ter ocorrido no ano seguinte. Aquele foi o tempo e o espaço em que a obra foi de fato produzida e no qual chegou a ser premiada antes do lançamento: durante a Bienal do Livro de 1999, o original do texto, que então ainda levava o nome de O jogo dos bichos, recebeu a Bolsa para novos escritores, incentivo concedido pela Fundação Biblioteca Nacional para material literário em fase de conclusão.

Ocorre que o autor, dez dias depois de recebida a honraria, se mudou do Rio de Janeiro para Coconut Creek, no estado americano da Flórida, o que adiou a tal conclusão por nada menos que oito anos e meio. Originalmente o escritor foi aos EUA trabalhar em um jornal local para brasileiros – hoje em dia, ele se tornou proprietário de outra publicação, concorrente daquela primeira, o AcheiUSA. Mas se o projeto tardou, acabou saindo assim que o autor conseguiu uma brecha na agenda, mesmo tendo que coordenar tudo à distãncia, sem participar de nenhum lançamento do primeiro livro solo aqui na terra natal. A edição acabou sendo feita às pressas, com um resultado que não chega a ser um primor em termos de revisão, de diagramação ou de escolha da tipologia, muito antes pelo contrário. A maior ironia neste quesito é que o livro, que fora premiado pela BN em sua fase inicial, como foi dito, acabou sendo impresso sem o devido registro formal. O motivo? Os funcionários da Biblioteca Nacional estavam em greve durante a preparação dos exemplares...

De qualquer forma, o continuum básico do enredo, da metanarrativa, por assim dizer, do romance é aquele: um bar na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no último mês e meio do ano da graça de 1999. Naquele lugar, todas as semanas, uma espécie de alter ego do autor se encontra com um colega chamado Vlad para beber, ler trechos do livro O Rio de Janeiro do meu tempo, do historiador e memorialista Luis Edmundo (nascido no século XIX), jogar xadrez às cegas - sem tabuleiro, nem súmulas, apenas ditando as jogadas um para o outro - e se submeter a uma impiedosa sessão de crítica literária. Os textos que o narrador apresenta a seu algoz são, adivinhe, aqueles mesmos que fazem parte do restante da estrutura do livro, incluindo aí os trechos do projeto Macacos. Cada conto é dissecado e analisado de forma impiedosa por Vlad, em uma experiência curiosa de autocrítica ou autoflagelação por parte do escritor. Ego e superego se confrontam em uma partida de xadrez metafórica.

O curioso embate é uma das brincadeiras metalinguísticas preparadas pelo escritor estreante. Afinal, as críticas podem ser acompanhadas pelos leitores entre uma página e outra, logo após a apresentação do texto a ser bombardeado. Da mesma forma que esses leitores em potencial são convidados a imaginar o desenrolar das peças do xadrez mental que protagonista e antagonista movimentam - para isso, extraí mais prazer do livro quem entende a linguagem cifrada do jogo, aqueles que sabem que P3CD se traduz como o peão avançando para a terceira casa do cavalo da dama, por exemplo.

Vlad demonstra ser um analista minucioso da obra do personagem Jorge Moreira Nunes, apontando inconsistências, expondo citações. Claro que nem tudo é dito, ainda sobra bastente material para despertar o interesse dos outros críticos. Para exemplificar, peguemos “Maelström”, um dos contos mais detalhadamente radiografados pelo metacrítico: ele comenta as semelhanças do texto com a obra de Umberto Eco, de Jorge Luís Borges, de Marguerite Yourcenar. Mas deixa de lado o fato de que, já no título, ele faz referência a um conto de Edgar Allan Poe, autor que aparenta ser uma influência forte de Nunes, sem falar em um romance famoso de Jules Verne. Há espaço para outros críticos e outros leitores exercitarem seu lado “Vlad”, como se vê.

Mesmo o mais desatento dos leitores pode adivinhar que a conclusão de todas as pontas daquele mecanismo literário vai se dar durante o reveillon anunciado. Como em uma autêntica partida de xadrez, muitos dos lances são previsíveis, algumas peças são entregues para serem capturadas pelo oponente, como isca. Mesmo assim, o autor conservou lances para os momentos finais, algo como o roque, quando a torre muda de lugar com o rei, o que serve tanto para a defesa quanto para uma estratégia de ataque do jogador. Os desdobramentos do romance também guardam esse tipo de surpresa, um detalhe mencionado dezenas de páginas antes pode voltar a ter um novo significado na hora certa. E, apesar das severas críticas que tanto o alter ego quanto o superego do autor fazem ao gênero em determinado momento - uma das raras concordâncias daquelas personalidades antagônicas - o livro, ao final, se revela uma obra de ficção científica de fato e de direito.

Uma questão que pode ficar em aberto é se a distância entre a produção e o lançamento do livro, de quase dez anos, não envelheceu o texto, fazendo-o perder boa parte do impacto que teria caso saísse mesmo na virada de 1999 para 2000. É algo difícil de se avaliar, mas felizmente as várias camadas de significados ainda estão lá, mesmo com o passar do tempo. Além disso, ao longo de todo o livro, versões de diferentes épocas da capital do Rio de Janeiro se alternam. Desde o prólogo, em que o autor exercita uma de suas maiores qualidades, a habilidade descritiva dos ambientes: ele narra, em uma página e meia, o panorama da cidade que começa em tempos pré-humanidade e avança até uma menção um tanto sutil a um evento ocorrido em 1555. Passa ainda pelas breves citações ao Rio de Janeiro novecentista de Luis Edmundo, chega à realidade contemporânea de “Terraço” e de “Presente de mãe” e ainda especula o futuro distante de “Ouroboros”. Neste Rio de Janeiro de todos os tempos possíveis, Macacos e outros fragmentos ao acaso segue sua trajetória metalinguística, metafísica, metacrítica entre outras aplicações daquele polivalente prefixo.

