quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O domínio do mal

Nova Iorque, Londres, Tóquio. Quem acompanha obras de ficção científica em seus diversos formatos - seja em livros, quadrinhos, filmes, seriados de TV, animações, videogames ou jogos de RPG - está sempre sendo apresentado a visões futurísticas daquelas metrópoles mundiais. Menos usual é acompanhar especulações do tipo em lugares célebres por apresentar forte resistência a mudanças, mais afeitos às tradições que ao ritmo adrenalizado das revoluções tecnológicas. Lugares assim como a infinidade de pontos pretos que sinalizam nos mapas os municípios de Minas Gerais, o estado-símbolo do tradicionalismo quando se pensa no Brasil, algo que pode ser resumido em uma frase famosa de um filho da terra, Otto Lara Resende: "Minas está onde sempre esteve". Por isso mesmo, pelo fato de usar Belo Horizonte e outras cidades mineiras ainda lutando para preservar suas características históricas em um futuro não tão distante - ou "no outono do século XXI" - é que Quintessência já começa surpreendendo os leitores.

O livro representou a estréia de um novo escritor brasileiro de FC: Flávio Medeiros Jr., médico especializado em oftalmologia nascido, criado e formado na capital mineira, que em 2004, mesma época de seu aniversário de 40 anos, resolveu se lançar na nova atividade pelas mãos da conterrânea editora Monções. A segunda surpresa da obra é a constatação de que seu autor levou bastante a sério a novidade, muito mais que a média dos iniciantes neste mundo complicado da literatura de entretenimento nacional. Na criação da intrincada trama de Quintessência, ele demonstrou que décadas acumuladas de leitura - principalmente de quadrinhos, já que as referências a eles são onipresentes na obra - acabaram servindo de formação para um contador de histórias muito bom.

Nas primeiras 20 páginas do livro, a impressão que pode passar é a de que estamos diante de um Robin Cook made in Brazil. Flávio Medeiros Jr. tem muitas semelhanças com aquele escritor americano que não só é médico, como também conta com especialização em oftalmologia e tem um passado de professor universitário. Cook é considerado o responsável pela introdução de temáticas ligadas à medicina na literatura popular, sempre as misturando com outros gêneros: suspense, horror e até ficção científica. Para completar, tal e qual o brasileiro novato fez em seu primeiro livro, o veterano é conhecido por dar títulos com apenas uma palavra a suas obras, alguns exemplos são Febre, Coma, Cérebro, Invasão. A impressão é reforçada por algo a mais que tais coincidências. Naquele trecho inicial, o detetive Tomaz Rizzatti, personagem narrador do livro, passa por uma longa - e realista - consulta em que é diagnosticado como portador de epilepsia do lobo temporal, condição muito rara por atingir duas áreas distintas do cérebro e provocar súbitos apagões de consciência.

Mas esse é só o início da história. Ao longo de 232 páginas, Medeiros vai bem além da sessão Plantão Médico, há muitas outras referências, diretas ou indiretas, em seu trabalho. O caso em que o protagonista está envolvido - a serviço de uma força policial que unificou agentes civis e militares - é a investigação de uma série de ataques terroristas em sua cidade. O atentado que abre o livro é cometido em um shopping de Belo Horizonte: um homem não-identificado abre fogo contra visitantes do local e, quando parece que vai ser capturado pela segurança, comete suicídio graças a um poderoso material bélico de uso controlado. Pistas vão aparecendo e tudo indica que há uma bizarra ligação com outros casos de assassinos suicidas, um deles investigado anos antes pelo próprio Rizzatti, o de um franco-atirador em ação na Lagoa da Pampulha, e ainda muitos outros, espalhados entre Europa e EUA. Há motivos para se supor que todos estes crimes tenham sido cometidos por uma mesma pessoa, apesar desse detalhe inquietante levar a se pensar na existência de um suicida serial.

Diante do alcance globalizado dos atentados, que podem estar sendo coordenados por um terrorista internacional, igualmente dado como morto, Tom Rizzatti carrega uma sombra em suas andanças pelos municípios mineiros: um agente paulista da Interpol. O que começa como rivalidade profissional - e aquele sentimento arisco bem mineiro - vai se degenerando em desconfianças mútuas, perseguições automobilísticas, tiroteios, trocas de identidades e todos os componentes que tornam um thriller apto a receber a classificação chavão de "cinematográfico". Essa porção do romance é marcada por descrições rápidas e precisas das paisagens reais, ainda que em suas versões futurísticas. Lembra um tanto os pontos fortes do inglês Frederick Forsyth, velho mestre dos livros de espionagem pé-no-chão, como O dia do Chacal, O Manipulador, Dossiê Odessa, Ícone e longa lista.

O clima policial do livro continua mesmo após a grande virada que ocorre pouco antes da metade de suas páginas. É uma descoberta feita pelo detetive narrador que faz a trama levar suas características de FC a outro nível, para além da descrição de traquitanas tecnológicas e previsões futebolísticas. Tentar comentar, neste ponto, alguma referência da literatura ou do cinema seria entregar surpresas que aguardam os futuros leitores. Porém, mesmo a reviravolta não muda o rumo de película impressa de Quintessência. Antes pelo contrário, a velocidade da história aumenta, o número de personagens que se alternam e deixam escapar mais algum detalhe do enredo se amplia, sem perder o foco geral. Na verdade, o autor só altera mesmo o ritmo no clímax, nas aproximadamente 40 páginas finais, nas quais o livro deixa de lado o teor cinematográfico. Com um longo, muito longo, quase interminável diálogo - praticamente um monólogo - o mais correto seria dizer que, ao final, o andamento está mais para o do teatro que para o da tela de cinema.

