Gerson Lodi-Ribeiro é um estreante neste formato do romance, mas na verdade pode ser considerado um dos mais veteranos e experientes escritores de nossa literatura fantástica. Começou a publicar ainda em um mundo pré-internet, nos fanzines impressos, muitas vezes xerocados, dos anos 80. No início da década seguinte, ele se profissionalizou ao vender por duas vezes – único brasileiro a alcançar tal feito – contos para a versão nacional da Isaac Asimov Magazine, publicada pela Record: primeiramente “Alienígenas mitológicos”, em 1991, e dois anos mais tarde “A ética da traição”. No final daquela mesma década, montou com sócios sua própria editora, a Ano-Luz, por onde saíram, entre outras obras, os livros com os primeiros textos de Carla Cristina Pereira.
Na virada da década, século, milênio, outra conquista, pois ele se tornou o mais raro dos profissionais, ao passar a ser remunerado para escrever ficção científica no Brasil. Foi contratado como consultor da Hoplon Infotainment, sendo um dos responsáveis pelo desenvolvimento do universo ficcional do game Taikodom, que já rendeu assunto por aqui em uma, duas, três, quatro ocasiões. Em 2009, além do romance Xochiquetzal, que nada tem a ver com o jogo, ele publicou um livro de contos e noveletas que se passam naquele cenário espacial, pela editora Devir. Além dessas duas obras, ainda publicou um conto na série de antologias inéditas Imaginários, da já citada editora Draco, tornando-se o maior beneficiado do mais produtivo ano da história da ficção fantástica brasileira, no qual dezenas de livros de FC, fantasia e horror chegaram ao mercado. Se não acredita em mim, dê uma olhada no levantamento feito por Ana Cristina Rodrigues – esta Cristina também é escritora e historiadora, mas é real; foi confundida diversas vezes com o alter ego femino de Lodi-Ribeiro e, por ironia, é quem escreve o texto de apresentação do romance de estreia dele.
Este veterano dos contos, noveletas e novelas não decepcionou na prova de fôlego representada pelas mais de 140 páginas de seu primeiro romance. Com experiência testada em mais de um gênero – destacando-se a parte hard da FC, aquela onde se busca seguir mais fielmente as ciências exatas – o autor escolheu uma vertente na qual é reconhecido por seus pares no Brasil tanto por ser um pioneiro quanto um mestre, na teoria e na prática. Xochiquetzal – Uma princesa asteca entre os incas é um livro de História Alternativa (ou HA), algo que Ana Cristina reconhece ser tratado por alguns como gênero independente e por outros como sendo parte da FC. O próprio escritor pertence ao primeiro time, advogando a independência da HA, o que deve gerar assunto para a entrevista que pretendo fazer com ele após a publicação desta resenha. Para efeito do presente texto, devo dizer que sou da corrente contrária, para a qual toda narrativa ficcional que especula usando conceitos científicos é uma ficção científica; e este é o caso da HA ao empregar extrapolações em torno da disciplina criada por Heródoto. Vale lembrar que já escrevi sobre História Alternativa ao resenhar a novela “O que o olho vê”, de Carlos Orsi, outro destaque de 2009.