Serviço: uma última surpresa do livro é o fato de ele ser distribuído gratuitamente a todos os interessados. Cariocas só precisam passar na sede da editora e requisitar um exemplar, leitores de outros estados podem fazer o pedido por carta, telefone e e-mail e só pagam as despesas de postagem.

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Crítica e metacrítica

Um escritor de ficção científica recém-publicado que é ao mesmo tempo bastante crítico quanto ao futuro da ficção científica. O autor em questão lançou seu livro, Macacos e outros fragmentos ao acaso, em meados do ano passado, após tê-lo deixado quase uma década à espera da sua conclusão, tempo em que ele, jornalista de profissão, se estruturou em um novo país. Falando diretamente da Flórida, após uma brevíssima passagem por seu Rio de Janeiro natal, o autor fala de como o livro mudou sua vida uma vez enquanto o escrevia e de como pode voltar a mudá-la, agora que o publicou, descreve o modo pouco usual como encara este gênero literário em que se aventurou e sobre o desenvolvimento de um projeto colaborativo de sua criação. Com vocês, o metacrítico da FC, Jorge Moreira Nunes.

Macacos e outros fragmentos ao acaso acabou sendo sua estréia como autor de um livro de ficção científica, mas ele contém material que foi escrito há quase dez anos. Dá para fazer uma checagem no seu arquivo e conferir se há mais textos, entre inéditos e publicados, de sua autoria? Ainda há outros textos fictícios escritos antes da produção do livro e no intervalo de mais de oito anos até o lançamento do romance?


Tenho alguns textos inéditos, mas que não vejo porque publicar em lugar algum, por várias razões. A maioria não tem a qualidade mínima que mereça o esforço, outros são apenas esboços de projetos, num total de meia-dúzia de textos. Depois que me mudei para os EUA, minha produção literária congelou-se completamente. Não escrevo nada que mereça ser chamado de literatura há oito anos.

Qual é a sensação de lançar um livro, e logo a obra de estréia, de modo tão isolado? Ela acabou saindo distante do tempo em que foi escrita, em 1998, e você mesmo está bem afastado da cidade em que a história se passa, o Rio de Janeiro. E tanto o tempo quanto o espaço são personagens importantes para o romance.

Acho que não houve um “;lançamento”; de verdade, mas apenas uma “;impressão”;, que aliás foi bancada por mim. Nunca tive a ousadia de submeter os originais a uma editora para avaliar suas possibilidades, mesmo porque não acho que o livro teria boa receptividade entre os editores mainstream, apesar de ter ganhado a bolsa para obras em fase de conclusão, da Biblioteca Nacional, em 98. Queria apenas me livrar dos originais e colocá-los no mundo para que seguissem o seu caminho, e para isso não seria necessária minha presença física no Rio. Já que a minha intenção seria distribuí-lo de graça, não houve também uma necessidade de seguir um plano de marketing para divulgá-lo e promover vendas. É claro que a intenção será sempre a de que as pessoas leiam o livro, mas gosto de observar como ele se comporta sem uma interferência mercadológica. Pessoalmente, para mim foi muito importante me livrar do trapézio machadiano na cabeça que ele representava desde que ficou pronto.

Os distanciamentos, tanto no tempo quanto no espaço, não trouxeram maiores conseqüências. Estive no Rio, agora em dezembro, e o cenário do livro não mudou nem um pouco. Talvez o fato de situar a história na virada do milênio tenha tirado um pouco da sua atualidade mas, como você bem salientou na sua resenha, Macacos trata de um Rio de Janeiro de todos os tempos.

Como foi o processo de montagem da estrutura do livro? Há quanto tempo você cultivava a idéia montar uma história que contextualizasse vários de seus contos em um romance de metalinguagem?

Jamais tive essa idéia, isto é, de caso pensado, e nem parei um dia e decidi: “;Vou escrever um livro”;. Macacos surgiu de repente, quando percebi que era possível construir uma espinha dorsal que reunisse em torno alguns contos meus, usando uma espécie de corrente de palavras que eu andava a escrever e que depois viria a ser Macacos. A corrente era uma brincadeira pessoal, uma verborragia cheia de associações psicanalíticas reunidas com alguma preocupação literária, por assim dizer, mas sem qualquer aplicação prática nem maiores intenções. A metalinguagem foi usada para facilitar a conexão entre os diversos contos: nada melhor para colocá-los no mesmo saco que as críticas de Vlad... E assim o livro foi sendo escrito pelo caminho, à medida que as associações entre os contos e a corrente surgiam e sugeriam enredos, quase de forma espontânea.

E a seleção dos textos que fizeram parte dessa experiência? Você aproveitou “;Saviana”;, por exemplo, mas deixou de lado outro conto escrito originalmente para coletânea Intempol, “;O furacão Marilyn”;, quais foram os seus critérios de escolha?