Por sorte, Medeiros é hábil na construção das falas de seus personagens e, com isso, o texto continua fluindo nas revelações finais de sua obra. Para ser mais exato, nesse ponto o autor dedicou especial atenção a detalhes que costumam ser ignorados por muitos escritores de ficção científica, tanto brasileiros quanto estrangeiros. É o caso da especulação sobre como evoluiria a linguagem oral nos quase cem anos que separam nossa realidade e o período em que se passa a história. O escritor soube ser sutil quando necessário para se esbaldar quando há oportunidades. Nas conversas do dia-a-dia, entre adultos, pouco mudou, com apenas o acréscimo de um ou outro neologismo. O mais utilizado é um enigmático "bandjo" que parece ter substituído completamente expressões como "cara", "malaco" ou "malandro". Já nos momentos em que surge algum adolescente no enredo, começa um verdadeiro dilúvio de gírias, felizmente traduzidas pelo contexto. Detalhes pequenos mas que tornam uma trama de FC bem mais plausível.

Outro fator que ajuda a garantir a credibilidade do texto é a construção dos personagens, principalmente do protagonista. Tomaz Rizzatti não é só o detetive com um problema grave de saúde, recém-divorciado - ele se recusa a pronunciar o nome da ex-mulher, prefere chamá-la pela alcunha de Desgraçada - e fã de todo gênero de quadrinhos antigos imaginável. Já que somos testemunhas de seus pensamentos, flagramos suas reflexões sobre o assunto que dá título ao romance: qual a quintessência, a natureza mais profunda do mal? Qual o papel do livre arbítrio, do poder de decisão, nas nossas escolhas morais? Diante das atrocidades que é obrigado a investigar, algumas tão chocantes quanto o massacre das dezenas de pessoas na abertura do livro, esse é o tipo de questionamento a martelar o cérebro já atingido pela tal epilepsia do lobo temporal. Acaba sendo um contraponto interessante ao cinismo canalha da maioria de seus colegas da ficção o comportamento deste detetive tão preocupado com o real alcance do domínio do mal.

É bom avisar: tais questionamentos são sempre feitos a partir de um ponto de vista laico, não religioso. Até para caracterizar tal visão de mundo agnóstica, o autor reitera constantemente que em seu universo as religiões são coisa do passado. Em diferentes trechos da obra, referências bastante óbvias a mitologias greco-romana e indiana, além do próprio Cristianismo, passariam despercebidas aos personagens caso eles não as pesquisassem na ultranet, o próximo passo evolutivo de nossa internet contemporânea. Tudo bem, mas em um ponto isso fica pouco crível, quando uma das referências está ligada à identidade do já citado terrorista internacional. Que a população comum não perceba a ligação seria bem razoável de se acreditar, mas quando falamos de um agente que está na caçada há anos e que, obrigatoriamente, já teria trabalhado na formulação do perfil psicológico de sua presa, isso não soa muito lógico. Este, porém, é um dos raros deslizes de uma trama muito bem trabalhada, funcionando dentro das melhores tradições dos gêneros a que está afiliada.

Com Quintessência a literatura especulativa nacional somou alguns ganhos. O Brasil foi apresentado a Flávio Medeiros Jr. um novo autor de ficção científica que garante ainda ter novas histórias para contar quando surgirem as oportunidades. Aquele clube de detetives que existe entre as ruas Morgue e Baker recebeu Tom Rizzatti como um novo embaixador brasileiro. E os mineiros ganharam um romance de FC que, mesmo com todas as influências internacionais, é tipicamente seu, no mesmo sentido que o distópico Não verás país nenhum, de Ignácio Loyola Brandão, é tipicamente paulista e o lascivo O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro, é tipicamente baiano, isso para citar apenas dois clássicos do gênero produzidos no país. Vale a pena conferir, nem que seja para tirar a limpo se, no futuro próximo, Minas vai continuar onde sempre esteve.

Serviço: Para entrar em contato com o autor utilize o email livro.quintessencia@terra.com.br

O escritor de Andrômeda

Entre um plantão e outro na emergência de um pronto-socorro de Belo Horizonte e visitas ocasionais a diversas localidades vizinhas um médico mineiro fez a a pesquisa para um dos mais imaginativos livros de ficção científica lançados no Brasil. Nesta entrevista, o autor de Quintessência conta histórias sobre a produção de sua obra independente, descreve coleções de quadrinhos que ocupam caixas de papelão, kombis e quartos inteiros, dá dicas sobre como interpretar uma cadeira no palco de teatro e detalha como foi a formação de um escritor de FC nascido em Andrômeda, vulgo Minas Gerais. Com vocês, o lado B do doutor Flávio Medeiros Jr.

Seu livro de estréia pegou muita gente de surpresa - mesmo entre os especialistas mais dedicados em acompanhar a produção nacional de FC, no famoso eixo Rio-São Paulo. Poderia fazer uma revisão de outros textos ficcionais seus e contar um pouco dos bastidores da publicação de seu primeiro romance?


Penso que essa "surpresa" se justifica. Costumo dizer, em tom de brincadeira, que vivo em Andrômeda, pois Minas Gerais, no universo da FC nacional, fica tão distante do tal eixo Rio - São Paulo quanto outra galáxia. Na verdade sou um ávido leitor de ficção científica desde adolescente. Comecei com Perry Rhodan, depois Asimov, e daí não parei mais. Tenho toda a coleção da saudosa Isaac Asimov Magazine brasileira. No entanto, só quando já estava escrevendo o Quintessência foi que eu soube que existiam fóruns virtuais para discutir FC. Por isso as pessoas ligadas à FC nacional só souberam de minha existência quase simultaneamente à publicação do meu livro. Antes dele, só publiquei contos, crônicas e cartoons (que eu escrevi e desenhei) em jornais locais e universitários, a maioria tratando de temas cotidianos. Também escrevi algumas peças de teatro, que dirigi e encenei com grupos amadores, uma delas inclusive de ficção científica, chamada Proteu, o Protótipo.