As especulações dos historiadores alternativos costumam começar com um simples “o que aconteceria se”. Para explicar a empregada neste livro, podemos recorrer a uma antiga coluna de Gerson Lodi-Ribeiro para o fanzine Megalon, na qual ele se dedicava a divulgar aos brasileiros o que se produzia neste subgênero no mundo. Neste texto, uma preciosidade para os apreciadores da ironia e da metalinguagem, o colunista analisa a obra de sua identidade secreta. No trecho a seguir, faz uso de algum jargão do conhecimento dos leitores de HA, como ponto de divergência, a alteração na história que gerou o cenário fictício; e NLT, ou nossa linha temporal, a realidade como conhecemos e estudamos na escola:
O ponto de divergência escolhido por Carla situa-se em 1488 num ponto fulcral da história luso-brasileira. Os dois navios de Bartolomeu Dias naufragam ao tentar dobrar o Cabo das Tormentas e Portugal não descobre o Caminho Marítimo para as Índias através da circunavegação da África. Por essa mesma época, Colombo está em Lisboa, sendo cozinhado em banho-maria pelo rei Dom João II. Sem notícias de Dias há muitos meses e à falta de melhor opção, o monarca português acaba decidindo aceitar a proposta ingênua do navegador genovês. E Colombo descobre a América sob bandeira portuguesa, ainda no reinado de Dom João II. Os portugueses iniciam a colonização de Cuba e Lusitânia (Hispaniola em NLT), exploram os litorais da Nova Inglaterra e aportam nas praias do Golfo do México. Década e meia mais tarde, Affonso de Albuquerque, o Grande, avassala (mas não destrói) o riquíssimo Império Asteca, tornando os náuatles prepostos e representantes da Coroa Portuguesa no México. O próprio imperador Montezuma II se "converte" ao Cristianismo.
A personagem título, e narradora da obra na forma de crônicas escritas no calor da hora, é uma das muitas filhas de Montezuma II, a quem prefere chamar Motecuhzoma Xocoyotl. Para os lusitanos, ela é Dona Xochiquetzal da Gama, educada à força como fidalga em Lisboa e esposa de um dos maiores heróis e navegadores portugueses de todos os tempos, Dom Vasco da Gama. Sua narração, repleta de termos quinhentistas e de expressões na língua asteca, começa em 1523, quando a bordo de uma das naus comandadas por seu marido ela testemunha o bombardeio e a chacina de Calicute, na costa de Malabar. Este é apenas o início dos perigos e guerras das quais toma parte. Logo a seguir, o almirante e sua esquadra são convocados para repelir uma tentativa de invasão espanhola ao Novo Mundo daquela realidade, continente batizado não mais em homenagem a Américo Vespúcio, como ocorreu por aqui, mas em honra de outro navegador nosso conhecido.
Por fim, o auge da trama se desenrola ao sul daquelas terras, entre os anos de 1525 e 1526, no único outro império local que poderia rivalizar com a potência asteca. Como seu próprio subtítulo já entrega, no clímax da obra vemos a princesa Xochiquetzal, o marido e os marinheiros comandados por ele intervindo em uma guerra civil que ameaçava destruir os incas. Em nosso mundo, o conflito fratricida entre os candidatos à sucessão do imperador Huayna Capac – os príncipes imperiais Atahualpa e Huáscar – foi o evento que levou ao enfraquecimento daquela sociedade e facilitou sua conquista e derrocada final pelo espanhol Francisco Pizarro, à semelhança do que ocorreu uma década antes com os astecas nas mãos de Hernán Cortés. Em seu mundo ficcional, graças a um sólido conhecimento das artimanhas náuticas, dos acontecimentos históricos e das práticas ficcionais, Lodi-Ribeiro constrói uma nova realidade tão plausível e rica em detalhes quanto àquela que convencionamos chamar de verdade.
O que torna o mundo proposto pelo autor tão crível é o cuidado com os detalhes. Não basta apenas delinear os grandes acontecimentos, as passagens épicas, as conquistas retumbantes. Para se fazer uma história alternativa consistente é preciso também saber trabalhar em escalas bem menores. Um bom exemplo dessa carpintaria surge nos motivos apresentados para o nome da protagonista do romance, que une de modo imaginativo características culturais de dois povos para dar origem a algo novo. Na página 71, Xochiquetzal comenta que seu batismo se deveu a uma observação feita por seu pai, um monarca interessado em religião, de que talvez o sucesso dos novos aliados portugueses nas artes da guerra tivesse origem na tradição de dar aos filhos nomes de santos católicos. Para confirmar a hipótese, a nobreza passou a evocar a proteção divina homenageando seu panteão no momento de escolher como chamar as novas gerações de seus herdeiros. Assim, a oitava filha de Motecuhzoma Xocoyotl, nascida em 1504 da Era Cristã, ou no ano matlactlomome tecpatl, 12-sílex, pela cronologia seguida em Anáhuac, tem o mesmo nome da deusa do amor, da juventude e das flores cultuada por seu povo.