A Intempol foi um grande estímulo para a elaboração do livro. O surgimento daquele universo compartilhado e suas possibilidades me fizeram ter vontade de escrever. Assim que Octavio Aragão criou a sua lista de discussão, escrevi ”;O furacão Marilyn”; e “;O ovo e a galinha”;, minhas primeiras tentativas de contribuir para o universo. Esses contos foram escritos sem qualquer pretensão, meio que de brincadeira e de uma penada só.

Já “;Saviana”; mereceu uma maior atenção, porque a Intempol já ganhava uma dimensão mais consistente. O critério de escolha foi muito simples, porque a minha produção é bem limitada: de todas as minhas tentativas, os contos que estão no livro são os únicos que considero sofríveis para publicação.

Entre os dois personagens principais de seu livro há um único consenso, ainda que com alguma diferença de intensidade: a crítica à FC como gênero literário. O antagonista Vlad a classifica como masturbação e diz que “;essas histórias não têm absolutamente nenhum motivo que não seja tentar inflar o ego de quem as escreve”;. Já o personagem narrador diz acreditar que “;a ficção científica já morreu e não sabe”;. E você mesmo, como autor, não personagem, qual sua opinião a respeito do assunto?

Eu e Vlad somos bastante preconceituosos, é verdade…; O fato é que posso estar falando sem conhecimento de causa, porque minhas leituras de FC são bastante limitadas e restritas a alguns clássicos do gênero, e àqueles continhos do tipo da Asimov Magazine, mas intuitivamente penso realmente que a FC anda nos seus estertores. E, como todo preconceituoso, tenho o mau hábito de não gostar de várias coisas mesmo antes de conhecê-las, e uma dessas coisas é a FC pós-moderna e os seus subgêneros, tais que cyberpunks, pulps e afins. Talvez o meu encanto com a FC tenha se desfeito ao mesmo tempo que se desfizeram os sonhos de futuro que minha geração possuía.

Durante a virada de 60/70, era quase certo que o futuro próximo nos reservaria viagens interplanetárias, hotéis na lua e outras maravilhas tecnológicas. A FC era baseada nesses sonhos, ao mesmo tempo que os alimentava. Depois que o futuro desmoronou, perdi o interesse e não mais acompanhei o mainstream.

Quanto à FCB, há coisas boas e outras nem tanto. Desconfio que há uma certa tendência para o pastiche, para simular fórmulas alheias retiradas dos ídolos dos escritores. Faltam, é verdade, aquela obra emblemática, aquele autor consagrado, apesar de haver gente com bastante talento escrevendo. Talvez seja uma questão de estatística, como diria um macaco: se a gente produzir bastante, um dia, por força estatística, pode ser que alguém traga a redenção para a FCB.

E por que, dentre tantas possibilidades existentes, você, um jornalista, escolheu a ficção científica para expressar seu lado literário?

Não sei se foi uma “;escolha”;, porque não decidi delibradamente escrever FC. Apenas escrevi o que imaginei, e se o resultado pode ser chamado de FC, não há problemas. Mas prefiro deixar a catalogação do livro em aberto.

O projeto colaborativo Macacos é uma das bases do seu primeiro livro. Quando e de onde veio a idéia para elaborar tal iniciativa e o que você tem achado da evolução da experiência ao longo dos anos?

A idéia de abrir a corrente veio como conseqüência natural do livro, e foi muito interessante trazer para a realidade o conceito contido no livro.

Quer dizer, até agora a corrente tem cumprido no mundo real exatamente a função que lhe foi atribuída inicialmente no livro. Se ela vai seguir o destino que o livro lhe preparou, isso é outra história, mas por enquanto a realidade está acompanhando a ficção. A evolução de Macacos foi realmente impressionante durante esses anos. Por algum tempo, o website ficou estacionado num canto distante da internet, e tinha muito poucas colaborações, ainda que chegassem duas ou três contribuições à corrente por mês. Depois que ela encontrou seu domínio próprio ( www.macacos.net ) a coisa decolou. Hoje, mais de 90% da corrente foram acrescentados pelos visitantes do site, que escrevem de tudo ali. Isso com pouca ou nenhuma divulgação. Não posso deixar de reconhecer, no entanto, que ela recebeu um impulso fantástico de um entusiasta de primeira hora: Carlos Alberto Teixeira (CAT), d’;O Globo, que dedicou uma sua coluna inteira para a corrente, muito antes do livro ser lançado.

Ao longo do texto, são citados vários autores de diversos estilos, Nietzsche, Borges, Eco, Poe, Clarke, Miller... Quais são os escritores que mais o influenciam na hora de elaborar seus trabalhos de ficção? E o que você anda lendo atualmente?

É difícil listar os autores que me influenciaram, porque acho que essa influência está num nível inconsciente, mas com certeza esses que você citou estão presentes, e mais pelo menos uma centena de outros, ainda que eu não consiga identificar nada desses autores no meu texto (quem me dera!).

Não procurei reproduzir nenhum estilo específico no livro, e também acho que ainda não desenvolvi um estilo próprio, para que possa ser analisado sob uma ótica de influências. Quanto às leituras, tenho lido muito pouco, mas no momento leio um livro bem interessante sobre o xadrez - O jogo imortal, de David Shenk -, sobre como a dinâmica do jogo parece ser um simulacro em menor escala de todos os dramas vividos pela humanidade.

Aparentemente, ao final do livro você fez uma pesada sessão de autopsicanálise e até de autoexorcismo. Como foi passar por tal experiência e, quanto à sua relação com a crítica e com a autocrítica, algo mudou depois de escrever e, finalmente, publicar a obra?