Quanto ao Quintessência, a idéia inicial surgiu da seguinte preocupação, resultado de minha estupefação diante da crescente banalização da violência ao meu redor: até que ponto as pessoas não cometem crimes, dos mais leves aos mais hediondos, obedecendo aos próprios valores morais, e não ao temor de serem pegos e punidos? Então decidi criar o "supervilão do novo milênio", um personagem com poderes praticamente ilimitados para fazer o mal, e que comete seus atos com a certeza absoluta da impunidade. O interessante foi que eu pretendia que esse vilão fosse a encarnação do Mal absoluto, mas ao longo do texto que fui escrevendo o próprio personagem me fez entender que em termos humanos isso não existe: o ser humano que pratica o mal sempre carrega suas razões pessoais para isso, sempre busca ou fabrica justificativas para seus atos. Aprendi muito com ele.

O livro foi publicado no sistema de autopublicação, ou seja, eu mesmo banquei a edição. Ao contrário de alguns, considero esta uma forma perfeitamente válida e digna de publicar um livro, diante das dificuldades que o mercado impõe a novos autores. Esse sistema ainda tem a vantagem de dar ao autor total controle sobre sua obra, desde o conteúdo até a capa. Permite também que o autor negocie melhor o preço de capa do livro e a porcentagem da consignação, que é como a maioria das livrarias trabalha. A enorme desvantagem da autopublicação é o problema da distribuição. Enquanto você está na mídia o seu livro vende bem, mas quando param de falar dele o fantasma do encalhe aparece. Em relação ao Quintessência, após três anos da publicação ainda tenho a alegria de vender exemplares pela internet ou através de pessoas que leram, gostaram e indicam a outras pessoas. É uma venda em "conta-gotas", mas para mim isso não importa: eu vivo de medicina, escrever é o meu prazer pessoal.

A FC é sempre associada a mudanças profundas na tecnologia e no comportamento das pessoas; a dinamismo social, cultural, ambiental. Minas Gerais, por outro lado talvez seja o estado brasileiro mais ligado ao culto às tradições; um lugar em que o tempo parece correr mais lentamente. Algo que pode ser sintetizado na frase célebre do Otto Lara Resende: "Minas está onde sempre esteve". Como é lidar com este aparente paradoxo de ser um autor de ficção científica mineiro? Como seus colegas, amigos e familiares reagem a seu lado menos convencional?

Como você disse, o paradoxo é aparente. Outro dia li em um romance a crítica depreciativa de um dos personagens à ficção científica, nos seguintes termos: a tecnologia evolui, as descobertas se multiplicam, mas o ser humano continua o mesmo. Naquele momento eu me perguntei: "mas não é essa a realidade?" Observe a história da humanidade: como na Antiguidade continuamos nos matando por razões religiosas, ou por ambicionarmos o que os outros possuem. A diferença é que antigamente fazíamos isso usando pedra lascada, depois arco e flecha, e hoje empregamos alta tecnologia, armas de destruição em massa e microrganismos geneticamente alterados. Mas a atitude mudou muito pouco. Nossos tabus, crenças e preconceitos mudam de roupa e adquirem formas de expressão mais rebuscada, mas em essência não mudaram muito nos últimos milênios. Por isso, parafraseando o bom e velho Otto, eu diria que "o Homem está onde sempre esteve". Minha aposta é que isso vai persistir ainda por muito tempo no futuro, de modo que a FC, na minha concepção, precisa considerar essa possibilidade.

Quanto à segunda parte da pergunta, outro dia um colega médico me disse que eu sou um dos caras com o "lado B" mais interessante que ele conhece, entendendo-se como "lado B" aquilo que você faz quando não está tratando das trivialidades da vida, como dar atenção à família ou ganhar dinheiro. Esse lado escritor surpreendeu alguns dos amigos mais recentes, pois devido aos caminhos tortuosos que a vida toma, antes do Quintessência eu havia passado uns cinco ou seis anos sem produzir nada de substancial em termos de literatura. Mas quem me conhece há mais tempo, como os familiares e amigos mais antigos, não se surpreendeu em nada. Na verdade eu escrevo desde sempre, e as pessoas se acostumaram a me ver crescendo assim. No curso primário as professoras liam minhas redações para a classe inteira, e emprestavam para as outras professoras lerem em suas classes. Com uns oito ou nove anos pedi ao meu pai dinheiro para comprar um caderno; o dinheiro deu para dois cadernos, e comecei a escrever neles meus dois primeiros livros: As aventuras de Falangeta e Cidade submarina, ambos inacabados. Com onze ou doze anos eu e um primo escrevemos dois livros que eram fanfiction (embora na época eu acho que a palavra ainda não existia) de Planeta dos macacos e dos Smurfs, que então se chamavam Strunfs. Esses dois livros tenho em casa, foram datilografados em uma velha Remington que ganhei de minha mãe naquela época, e encadernados em uma gráfica do bairro. Infelizmente, são livros de um só exemplar. Ou seja, tirando aqueles cinco ou seis anos de hiato, sempre fui metido a escritor, e suspeito que agora não vou parar nunca mais.

Quadrinhos americanos, ingleses e italianos são uma referência mais que explícita em seu trabalho. Em certos momentos, obras como Sandman, Punisher e Dylan Dog são elementos importantes para se compreender a motivação e o universo particular de alguns dos personagens. Qual o papel dessa mídia na sua formação como escritor? Qual o tamanho de sua coleção de gibis e quão eclética ela é?

