sábado, 11 de outubro de 2008

Viagem ao centro da FC

A ficção científica costuma ter uma relação curiosa com público e crítica. Nos países em que o gênero literário conta com uma maior carga de tradição, como os EUA ou a Inglaterra, alguns escritores se tornam fenômeno de venda, mas tamanha popularidade costuma gerar desconfiança entre os críticos. Por outro lado, existem países em que a literatura, falemos na de gênero ou não, desconhece o que seja atingir uma massa de leitores. Nem é preciso dizer que este é o caso do Brasil. Por aqui, mesmo sem fazer valer o adjetivo de “popular”, com livros nacionais ou mesmo traduções de material estrangeiro raramente chegando à casa dos milhares de exemplares, a FC é relegada a segundo, terceiro ou último plano pela crítica. Todavia, se a interação com público e crítica não tem sido das mais profícuas, há um terceiro território em que os textos fictícios sobre especulações científicas recebem cada vez mais atenção: o ambiente universitário.

Pode não chegar a ser um avanço que inspire otimismo, mas não deixa de ser uma evolução o que vem ocorrendo. Entre 1967 e 1987, foram publicadas seis obras nacionais dispostas a analisar o tema. Meia dúzia de títulos em duas décadas. Nos anos 2000, mais exatamente de 2002 a 2006, já havia se conseguido igualar aquele número. Em 2007, um sétimo livro foi lançado, o mesmo de onde foram retirados os dados para este parágrafo, e com isso se renova a esperança de que a FC possa entrar cada vez mais na agenda do público, da crítica e da academia. Volta ao mundo da ficção científica presta uma contribuição e tanto neste sentido ao abrir espaço para discutir, sob vários ângulos, este gênero da literatura fantástica, irmão mais novo da fantasia e do terror.

De início, o interesse da dupla de organizadores, Edgar Nolasco e Rodolfo Londero, era se restringir a estudos sobre a produção brasileira. Com o tempo de elaboração, o escopo do livro lançado pela editora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) se ampliou: dos nove artigos, dois terços realmente tratam de temas locais; o restante traz visões de brasileiros a respeito de obras e de autores de outros países. Uma outra contribuição, muito bem-vinda, foi a inclusão de um conto inédito na coletânea. Vamos ver neste texto um apanhado do que Volta ao mundo da ficção científica oferece a seus leitores ao longo de 168 páginas.

O livro abre com textos de seus organizadores. Em “Clarice e a ficção científica”, Edgar Nolasco analisa as ligações de uma de nossas mais consagradas escritoras com o gênero. Doutor em literatura comparada e professor da UFMS, Nolasco é um pesquisador com mais de um trabalho em elaboração a respeito da obra de Clarice Lispector. Neste paper, ele foca tanto em algumas das traduções que a escritora fez para textos de Edgar Allan Poe e Jules Verne, quanto em um conto de FC criado por ela para o livro A via crúcis do corpo, de 1984, “Miss Algrave”, que conta com a participação importante de um alienígena na trama.

Rodolfo Londero, jornalista e mestre em letras pela UFMS, além de co-organizador da obra, contribui com um estudo sobre tema mais amplo em “Níveis de recepção do cyberpunk no Brasil: um estudo de casos exemplares”. Para tratar do impacto do subgênero (e movimento) criado nos EUA por William Gibson, em meados dos anos 80, o pesquisador dividiu os casos em três níveis. No primeiro, o “direto”, ele enquadra autores brasileiros que dialogam frontalmente com as obras inaugurais do cyberpunk, caso de Fábio Fernandes e de alguns contos de sua coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, do ano 2000. No que chamou de “recepção análoga”, Londero se refere a material nacional que captou o espírito do tempo que marcou a obra de Gibson, mesmo sem seguir o cânone daquele e de outros escritores americanos. Um exemplo citado é o livro Piritas siderais, cujo autor, Guilherme Kujawski afirmou em entrevista ao pesquisador que desconhecia o próprio termo cyberpunk, apesar das semelhanças entre sua obra, de 1994, e as temáticas do movimento criado uma década antes.