Xochiquetzal ganhou de seu criador bem mais que uma boa justificativa para seu nome; a narradora nos oferece um ponto de vista diferenciado sobre os eventos que descreve. É um feito notável pensarmos que a princesa asteca é uma criação duplamente feminina de um homem; pois, além da personagem, sua suposta criadora também era uma mulher. Para marcar bem essa diferença, proponho aos futuros leitores do romance um exercício: tentem imaginar os feitos do livro descritos sob a ótica de um outro escritor, também apaixonado por histórias de guerra e por História com H maiúsculo, o americano Robert E. Howard. Sem dúvida teríamos no lugar da prosa comedida e sensível da narradora asteca o cataclisma de testosterona característico do criador de Conan. Para usarmos uma linguagem cinematográfica, o que o texano mostraria em big close é exibido pelo carioca numa panorâmica em plongée. O que não significa que Gerson Lodi-Ribeiro tenha omitido características violentas em sua trama. Vasco da Gama surge de modo bem menos idealizado que na peça mais famosa que o toma por personagem – Os lusíadas, de Luís de Camões – e há citações no livro a mais controversa das tradições astecas: o sacrifício humano, para ficarmos em apenas dois exemplos.
Muito ajuda no mergulho nessa HA, fundamental para se entrar no clima de uma realidade que guarda ao mesmo tempo tantas semelhanças e tantas diferenças com a nossa, o tratamento editorial que o livro recebeu. A começar pela capa, em tons marrons, com a já citada ilustração da princesa na frente e das naus lusas, de autoria de Roko. Ou das páginas com os principais marcos da história real e do período ficcional criado para aquele cenário. O mergulho seria ainda mais completo se o livro contasse com um acréscimo: mapas detalhando as diferenças entre nosso mundo e o de Xochiquetzal, com as nomenclaturas alternativas, como o caso da já citada Lusitânia no lugar de Hispaniola (Em tempo: o jornalista, crítico e escritor Antonio Luiz M. C. da Costa elaborou um mapa do munto alternativo em que se passa este romance. O traço em vermelho é a rota da Esquadra da Vingança, liderada por Vasco da Gama). Algum cuidado com a repetição de expressões também poderia ter sido tomado, assim se evitaria que pecadilhos perdoáveis, caso os textos fizessem parte de contos publicados ao longo de um tempo, chamassem tanta atenção quando reunidos em forma de romance. A descrição do modo de guerrear luso – com uma espada longa na mão direita e uma lâmina curta na esquerda – é um exemplo de algo que não precisaria ser citado tantas e tantas vezes, praticamente a cada capítulo do livro.
Também seria de se esperar um tratamento mais próprio do romance à personagem que empresta seu nome à obra. Ao longo dos meses em que se passa a trama, surgem fatos novos, teoricamente capazes de alterar a visão de mundo de Xochiquetzal em relação aos lusitanos. Apesar disso, ela permanece em essência a mesma, sem grandes transformações. Através de alguns recursos metalinguísticos – como uma introdução ao texto feita por um editor fictício no ano de 2007 – podemos perceber que o autor dotou sua criação com mais relevo e camadas além daquelas demonstradas neste livro. O ideal seria podermos ver mais dessas camadas em outras obras passadas neste mesmo universo, um dos mais instigantes já engendrados para a HA produzida no Brasil. Que venham mais livros, sejam assinados por Gerson Lodi-Ribeiro, seja num retorno de Carla Cristina Pereira, para vermos do que a princesa asteca é capaz.