Entendo que, antes de ser escritor, você necessariamente tem que ser um leitor convicto. E eu aprendi a ler com as histórias em quadrinhos. Os adultos compravam os gibis, primeiro de Walt Disney, depois também de Mauricio de Souza, e liam para mim. Eu ficava do lado acompanhando a história e perguntava, de vez em quando, o nome de alguma letra. Um belo dia, e me lembro da cena como se houvesse sido ontem, já sabendo o nome das letrinhas, uma luz se acendeu na minha mente, e compreendi que bastava juntar o som de cada letra para ler uma palavra. Nesse dia eu li pela primeira vez, antes que a escola me ensinasse, para alvoroço dos adultos ao redor. E desde então não parei mais. Ainda criança, um dos melhores amigos do meu avô era dono de uma banca de revistas, onde ocasionalmente eu passava o dia inteiro lendo de tudo. Na adolescência me especializei nos quadrinhos de super-heróis, e nos últimos trinta anos tenho colecionado e lido tudo que foi publicado no Brasil em termos de Marvel e DC, além de brasileiros como Ziraldo (A Turma do Pererê), Laerte e Angeli. Também sou fã de Uderzo e Goscinny (Asterix), e de cartunistas, como o argentino Quino (Mafalda) e Bill Watterson (Calvin e Haroldo). Atualmente ainda leio de tudo isso, mas me dão mais prazer os chamados "quadrinhos adultos", de autores como Neil Gaiman, Alan Moore, Frank Miller, Garth Ennis, Mark Millar e Warren Ellis.

Eu não saberia te dizer o tamanho da minha coleção, mas apenas para dar uma idéia, no ano passado eu vendi parte dela para uma feira de gibis usados, promovida por uma livraria de Belo Horizonte. Um funcionário teve que vir até minha casa para separar o material, depois veio uma kombi com mais dois caras para buscar doze caixas de papelão grandes cheias de revistas. Isso me rendeu um crédito de quase oitocentos reais na livraria, e hoje o quartinho de despejo do meu apartamento ainda está cheio mais da metade com grandes caixas repletas de revistas. Aproveito a oportunidade para agradecer publicamente à minha esposa pela compreensão e pela paciência e tolerância infinitas.

Você já deve ter pensado na possibilidade de continuação para Quintessência, não? Uma adaptação do livro para HQ ou mesmo uma sequência em tal formato já estiveram em seus planos?

Na verdade, a princípio eu pretendia acabar a história ali mesmo, apesar de que o final do livro gerou reações bem diversas: alguns adoraram, outros quiseram me matar e exigiram uma continuação. Eu respondi, na época, que só escreveria uma continuação se tivesse uma idéia que realmente valesse a pena. Acontece que no último ano eu tive e já andei amadurecendo essa idéia, daí que a continuação do Quintessência deverá ser meu próximo romance. Quanto a adaptações, não penso que os quadrinhos sejam o melhor formato. Observe que o livro é contado em primeira pessoa, e tem que ser assim mesmo, para que o leitor vá fazendo as descobertas, e tendo as surpresas e sustos junto com o protagonista. Ou seja, a história é contada dentro da mente do personagem, que atua como narrador. Os quadrinhos são uma linguagem muito mais visual e dinâmica do que narrativa e reflexiva, então uma adaptação de Quintessência ia ser cheia daqueles balões cheios de falas e recordatórios intermináveis, e não gosto de HQs assim. Se você precisa falar mais do que mostrar, melhor contar a história em texto. Por outro lado, já foi iniciada uma adaptação do livro para roteiro de cinema, que a meu ver está no meio termo entre a literatura e as HQs em termos de estética narrativa. Essa adaptação está meio parada depois que a pessoa responsável começou a fazer mestrado, mas é uma adaptação que considero muito mais interessante.

Além de comics e fumetti, quais as obras e autores que influenciaram seu thriller policial-científico? Entre os escritores, há algum brasileiro na lista, como Ignácio de Loyola Brandão de Não verás país nenhum? Pergunto isso porque há alguns pontos de semelhança entre seu livro e o daquele autor, como a questão ambiental em São Paulo e a unificação de forças de segurança, sua Polícia de Elite e os civiltares de Brandão.

Confesso que não conheço a obra de Brandão, embora meu interesse por ela tenha surgido recentemente, após ler nos fóruns de discussão a opinião de outros leitores e escritores de ficção científica a respeito dela. Mas antes de começar a escrever Quintessência eu senti que precisava ler algo em termos de literatura policial de autores nacionais, então li BR 163, de Tony Bellotto, e Enquanto Seu Lobo não vem, de Aluísio Santiago Campos Jr. Meu estilo nada tem a ver com nenhum dos dois, mas após ler essas obras me senti mais tranqüilo sobre escrever um romance policial com uma ambientação e personagens brasileiros. Quanto a autores internacionais, achei divertido quando alguns leitores compararam meu estilo ao do Dan Brown, e quando li O código da Vinci entendi o motivo: ele usa alguns truquezinhos como eu também usei, de terminar cada trecho de ação num momento de suspense, como nos episódios dos antigos seriados policiais, de maneira a fazer o leitor não querer largar o livro, para saber o que virá a seguir.