De novo, tudo me parece um processo inconsciente. Não estruturei o livro deliberadamente com essa intenção pessoal, mas ela acabou surgindo com o seu desenvolvimento. E, coincidência ou não, o livro transformou mesmo a minha vida, começando pelo fato de os originais terem ganhado o prêmio da BN.

Isso me valorizou como profissional e me abriu portas aqui nos EUA, onde acabei por me fixar, abrindo um jornal. Embarquei para cá exatamente dez dias depois de receber a premiação por Macacos durante a Bienal do Livro de 99, e o deixei de molho desde então. Agora, oito anos depois, parece que ele está a fim de transformar a minha vida novamente…;

Neste intervalo de mais de oito anos entre o começo e o fim de Macacos você pensou em voltar a desenvolver algum novo projeto? No futuro próximo há a possibilidade de sair mais algum livro seu ou alguma nova experiência interativa?

Durante este período estive muito ocupado com a estruturação da minha vida profissional aqui nos EUA, empenhado na construção e consolidação do meu jornal como empresa. Hoje, já posso relaxar um pouco e voltar a pensar em coisas como literatura e música, duas paixões (e frustrações). Tenho algumas idéias gravitando, mas preciso antes resgatar o hábito de escrever regularmente e desenvolver uma certa disciplina.

Não acredito que um possível novo livro venha nos moldes de Macacos, acho que ele já foi para o mundo. Possivelmente será alguma coisa mais convencional, uma história simples.

Moços do corpo dourado

O texto literário mais antigo do qual se tem conhecimento foi escrito por um autor anônimo em tábuas de argila utilizando caracteres que lembram o formato de cunhas. Trata-se de um poema épico dividido em 12 partes que narra os feitos heróicos de Gilgamesh, o rei semilendário de Uruk, na antiga Mesopotâmia, na época em que aquela região da Ásia era ocupada pelo povo sumério. Basicamente, conforme foi traduzida no século XIX, após passar milénios no esquecimento, a epopéia descreve como o soberano se embrenhou na aventura em busca de um dom que ele, apesar de ser filho de uma deusa e de um semideus, não herdou no nascimento: a vida eterna. Passados quase 5 mil anos do surgimento daquele marco da literatura, para ser mais exato foi em 2003, um livro nacional de ficção científica fez a transposição de tal mito para os tempos de hoje, com a vantagem extra de trocar os incômodos retângulos de argila pelo papel e de ter substituído quase todos os símbolos cuneiformes pelo nosso velho conhecido alfabeto latino.

O título da obra em questão faz referência a outra inovação típica dos sumérios - neste caso, arquitetônica - os zigurates, as primeiras construções a desafiar os limites terrenos se lançando aos céus e que, não por acaso, deram origem ao mito da Torre de Babel. Zigurate - Uma fábula babélica é o quarto e mais recente livro do gaúcho de Porto Alegre Max Mallmann, atualmente um residente da capital fluminense onde trabalha como roteirista da Rede Globo. Em termos literários, ele, que é formado em direito, estreou em 1989, aos 20 anos, com Confissões do minotauro; em seguida veio Mundo Bizarro; Síndrome de quimera, publicado no ano 2000 pela mesma editora Rocco de Zigurate, foi traduzido para o francês e chegou a ser finalista para o renomado prêmio Jabuti. Já no plano do audiovisual, escreveu sua própria telenovela, Coração de estudante, colaborou com a soap opera Malhação e, hoje em dia, faz parte da equipe de criação do seriado A grande família.

Ou seja, há quase 20 anos, ele vem se dedicando a vários temas, dos dramas adolescentes a comédias familiares, passando por trabalhos em literatura fantástica, com ênfase na fantasia. Vamos pegar o exemplo de Mundo Bizarro, publicado em 1996 com recursos da prefeitura da capital do Rio Grande do Sul, quando o escritor assinava com o nome Max Mallmann Souto-Pereira. O livro conta a história de um porto-alegrense que misteriosamente foi parar em outro planeta - ou seria outra dimensão? Ou ainda um universo paralelo? - habitado por um povo atrasado tecnologicamente que cultuava três mil deuses diferentes. Foi em Zigurate que ele se aventurou de modo mais explícito, e com maturidade autoral, no terreno da FC, mesmo sem abandonar outras vertentes literárias. Com isso, não só escreveu um dos melhores romances do gênero lançados nesta década, como ainda criou dois dos mais carismáticos e bem construídos personagens de nossa ficção científica em todos os tempos.

No livro do século XXI, quem repete a epopéia do rei sumério em uma longa viagem em busca da Vida é uma pesquisadora francesa chamada Sophie Brasier. Aos 30 anos, convivendo com o vírus HIV desde os 20, ela descobre que a mistura do coquetel anti-Aids com os genes ruins herdados do pai a condenou a uma morte certa por ataque cardíaco em uma questão de meses. Sem nenhum relacionamento amoroso há anos, sem amigos próximos, tendo como família apenas a mãe ausente e uma samambaia, a parisiense se agarra a única coisa que lhe restou na tentativa de evitar a insanidade: concluir sua tese de doutorado em antropologia denominada Interpolações dos mitos mesopotâmicos no texto bíblico. Para ajudar a explicar o título, vale lembrar um exemplo no caso já citado. Um dos pontos narrados no Poema de Gilgamesh diz respeito a uma grande inundação bastante semelhante àquela presente no trecho da Bíblia sobre a Arca de Noé. A diferença principal é que o protagonista da lenda suméria, Ziusudra, ao contrário do patriarca bíblico, recebeu de seu deus, Ea, a dádiva tão cobiçada pelo rei Gilgamesh, a imortalidade.