O nível a que o artigo dedica mais espaço levou o nome de “indireto” e seria o de obras brasileiras que dialogam com trabalhos precursores da ficção cyber. Neste conjunto de textos que compartilham um repertório semelhante ao dos americanos – por exemplo, a influência do filme Blade Runner, do diretor Ridley Scott – estão as criações do cantor e performer Fausto Fawcett, como o livro Santa Clara Poltergeist, de 1991.

“Ficção científica e o despertar do interesse científico: o fator eureka” é o nome da contribuição mais atípica da coletânea. De autoria do jornalista especializado em divulgação científica e em letras e literatura Alfredo Suppia, o texto é o único que prioriza exemplos vindos do cinema no lugar da literatura, para demonstrar como este gênero é capaz de despertar o interesse do público pela ciência. São vários os filmes que o autor analisa para comprovar sua tese, entre eles duas películas nacionais, Parada 88: limite de alerta, dirigido em 1988 por José de Anchieta, e Abrigo nuclear, feito em 1981 com a direção de Roberto Pires. Ambas as histórias são distopias ecológicas, retratando futuros próximos em que o meio ambiente se encontra irremediavelmente modificado pela ação humana. Seja nas citações locais ou nas internacionais, o artigo busca apresentar exemplos daquilo que o autor denominou de “fator eureka”, ou seja, o elemento sedutor capaz de familiarizar a audiência com temáticas da ciência real.

Talvez o artigo com interesse menos universal do conjunto seja o que vem a seguir. “História e representação: o jogo de memória e realidade em O homem do castelo alto, de Philip K. Dick” tem como objeto de pesquisa um dos romances mais conhecidos do consagrado autor americano. A obra de 1962, recentemente republicada no Brasil pela editora Aleph, imaginou uma história alternativa em que os vencedores da II Guerra Mundial foram os japoneses e os alemães, povos que dividiram entre si os Estados Unidos. O paper foi escrito pelo então doutorando Anderson Gomes e trata dos vários modos com que o “passado real” se relaciona com a “narrativa imaginada” naquela obra. Este é o texto que mais exige um conhecimento prévio do leitor nos temas abordados em suas páginas.

O quinto artigo foi escrito por um autor que teve sua obra na ficção analisada em outro texto do mesmo livro, traduziu o romance que foi tema do capítulo anterior e que também escreveu um dos já citados livros teóricos sobre FC lançados na última década. Fábio Fernandes, doutor formado na área de comunicação e semiótica da PUC-SP, produziu a coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, foi o tradutor da edição mais recente de O homem do castelo alto e lançou em 2006 A construção do imaginário cyber: William Gibson, criador da cibercultura. No texto “Para ver os homens invisíveis: a Intempol e sua influência na literatura de ficção científica brasileira”, ele faz um estudo de caso do universo compartilhado criado pelo escritor Octavio Aragão, baseado em uma polícia internacional do tempo, que mobilizou dezenas de outros escritores nacionais em um projeto comum que abrange várias mídias. O autor do texto aponta o projeto Intempol como um exemplo possível para vencer aquilo que o jornalista e editor catarinense Dorva Rezende definira como sendo a invisibilidade cultural que atinge a FC nacional.

Um artigo que bem poderia render livro à parte é “A ficção científica no cordel”. Seu autor é outro escritor cuja obra serviu de tema para alguns dos outros colegas da coletânea e que também já havia contribuído com duas obras teóricas sobre a FC, uma lançada em 1985, O que é ficção científica?, e outra publicada 20 anos depois, O rasgão no real: metalinguagem e simulacros na narrativa de ficção científica. Braulio Tavares faz a inusitada comparação entre a literatura de cordel e os formatos em que foram publicadas várias das histórias de FC no exterior, como as dime novels ou as pulp magazines. Para isso examina duas obras representativas, uma escrita em Portugal e outra no nordeste brasileiro.

A contribuição lusitana é O balão aos habitantes da lua, um livreto em verso escrito em 1819 por José Daniel Rodrigues da Costa. Nele, se narra a aventura do personagem Robertson, um aventureiro que conseguiu chegar à lua e contatar seus habitantes viajando a bordo de um balão. Um exemplo equivalente encontrado no Brasil foi o folheto História do homem que subiu em aeroplano até a lua, de João Martins de Athayde, publicado no Recife em 1923. O protagonista desta segunda história, tembém narrada em versos, levou o nome de Baratão e foi outro que travou contato com selenitas. O artigo é uma rica e bem documentada análise que termina com esta conclusão: “cordel e FC são hoje primos em terceiro grau, mas sua acestralidade em comum não pode ser ignorada”.