Quanto a minhas preferências, em termos de estilo admiro autores como Neil Gaiman (Deuses americanos, Os filhos de Anansi) e Stephen King. Deste último destaco as obras O iluminado, na qual ele retrata de forma magistral a crise no relacionamento de um casal sob o ponto de vista de uma criança pequena, e Salem’s Lot, quando na cena do sepultamento de uma criança morta ele mistura as falas do padre, que realiza sua função de maneira protocolar e impessoal, com as do pai do garoto morto, tomado por um desespero que beira a insanidade. Recentemente também me tornei fã de Philip Roth e seu Complô contra a América, para mim um dos melhores livros de todos os tempos. Esses são os caras que eu quero ser quando crescer.

Há toda uma reflexão que os leitores testemunham no fluxo de consciência de Tom Rizzatti sobre questões de fundo moral: o bem, o mal, o livre arbítrio, a essência mais profunda e definidora disso tudo. Refletir sobre pontos como esses fizeram com que você repensasse pontos de vista? Foi possível chegar a alguma conclusão no final da jornada de 230 páginas?

Talvez essas reflexões sejam a essência do livro, ou a principal razão de sua existência. Na verdade esses questionamentos são os que ficam ali, como a pulga atrás da orelha da humanidade, há muitos séculos. E são importantes, uma vez que se referem nada menos que à própria existência. Muitos buscam as respostas na religião, e se contentam com isso. Outros preferem não pensar a respeito, embora curiosamente essas questões sempre retornem, marcadamente naquelas situações de profunda comoção humana, como mortes e doenças na família, por exemplo. Outros, mais inquietos, continuam buscando. A própria ciência começa a se enveredar nesse caminho, o que não deixa de ser uma ousadia: tratar cientificamente de questões metafísicas. As melhores e mais satisfatórias respostas que encontrei até agora estão na Logosofia, ciência que aborda essas questões e muitas outras partindo do conhecimento de si mesmo. O mais interessante é que, quanto mais respostas, ou partes delas, você encontra, mais questões surgem. Mas é um estudo muito gostoso de fazer, a partir do momento que você começa a não se frustrar sempre, como se atingisse uma barreira intransponível. E, assim como a vida, não tem fim.

Sua formação como médico e a experiência de ex-professor universitário certamente foram úteis para lidar com o lado científico do livro. Mas e os demais elementos da trama? Como foi a pesquisa a respeito dos vários locais reais descritos em detalhes ao longo das páginas, sem falar no básico em termos de técnicas investigativas para a porção policial da obra?

Quanto aos locais de Belo Horizonte, minha cidade, foi mais fácil. Fui até o BH Shopping e fiquei de pé exatamente no topo das escadas rolantes, onde ocorre o atentado da abertura do livro. Ali desenhei mentalmente toda a cena. Depois "invadi" a galeria técnica do shopping onde o terrorista vai se refugiar, e imaginei toda a cena da explosão. Para a cena do congresso de neurologia no Minascentro, onde o orador metralha a audiência, aproveitei minha presença lá em um congresso e subi ao palco, para ter a visão exata do agressor. Passei pelo Viaduto Oeste várias vezes para memorizar detalhes e escrever a cena em que Tom Rizzatti escapa de seus perseguidores subindo o viaduto pela contra-mão. Cenas como as de Lavras Novas e sua cachoeira, e também Visconde de Mauá, também não foram difíceis, pois conheço bem as duas localidades. Fiz mais de um passeio ao lado oposto da Serra do Curral, caminho para Macacos, onde no meu livro vai ser construído o Memorial Leôncio Lamas, para verificar a viabilidade de minhas "teorias".

Para a cena ambientada em Paris, no final do livro, entrevistei brevemente uma amiga que morou lá: "você está de pé sobre a Pont Neuf; olha para um lado, e o que vê? E do lado oposto?" Com um mapa da cidade obtido na internet e uma foto da ponte, foi como se eu tivesse mesmo estado lá. Coisas "futuristas" como o domo sobre a região da Savassi e uma rede de autovias passando pelos subterrâneos da Praça da Liberdade, são projetos que talvez jamais se tornem realidade, mas que existem, de verdade: alguma imaginação insana pensou nisso antes de mim. Quanto à parte policial, aproveitei que trabalho em um pronto-socorro para onde convergem todos os casos de violência urbana de BH, e sempre que chegava uma turma de policiais trazendo alguma vítima ou bandido, eu "colava" nos caras e começava a fazer perguntas. Olha, ouvi coisas que você não acreditaria, nem se eu escrevesse em um livro de ficção.

Passado algum tempo de sua estréia no ramo da literatura de gênero já deve ser possível fazer um retrospecto. Entre perdas, ganhos e empates qual é o saldo destes primeiros três anos?

O saldo é totalmente positivo, já que correspondeu exatamente às minhas expectativas. Escrever para mim é um prazer, não um meio de vida. Quando você escreve por gosto, sem pressões, a chance de ter um bom resultado é melhor. Minha maior alegria é o retorno, geralmente positivo, de quem leu e gostou. Já tive comentários curiosíssimos de leitores de todas as idades, que para mim servem de sinal de que, apesar do trabalho que dá e do tempo que consome o ato de escrever, a recompensa é sempre superior. Não pretendo parar tão cedo.

Em uma perspectiva mais geral: em sua opinião, o que está faltando para a literatura de entretenimento ganhar mais espaço entre os brasileiros? Quando falamos de ficção científica nacional, especificamente, há algo que se possa fazer para popularizar o gênero e atrair novos leitores e escritores?

Um de meus leitores fez um dos comentários mais significativos, após acabar a leitura do Quintessência: "gostei muito do seu livro, apesar de ser ficção científica". Observo que a maioria das pessoas que afirmam não gostar de ficção científica nunca leu um livro do gênero, e baseia sua opinião na mídia do cinema ou da TV. Então minha proposta é: vamos escrever boas histórias! Coisas com conteúdo, mesmo que não seja nada filosófico, mas um texto inteligente e bem escrito. Ser FC, ou horror, ou policial, ou fantasia, é secundário desde que a história seja boa. De preferência com idéias originais, próprias. Se minha história de FC não passar da descrição de uma perseguição espacial, se meu texto de fantasia não for mais que a descrição da luta entre um príncipe e um dragão, talvez a mídia certa seja mesmo a TV ou o cinema.