"Sophie não tinha teorias bombásticas, não queria provocar polêmica e nem revolucionar o mundo acadêmico", apontou Mallmann. "Queria apenas escrever uma tese clara, lógica, fria e legível. Como uma lápide, seu último trabalho intelectual antes de morrer". Com tamanha motivação, a antropóloga fez algumas descobertas que, caso pudessem mesmo ser comprovadas, iriam sim causar polêmicas e revoluções. E não apenas na academia. Aqui talvez seja prudente esclarecer um ponto: um leitor de hoje, que não conheça o livro do gaúcho, pode encontrar semelhanças entre a descrição da trama de Zigurate com o megasucesso O código da Vinci, mas a comparação não é de todo procedente. Por uma questão cronológica, a obra de Dan Brown nunca poderia ter sevido de inspiração, afinal, coincidentemente, ela também foi lançada em 2003, nos EUA, e só viria a estourar como sucesso a partir no ano seguinte, culminando com a adaptação cinematográfica de 2006. Além disso, não é patriotada dizer que o material nacional é estilisticamente bem superior ao daquele livro mais famoso - e, em outra coincidência, que também é o quarto lançado pelo escritor americano. Se for para arriscar alguma influência do gaúcho, é mais certo apostar em uma dupla de escritores e quadrinistas britânicos. Pela temática, Alan Moore, com a série de HQ Promethea, lançada em 1999, e, pela construção de personagens, Neil Gaiman, principalmente por Morte, irmã mais velha de Sandman, criaturas cult dos anos 80.

Voltando a Zigurate. O ponto de partida para a investigação científica foi a carta que Sophie descobriu em uma biblioteca francesa, contendo a reprodução do texto de uma Bíblia escrita no século XII. Era uma versão apócrifa e aparentemente herética do primeiro livro que compõe as escrituras sagradas. Nesse Gênesis alternativo, escrito em latim clássico ao longo de 14 versículos, estava contada a origem de um casal anterior a Adão e Eva, os misteriosos Lugal e Nin que vieram ao mundo no sexto dia da criação. Eles sim teriam sido feitos à imagem e semelhança de Deus, tanto que foram agraciados com a vida eterna. Parte disso se explica pelo material utilizado na confecção dos seres primogênitos, pois eles foram esculpidos em ouro, único metal capaz de refletir "com seu brilho imperecível" a glória e a imagem divinas. Porém, eles acabaram por afrontar o Criador e, como vaticina o capítulo 2, versículo 5 do texto, acabaram punidos:

"O Senhor Deus, arrependido de sua criação, depôs Lugal e Nin do trono do mundo recém-feito. E Deus lhes disse: 'Imortais vos fizemos. Imortais vós sereis. Mas vossa semente será estéril. Não deixareis filhos nem herdeiros. Vagareis sem destino pela terra até o final dos tempos, e nenhuma memória restará de vossa existência, pois este mundo já não mais vos pertence'".

Arrependido da experiência pioneira, Deus resolveu tentar novamente, agora com algumas salvaguardas. Trocou a nobreza perene do ouro pela simplicidade fugaz do barro na hora de moldar Adão. Foi assim que o novo homem e, por consequência, a mulher que recebeu sua costela se tornaram um par "debilis et imbecillus, fragilis et mortalis", ou seja, "débil e quebradiço, frágil e mortal". Apesar do ceticismo do orientador da pós-graduação, dos protestos da mãe e da gravidade de sua doença, Sophie Brasier mergulhou de tal forma na pesquisa que, ao longo dos meses, acabou econtrando referências em uma infinidade de fontes históricas. Os nomes Lugal e Nin, de origem suméria, surgiam, por exemplo, compondo a nomenclatura de deuses e de reis em textos acádios, babilônicos e assírios, além dos citados pais de Gilgamesh: a deusa Ninsun e o rei divino Lugalbanda.

Mas não parou por aí. Aparecem pistas nos relatos dos homens do exército de Napoleão que invadiram o Egito e nas listas de condenados à guilhotina durante o período de terror da Revolução Francesa, assim como entre as mulheres julgadas como bruxas pela Inquisição espanhola. Ainda na Espanha, surgem relatos de um Lugal entre os combatentes da Guerra Civil, do mesmo modo que entre os soldados soviéticos que tomaram Berlim no colapso da II Guerra Mundial. Há uma Nin na redação do Pravda durante a Revolução Russa e surge uma foto dela em uma reportagem da Vogue tirada na Inglaterra há 40 anos. Voltando a comparar com o O código da Vinci, até mesmo uma pintura antiga fornece pistas da existência real daqueles misteriosos seres que, a depender da inspiração poética de quem os descreve, têm a pele de um "amarelo solar", "amarelo mostarda", "cor de uísque", "matiz ambarino", "anêmica", "cor de mijo" ou de "gema de ovo frito".