Outro escritor de ficção e pesquisador da área assina o sexto artigo do livro. Roberto Causo escreveu Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950 em 2003 e o romance A corrida do rinoceronte, três anos depois, além de manter atualmente uma coluna sobre FC no site Terra Magazine. Com o artigo “O poeta que viu o disco voador”, o bacharel em letras português/inglês pela USP faz a análise da noveleta O 31º peregrino, publicada em forma de livro em 1993, pelo premiado escritor Rubens Teixeira Scavone. Aquele texto foi uma espécie de continuação informal de uma das obras mais significativas da história literária inglesa, os Contos da Cantuária, escrita pelo poeta inglês do século XIV Geoffrey Chaucer. A obra original contava como 30 peregrinos a caminho de Canterbury, para visitar o jazigo do arcebispo Thomas Beckett, faziam uma parada em uma hospedagem para compartilhar suas histórias. O brasileiro Scavone inseriu um novo personagem àquela narrativa, 650 anos depois, e com ele acrescentou uma carga de ficção científica e horror fantásticos ao cenário medieval, feitos esses analisados por Causo em seu paper.

O penúltimo artigo da coletânea guarda a particularidade de ter sido escrito com uma visão estrangeira sobre a produção de FC do Brasil. Sua autora é a americana M. Elizabeth Ginway, que já havia publicado um livro sobre o assunto em 2005, Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidades no país do futuro, e é professora adjunta de literatura portuguesa e brasileira na Universidade da Flórida. Em “A cidade pós-moderna na ficção científica brasileira”, a brasilianista enfatiza a importância dos aglomerados urbanos em várias histórias de FC produzidas no país. Como não poderia deixar de ser, as metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo assumem um papel de destaque nos exemplos dados. Seja em contos, como “Jogo rápido”, do já citado Braulio Tavares, texto incluído na coletânea A espinha dorsal da memória, de 1989, ou “Feliz Natal, vinte bilhões”, de Henrique Flory, publicado no livro A pedra que canta e outras histórias, de 1991, que mostram respectivamente a capital fluminense e a paulista como ambientes superpopulosos e ultraviolentos. A pesquisadora também analisa romances do cyberpunk nacional, alguns já citados anteriormente. Curiosamente, como ela chama a atenção, todos protagonizados por personagens negros: os dois ambientados no Rio, Silicone XXI, de Alfredo Sirkis, escrito em 1985, e o já mencionado Santa Clara Poltergeist; além do paulistano Piritas siderais, também já comentado.

Quem fecha a parte ensaistíca do livro é Ramiro Giroldo, por sinal o tradutor para o português do artigo da professora Ginway. A segunda contribuição de Giroldo na coletânea é o texto “Outra utopia”, um adiantamento do tema de sua dissertação de mestrado em estudos da linguagem na UFMS: a análise do romance Amorquia, publicado em 1991 e de autoria de um dos mais prestigiados escritores de ficção científica do Brasil, André Carneiro. O estudo do mestrando propõe uma interpretação daquele livro, sobre um mundo futurista em que a entrega de seus cidadãos aos prazeres sexuais são amplamente incentivados pela sociedade. A discussão segue sobre os limites e as diferenças entre utopias e distopias.

Quanto ao já anunciado conto que encerra Volta ao mundo da ficção científica, o autor é justamente André Carneiro. Precursor nos estudos sobre o gênero no Brasil, é dele o livro que os organizadores desta coletânea apontam como sendo o pioneiro no país, Introdução ao estudo da “science fiction”, de 1967. Carneiro teve seu trabalho publicado em mais de uma dezena de países e escreveu a noveleta “A escuridão”, que lidera a maioria das listas sobre qual é o melhor texto de FC nacional de todos os tempos. O conto que aparece no livro se chama “Pensamento”, e conta a história de um casal de pesquisadores envolvidos em uma experiência considerada proibida pelas autoridades: a clonagem de um cérebro.