A pista que dou, porque é a que tento seguir, é: boas histórias têm que ter um conteúdo humano. Uma vez perguntaram a Stanislawski, um dos gênios do teatro, se ele seria capaz de representar uma cadeira no palco. A resposta dele foi: "Se essa cadeira tiver o sonho de virar uma poltrona, ou se tiver o medo de morrer em um incêndio, eu represento. Se não tiver nada disso, você não precisa de um ator: use uma cadeira". Penso que na literatura seja a mesma coisa. Tenho lido muita coisa boa de gente nova na literatura de gênero, e se tivermos mais oportunidades de mostrar esses trabalhos para mais pessoas, através da divulgação e da melhoria do acesso das pessoas à literatura, esse panorama vai mudar. E esse trabalho tem que começar junto à juventude, que tenho encontrado sem muitas motivações e incentivos que transcendam a superficialidade.

"O futuro é uma página em branco dentro de um quarto escuro em uma noite de neblina". Foi assim que, à altura da página 90 de Quintessência, você definiu o porvir. Mesmo com toda a nebulosidade e escuridão para atrapalhar a vista, o que o futuro lhe reserva como escritor?

Idéias é o que não me falta. Estou com um novo romance pronto para publicação, chamado Casas de vampiro. Enquanto Quintessência é uma mescla dos gêneros ficção científica e policial, no novo livro misturo FC e horror. Tenho também pronta uma coletânea de contos leves, de humor e temas cotidianos, chamada Leia e fique rico. Acabo de terminar um conto de FC inspirado por uma música da cantora Tanita Tikaram, que deverá sair publicado em uma antologia de vários autores de ficção científica, horror e fantasia. Além disso estou fazendo as pesquisas para um conto no universo da Intempol, e para o romance que será a continuação do Quintessência. E já tenho algum material guardado para o romance que virá logo depois dele, uma ficção científica mais "pura", sem muita mistura de gêneros, para variar. Ah, nos horários vagos eu cuido do "lado A": trabalho, família e saúde.

sábado, 4 de agosto de 2007

A guerra dos homens-peixe

O que aconteceria se ao invés de se tornar escritor de livros de aventura um dos pais da ficção científica entrasse para o mundo da política? Mais que isso, e se Jules Verne - ou Júlio Verne, para quem prefere aportuguesar o nome de vultos históricos - chegasse ao topo dessa outra carreira e fosse eleito, em 1886, o primeiro presidente da França? Caso continuasse apenas com tal linha de pensamento, o escritor, designer e professor universitário carioca Octavio Aragão teria escrito um livro de um subgênero daquela mesma ficção científica que Verne ajudou a dar à luz: a história alternativa, que é marcado por descrever como seria o mundo se alguns eventos históricos ocorressem de modo diferente do que aprendemos na escola. Porém, o autor foi além e em seu primeiro romance solo, A mão que cria, ele não trata apenas do criador de personagens como o Capitão Nemo e Phileas Fogg. Aragão também deu nova vida às criaturas, e, com isso, o gênero explorado foi outro; foi a chamada ficção alternativa, a verdadeira arte de domar os personagens alheios.

Para os leitores habituais de quadrinhos, o mais famoso exemplo desse outro ramo da ficção científica é a série As aventuras da Liga Extraordinária, de Alan Moore e Kevin O´Neil. Contudo, de maneira diferente da dupla de quadrinistas ingleses, o escritor brasileiro deixou de lado os protagonistas mais espalhafatosos dos livros clássicos e optou por personagens mais discretos. Por isso mesmo, em uma primeira leitura, eles podem passar despercebidos por quem não conhece tão profundamente a literatura fantástica do século XIX (sabiamente, o autor acrescentou como extra uma muito útil lista de anotações ao final do livro, esclarecendo algumas das referências mais obscuras).

Um exemplo vem do livro Vinte mil léguas submarinas: ao invés de se apropriar do bizarro comandante do Nautilus, como fizeram Moore e O'Neil, Aragão tomou emprestado de Verne o pesquisador Pierre Aronnax. Trata-se do estudioso que sobreviveu ao trágico fim do submarino e que, na versão do brasileiro, conseguiu preservar alguns dos segredos da embarcação pioneira e ainda foi o responsável pelo ingresso de Verne na política. Da mesma forma, em A mão que cria vamos sendo apresentados a diversos outros personagens literários - ou a seus antepassados e descendentes - criados não apenas pelo presidente alternativo da França mas também por diversos de seus colegas. No portfólio estão escritores como H.G. Wells, o outro pai da ficção científica, H.P. Lovecraft, Herman Melville. Isso para não falar em outras personalidades reais, como os alemães Adolph Hitler e Rudolph Hess e os brasileiros Dom Pedro II e Oswaldo Aranha, todos compartilhando uma narrativa que cruza aproximadamente um século e meio de história.

Com um cenário tão imaginativo, a situação nessa linha temporal alternativa não demora a se complicar e uma guerra entre duas novas raças passa a pôr em risco todo o mundo. De um lado, o incentivo que o governo francês empreende em nome de novas tecnologias, passa rapidamente do estágio de submarinos e metralhadoras para a fase de implantação de um exército de supersoldados anfíbios (para quem gosta de academicismos, o gênero baseado em avanços científicos imaginários no século retrasado também recebeu alcunha própria: é o steampunk). Do mesmo modo que um sobrevivente deu prosseguimento às criações náuticas de Nemo, um segundo conseguiu resgatar os segredos de manipulação genética descritos por H.G. Wells em A ilha do Dr. Moreau (aliás, vem deste livro a citação que dá nome ao trabalho de Aragão).