Depois de praticamente um ano, contrariando os diagnósticos em relação à sua expectativa de vida, a doutoranda resolve deixar a especulação teórica de lado e parte para a pesquisa de campo. Sua empreitada a leva até à Escócia para tentar ao menos provar a veracidade de parte dos seus achados. Enquanto isso, alheia ao interesse acadêmico que lhe envolve, a outra metade da trama se desenrola em um cenário bem mais conhecido dos brasileiros: a cidade do Rio de Janeiro. Por lá, o ritmo da história é outro, substituindo neurônios europeus por adrenalina das Américas. Chovem bala e sangue numa mistura de corrupção política com violência dos morros cariocas. Mas o tratamento dispensado à narrativa também é diferente, Mallmann substituiu o realismo com que tratou o ambiente acadêmico francês por um tom mais de fábula mesmo, como sugere o subtítulo. Por isso, não é o caso de se esperar uma descrição cruenta da realidade urbana nos moldes de um "Feliz ano novo" de Rubem Fonseca; seria mais adequado comparar o lado brasileiro da história com algum roteiro de Quentin Tarantino, algo como um Amor à queima roupa carnavalizado. Isso ajudou a deixar o texto ameno e bem-humorado, mas também acabou abrindo portas para alguns personagens mais rasos, quase caricatos. Talvez Zigurate tivesse a ganhar com a ausência de alguns deles.

Analisando o livro como um todo, em poucas páginas, com um ritmo alucinante e a urgência de um moribundo que se agarra à sua última chance de salvação, Mallmann produz um apaixonante tour pela História, da mais remota antiguidade aos dias atuais. Serve como prova de que a ficção científica pode usar como tema de extrapolação todas as formas de conhecimento organizado, como a antropologia e a filologia, e não apenas ciências exatas - apesar de, quase ao final das 223 páginas da obra, surgir uma muito interessante possibilidade envolvendo física teórica avançada. O grau de detalhismo e a veracidade com que o autor constrói o cenário e seus protagonistas tornam quase irresistível ao leitor algumas pesquisas pelas inúmeras referências textuais. A cada resposta do Google, este novo oráculo onisciente e onipresente, mais impressionante se demonstra a costura do texto e a erudição pop do escritor. Aguça a curiosidade e deixa no ar a pergunta: o que mais poderia ser feito se algumas lacunas fossem preenchidas? Ao fim, Zigurate - Uma fábula babélica não é apenas uma recriação em vários níveis da saga de Gilgamesh pela busca da existência eterna. O livro também é uma apaixonada e muito bem engendrada homenagem à palavra escrita, com as diferentes tecnologias que, ao longo dos tempos, lhe garantiram a existência e, de quebra, também fizeram com que a história e a cultura se tornassem possíveis. Não importando se tais tecnologias sejam laptops, endereços eletrônicos, o lápis ou tábuas de argila gravadas com caracteres cuneiformes.

A permanência da palavra e a finitude humana

Por um exercício de masoquismo nostálgico, ele - que odeia máquinas de escrever - programou o computador de casa para imitar o mesmo som que ouvia da velha Olivetti do pai enquanto datilografava, há duas décadas, seu primeiro romance. Do final dos anos 80 para cá, houve mais mudanças na vida dele que a simples evolução tecnológica na hora de redigir seus textos. O gaúcho de Porto Alegre, morador da capital fluminense desde pouco antes da virada do milênio, se tornou um renomado roteirista de TV e um dos raros sucessos comerciais e de crítica da literatura fantástica nacional. Na entrevista a seguir, o escritor fala das motivações por trás de seu livro mais recente, Zigurate; de como, mesmo aprendendo no curso de Direito a não confiar cegamente nela, criou uma homenagem à perenidade da palavra escrita; dos planos para levar tal obra ao cinema; e ainda dá dicas para escritores novatos de FC. Com vocês, o advogado que não aprendeu a dar nó em gravata, Max Mallmann.

Podemos começar por uma breve retrospectiva da sua carreira de autor, tanto de textos literários quanto dos feitos para TV? Desde sua estréia, há quase 20 anos, já foram quantos textos escritos, mesmo entre os ainda não publicados, como contos, e roteiros de programas de televisão? Quantos prêmios decoram sua estante?


Cara, quase vinte anos. Isso me assusta. Quando encasquetei que iria ser escritor, eu rabiscava historinhas com caneta Bic nos cadernos da escola. O primeiro romance que publiquei foi metralhado a muito custo na Olivetti do meu pai, com muitos retoques em Liquid paper, que era uma tinta branca que a gente, nos tempos jurássicos, usava para corrigir erros de datilografia. Eu odiava Liquid paper, cujo fedor de querosene me dava náuseas, odiava a Olivetti do meu pai, e não só ela, odiava máquinas de escrever em geral, quase tanto quanto odiava escrever em cadernos espirais desbeiçados.

Começar a redigir no computador foi uma libertação. Mesmo assim, hoje tenho um programa que reproduz, no teclado do PC, o barulho de uma máquina de escrever. Deve ser uma espécie de nostalgia masoquista.

Enfim, perto da geração blogueira, sou um matusalém.

Tenho quatro romances publicados. E dois inéditos que jamais irei publicar. Sim, isso mesmo. Dois trabalhos da juventude, um com cento e tantas páginas e outro com mais de trezentas, que acho que não merecem ser lidos. Eles nem existem em versão digital. São datilografados. Estão perdidos em algum armário aqui de casa, sendo lentamente devorados pelas traças.

Dois ou três contos que escrevi foram publicados em coletâneas, mas nunca fui bom contista. Devo ter meia dúzia de contos inéditos que nem sei mais onde estão.