O resultado é uma dinastia de seres híbridos de homens com golfinhos que, em um primeiro momento, foi muito útil à humanidade ao arriscar a vida em duas guerras mundiais. O problema veio com os tempos de paz, quando aqueles experimentos, mais fortes e longevos que os seres humanos normais, passam a representar séria concorrência em um mercado de trabalho escasso. Com isso, os anfíbios viram alvo de manifestações violentas. Um paliativo foi, tal como ocorreu na história real com o povo judaico, a criação de um Estado dedicado aos híbridos. A nação de Lemúria - parte submersa, parte formada pela ilha onde Paul Alphonse Moreau realizava suas experiências - se tornou o refúgio de aproximadamente 50 mil habitantes. Toda esta parte do livro guarda notáveis coincidências com um livro lançado exatamente 70 anos da obra do brasileiro: A guerra das salamandras, do escritor tcheco Karel Capek - autor, entre outras coisas, do termo robô. Digo coincidências porque Octávio Aragão afirma não ter utilizado as criações de Capek em sua mistura ficcional.

Do outro lado do front, o segundo exército conseguiu se manter com mais discrição mas também seguiu influenciando de forma decisiva os acontecimentos daquele mundo, servindo de inspiração para os piores momentos da história do século 20. Formado por uma legião de mortos vivos, a origem dessa outra potência alternativa está ligada a um evento real: a queda de um asteróide na região da Rússia conhecida como Tunguska, em 1908. Um dos maiores achados do livro de Octavio Aragão é a real identidade do general desses zumbis, um misterioso gigante de quase três metros que se denomina Ariano. O escritor brasileiro conseguiu recriar com maestria uma das maiores vítimas de descaracterização ao longo de décadas de adaptações e novas versões da obra em que surgiu originalmente. Com isso, o segundo capítulo de A mão que cria, "Olhos amarelos", no qual o clima de ficção científica predominante é deixado de lado em nome de uma ambientação mais típica da literatura de horror, pode ombrear com as melhores criações do gênero.

Esse feito é a prova do amadurecimento de um autor que estreou profissionalmente há quase 10 anos, com a noveleta "Eu matei Paolo Rossi", na coletânea de ficção científica Outras copas, outros mundos, lançada pela finada editora Ano-Luz, em 1998. Centrada na idéia de viagens no tempo, aquela primeira história deu origem ao projeto mais ambicioso do escritor: o universo Intempol, uma polícia temporal corrupta e formada basicamente por brasileiros. A idéia gerou um portal (no momento fora do ar), também deu origem a outro livro de coletânea com vários autores explorando aquele conceito e até um álbum em quadrinhos, The long yesterday, criada pelos colaboradores Osmarco Valladão e Manoel Magalhães (mesma dupla responsável pelo mais recente O Instituto).

Com maturidade autoral ou não, todo aquele cenário de A mão que cria não passaria apenas de um pano de fundo engenhoso se não houvesse uma trama para amarrar tantos fatores inusitados. Para desempenhar esse papel, o escritor imaginou um drama de vingança, inveja, traição e atentados políticos que, sem pieguice nem soluções fáceis, se arrasta por três gerações da dinastia que governa Lemúria, os Currie McKenzie. Aqui, os já mencionados leitores de quadrinhos podem fazer associações com monarcas anfíbios das maiores editoras americanas: Namor McKenzie, o Príncipe Submarino da Marvel, e Arthur Curry, o Aquaman da DC, além de longa lista de seus respectivos coadjuvantes.

Isso, em parte, se explica por originalmente A mão que cria ter sido elaborado como uma fanfic - ou seja, uma ficção de fã, espécie de irmã caçula da ficção alternativa, em que admiradores imaginam aventuras de personagens do cinema, quadrinhos, cinema ou TV. Infelizmente, o livro não faz nenhum comentário sobre o fato de uma versão preliminar do texto ter sido publicada no site Hyperfan no formato de uma minissérie do Aquaman. Nem mesmo naquela lista de anotações se mencionam as várias referências quadrinísticas, ao contrário do que ocorre com as citações literárias, cinematográficas e até históricas.

Mais grave que tal omissão, foram alguns deslizes editoriais que resistiram às revisões do texto. Nem é o caso de mencionar alguns poucos erros de digitação e vícios de linguagem - mas, convenhamos, a redundância "sair de dentro" bem que poderia ter sido evitada nas duas vezes em que aparece no livro -, afinal eles não comprometem em nada o andamento da história. Grave mesmo foi a desatenção com vários dos textos introdutórios que deveriam ajudar o leitor a se localizar no tempo e no espaço em que se passam certos trechos do livro. Tais erros, devido à estrutura extremamente complexa, com múltiplos narradores e não-linear da obra, fatalmente podem prejudicar a compreensão mesmo do leitor mais atento.

Logo na página 22, um atentado ocorre no que é descrito pela legenda como sendo "Londres, 11 de abril de 1992". Pelas próprias notas do autor, descobrimos que o mais exato seria situar a data em 30 de março de 2002, que vem a ser o suposto tempo presente da ficção. Mais à frente, na página 96, a legenda introdutória assinala: "Lemúria, 1940". Aqui fica impossível determinar a data com exatidão, entretanto, certamente não pode ser aquela. Afinal, a cena em questão mostra um certo persongem tomando decisões maduras; personagem este que só veio a nascer oito anos após 1940. Por fim, todas as legendas do capítulo 7 que remetem a 1946 devem ser desconsideradas e substituídas por um simples "Hoje". Do contrário, quem tentar seguir a linha temporária alternativa proposta tem boas chances de sofrer um colapso mental. Uma segunda edição poderia resolver com facilidade esses lapsos.