Escrevi alguns poemas, naquela idade em que é perdoável escrever poemas, entre os dezesseis e os vinte e poucos. São todos inéditos, felizmente. Inéditos e desaparecidos, a menos que algum daqueles cadernos antediluvianos tenha sobrevivido em alguma gaveta. Não serei eu que irá procurá-los.

Publiquei quatro romances, como já disse. Os dois primeiros lá em Porto Alegre, os dois mais recentes aqui no Rio, pela Editora Rocco.

Você falou em prêmios. Não são muitos. Meu primeiro livro, Confissão do minotauro, foi um dos ganhadores do prêmio “Nova literatura” do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. Meu segundo trabalho, Mundo bizarro, foi selecionado pelo Fumproarte, da prefeitura de Porto Alegre, e ganhou o prêmio Açorianos de melhor romance publicado no Rio Grande do Sul em 1996. O terceiro, Síndrome de quimera, foi um dos dez finalistas do prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.

Como roteirista de TV, escrevi para Malhação por dois anos, trabalhei na equipe de uma novela das seis, Coração de estudante, fiz Carga pesada por um ano e, desde 2005, sou da equipe que escreve A grande família.

Sua formação acadêmica é o direito, mas você estreou como escritor muito jovem, com Confissão do minotauro sendo lançado quando mal tinha completado 20 anos. O que o levou a essa escolha na atividade profissional e como foi sua preparação para ela no início? Participou de muitas oficinas e cursos de literatura ou é mais autodidata mesmo?

Sempre digo que adoro aprender, mas detesto que me ensinem. Prefiro correr aos livros a perguntar a alguém. É meu velho conflito com a autoridade, que me faz desconfiar dos professores. Apesar dessa neurose, sou obrigado a reconhecer que não sou autodidata. Mesmo fugindo dos mestres, acabei tendo bons interlocutores, com quem aprendi bastante. Mas nunca tive um aprendizado formal na literatura, salvo um semestre que fiz no curso de Letras da UFRGS. Não gostei. Meus colegas se dividiam entre os que estavam dando um tempo até passar em outro vestibular e os que haviam desistido de fazer outro vestibular. Quanto aos professores... Eram bons, admito. Infelizmente, como já mencionei, adoro aprender, mas detesto que me ensinem. Desisti.

Sou bacharel em Direito (ainda me assusta escrever isso, mesmo depois de tantos anos) formado pela UFRGS. Tenho o diploma, sou inscrito na Ordem dos Advogados, porém jamais exerci a profissão. Meu maior orgulho é ter concluído o curso sem jamais ter aprendido a dar o nó na gravata. A única matéria que me despertava algum interesse era o Direito Romano. Acho que o Direito me ensinou a não confiar nas palavras. O texto, mesmo que seja o texto da lei, jamais existe pos si só. Depende sempre da interpretação.

Seus primeiros dois livros saíram por pequenos projetos editoriais e com modalidades de incentivo cultural. Qual foi a importância desses apoios para um autor iniciante, ainda mais um que tratava de temas pouco ortodoxos como ficção científica e fantasia?

Qual a importância? Foi fundamental. Concorri com muita gente e fui selecionado pelo Instituto Estadual do Livro. Depois, concorri com mais outros tantos e fui selecionado pelo Fumproarte. Isso me fez acreditar que eu não estava tão errado em querer ser escritor. E foi assim que me tornei profissional. Hoje, francamente, acho que esses dois primeiros romances eram bem ruinzinhos, mas, de qualquer jeito, eles me abriram muitas portas.

Aliás, devo dizer que nunca sofri preconceito por escrever ficção científica e fantasia. Talvez nem exista esse preconceito. Ou, se existe, não é exatamente contra o gênero. É contra o pastiche. A cópia da cópia da cópia nunca é bem vinda. O que eu faço pode até não ser bom, mas também não é pastiche.

A outra metade de sua obra literária já saiu por uma das grandes editoras do país, a Rocco. Ter o livro lançado com o selo de uma empresa de porte é o grande objetivo dos escritores de FC nacionais, que vivem, em sua maioria, uma realidade de autopublicação dos títulos ou de participação em coletâneas. Você poderia contar um pouco sobre sua experiência até chegar a essa editora e, se possível, dar algumas dicas aos interessados em tentar repetir o feito?

Quando vim morar no Rio, em 1999, eu tinha dois romances publicados, tinha ganho concursos e tinha recebido críticas favoráveis na imprensa do Rio Grande do Sul. Achei que podia arriscar um contato com uma editora grande.

A primeira, e única, que procurei foi a Rocco, que é a mais aberta a novos autores. Telefonei, marquei uma hora e fui lá, com o meu currículo e o Síndrome de quimera debaixo do braço. Três meses depois, assinei o contrato de publicação. Síndrome de quimera foi lançado em 2000.

Fácil? Vamos fazer as contas. Em 1987, terminei de escrever Confissão do minotauro. Em 1989, a Confissão saiu pelo IEL do Rio Grande do Sul. Meu primeiro contrato com a Rocco foi assinado em 1999. Dez anos.

Minha lição aos novatos? Dêem um passo depois do outro. E não tenham pressa.

Podia ser pior. Jogadores de futebol estão acabados antes dos quarenta. Escritores são mais longevos. O rótulo de “jovem escritor” gruda na pele até aí pelos cinqüenta e cinco, pelo menos.

Sobre Zigurate: ele parece ser o livro em que você mais levou a sério as possibilidades de se trabalhar dentro do gênero da FC. De onde veio a idéia inicial e quanto tempo você levou entre a pesquisa dos vários tópicos desenvolvidos nele e na produção do texto em si?

A idéia vinha voejando pela minha cabeça desde 2000. Eu queria escrever um romance que falasse da permanência da palavra escrita em contraposição à finitude humana. Queria falar de morte e imortalidade. E queria, por nenhum motivo lógico, só por fetiche, uma personagem que fosse uma pesquisadora francesa.

A base de Zigurate é a epopéia de Gilgamesh, o texto literário mais antigo de que se tem notícia. Comecei a reunir material e a pesquisar só em 2002, e concluí o romance em 2003. Tentei, na medida das minhas forças, costurar realidade e ficção de forma que ficasse difícil distinguir uma da outra.

Muitos leitores vêm me dizer que foram pesquisar no Google datas, nomes de pessoas ou de lugares, acontecimentos históricos citados no livro. E encontraram quase tudo...

Os protagonistas de seu livro são dois personagens tão carismáticos e com tanta riqueza de detalhes em seu passado que vale a pergunta: você já pensou em fazer uma continuação da história? Seja a partir do ponto em que o livrou parou ou mesmo alguma aventura anterior da dupla?

Pensei, sim. Mas não a sério. Por enquanto, não tenho nada de novo a dizer sobre o universo de Zigurate. Um dia, talvez, quem sabe?

De qualquer modo, é bom ver que deixei em alguns leitores essa sensação de “quero mais”.

E quanto a adaptações? Trabalhando com roteiros de TV há tanto tempo, paralelamente à atividade de escritor de FC&F, já pensou em transformar algum de seus livros em um projeto audiovisual, seja como série, especial ou mesmo filme? Já chegou a discutir a possibilidade de adaptar Zigurate ou Síndrome de quimera com alguém da direção da Globo?

Sempre vi como atividades diferentes a escrita de roteiros e a escrita literária. Para mim, a diferença é análoga à que existe entre a escultura e a pintura. São duas especialidades distintas dentro de uma mesma arte.

Assim, tenho o “modo roteirista” e o “modo escritor”.

Mas, veja só, Zigurate está a caminho de virar filme. Um produtor comprou os direitos e já existe um roteiro pronto. Fazer cinema é um processo lento, então acho que daqui há uns dois ou três anos talvez possamos ver Zigurate nas telas.

E além dos seus livros, na sua opinião que outras obras da ficção científica nacional poderiam render boas adaptações para o cinema ou para a TV? Há espaço para esse tipo de proposta atualmente? E essa seria uma maneira viável de despertar o interesse do brasileiro para produções nacionais do gênero?

Acredito que haja espaço para muita coisa. A TV brasileira investe cada vez mais em novos seriados. E o cinema nacional também está se diversificando.

Temos muitos trabalhos nacionais que poderiam render boas adaptações para TV ou cinema. Só para citar alguns, assim, de estalo: o projeto Intempol, capitaneado pelo Octavio Aragão, o álbum O Instituto, da dupla Osmarco Valadão e Manoel Magalhães, os contos do Carlos Orsi Martinho, o romance Quintessência do Flávio Medeiros, a história brasileira alternativa do Gerson Lodi-Ribeiro e vários outros.

Agora, sinceramente, não sei responder se há uma maneira viável de despertar o interesse do leitor brasileiro pela literatura fantástica brasileira.

Meu conselho a quem escreve literatura é: não escreva pensando no público. O público é uma abstração. Escreva para você mesmo, e seja um crítico selvagem do seu próprio trabalho.

Quais são suas maiores influências, nacionais e internacionais, aquelas que são marcantes em seus trabalhos? E quanto a novos autores, dentro do gênero fantástico, há alguma novidade que tenha lhe chamado a atenção?

Minhas influências? Ah, muita gente. Sou muito “influenciável”. Vamos ver... Monteiro Lobato, Machado de Assis, Erico Verissimo, Jorge Luiz Borges, Luis Fernando Verissimo, Mario Quintana. Muitos mais. E, não posso deixar de mencionar, Carl Barks, meu primeiro mestre.

Quanto a novos autores, tem muita gente boa. Alguns já publicados em livro, como o Flávio Medeiros, e outros que, por enquanto, só publicaram na internet, como a Ana Cristina Rodrigues, que é um dos nomes mais promissores da nova geração.

Você já tem algo planejado para o futuro, algum novo projeto de livro ou de trabalho na televisão que possa comentar?

Na TV, continuarei, na temporada de 2008, na equipe que escreve o seriado A grande família. Tenho muito orgulho desse trabalho e me sinto privilegiado por trabalhar numa excelente equipe de roteiristas (somos nove profissionais escrevendo o programa), e por escrever para um elenco de primeira linha.

No cinema, há esse projeto da adaptação do Zigurate. Julio Uchoa, o produtor, queria que eu mesmo escrevesse o roteiro, mas eu disse a ele que só sabia contar a história de um jeito: o jeito do livro. Assim, o principal responsável pela adaptação foi o roteirista Sylvio Gonçalves (que, além de ser meu amigo, também é autor de ficção científica). Claro que eu colaborei, e não só eu. Também fazem parte da equipe os roteiristas Adriana Lunardi e Bruno Garotti.

Na literatura, venho trabalhando desde 2005 num romance novo, que será lançado em 2008, pela Rocco. É uma história que se passa no século I, em Roma...