Curiosas também são as várias pontas soltas que foram deixadas ao longo da história e os persongens que são apenas delineados mas não têm uma participação ativa na trama. Isso pode ser explicado pela origem fanfic da obra, quando o autor fez referência obrigatória aos coadjuvantes dos quadrinhos. Já um otimista, diria que o plano desde o início era dar seqüência ao livro, algo que pode ser baseado nas últimas linhas da obra, indicando que o Brasil deverá vir a ter uma maior importância naquele mundo fictício. Essa hipótese seria a ideal, até porque de tal forma seria possível desenvolver temáticas que foram apenas esboçadas. Para falar de um caso específico, temos uma interessantíssima visão da religiosidade dos homens-peixe, porta aberta para novas possibilidades a serem exploradas (e que poderiam justificar a inteligente sacada da capa do livro, que conseguiu tornar a foto do detalhe de um submarino em algo similar a um templo pagão).

Se houver mesmo a continuação, é provável que ela amplie ainda mais suas semelhanças com um clássico da ficção científica nacional que também foi escrito por um carioca, misturou Dr. Moreau com elementos brasileiros e que contou com uma forte ligação com os quadrinhos. O detalhe é que o livro em questão foi escrito em 1925. A Amazônia misteriosa, do médico Gastão Cruls (1888-1959), é tão devedor da obra de Wells quanto A mão que cria. No lugar de Moreau, propriamente dito, encontramos na selva amazônica um alemão chamado Hartmann, que vive em uma tribo só de mulheres índias com sua esposa francesa, Rosina. Longe do controle das autoridades, o médico germânico fictício realizava experiências bizarras que o mundo mais tarde associaria a um médico germânico real, o notório Josef Mengele - que também teve passagem por nosso país e acabou protagonizando um livro de FC, Os meninos do Brasil, de Ira Levin. Mas além de, por exemplo, retirar as glândulas tireóides e do timo de recém-nascidos, Hartmann buscava "acabar com a teoria da fixação das espécies": ou seja, através, de enxertos, transplantes e cruzamentos, ele estava criando no Brasil da década de 20 seres híbridos entre mamíferos, aves e répteis. Entre eles, um garoto-macaco denominado Hominido, muito semelhante aos personagens que veríamos em O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro. Trinta anos depois de seu lançamento e quatro antes da morte do autor, em novembro de 1955, o livro foi adaptado para os quadrinhos na revista Edição Maravilhosa, da editora Ebal, com desenhos a cargo do versátil André Le Blanc.

Passado o interlúdio, voltemos à obra de Octávio Aragão. Outra questão, essa mais presa ao tal detalhismo acadêmico, diz respeito a classificação que A mão que cria vem recebendo. Classificação que aparece tanto na propaganda de seus editores quanto no prefácio, assinado pelo escritor Gérson Lodi-Ribeiro, maior autoridade - na teoria e na prática - do gênero história alternativa do Brasil. Nesses casos, A mão que cria vem sendo denominado de primeira experiência de ficção alternativa brasileira. A afirmação já provocou ligeira polêmica entre a pequena, mas ativa, comunidade ligada à ficção científica no país. O caso é que, mesmo descontando histórias curtas mais recentes, existem exemplos de narrativas longas que se enquadram perfeitamente naquele gênero. Caso das várias histórias em que Monteiro Lobato levou personagens da literatura e da mitologia ao Sítio do Picapau Amarelo. Além disso, para citar um único personagem universalmente conhecido, Sherlock Holmes já veio ao nosso país pelas mãos de, pelo menos, três autores. Nos anos 80, o jornalista e escritor catarinense Raimundo Caruso se apropriou da criação de Arthur Conan Doyle em seu Noturno, 1894. Já na década seguinte, primeiro J.J. Veiga, célebre autor do cada vez mais atual A hora dos ruminantes, e em seguida o apresentador e humorista Jô Soares também escreveram histórias alternativas com o detetive inglês, respectivamente em O Relógio Belisário e O xangô de Baker Street.

De qualquer forma, mesmo sem poder ostentar o título de desbravador desse território, Octavio Aragão deve, sem favor algum, ser considerado o autor que encarou com mais fôlego e de modo mais radical o universo da ficção alternativa. Antes dele, nenhum outro autor nacional havia apresentado uma obra em que fossem empregadas tantas ferramentas desenvolvidas pelos maiores especialistas dessa área. Gente como o britânico Kim Newman, de Anno Dracula, e o americano Phillip José Farmer, Tarzan alive, que escreveram elaboradas versões para o vampiro da Transilvânia e para o homem-macaco das selvas. Isso para nem voltar a citar aquela dupla dos quadrinhos. Com sua engenharia capaz de entrecruzar distintas criações literárias em um mesmo cenário, o escritor carioca pode popularizar o gênero no país, colaborar com a difusão dos autores clássicos e ainda inspirar novos experimentos brasileiros. Afinal, com A mão que cria ele já foi responsável por pelo menos um milagre, ao garantir a ressurreição do selo Unicórnio Azul, da editora Mercuryo. O mesmo que, na década passada, levou às livrarias histórias originais do criador de Conan, Robert E. Howard, e livros baseados na série Arquivo X. Infelizmente, brigas entre os sócios daquela editora abortaram a sequência de novos livros de ficção científica pelo selo, mas Octávio Aragão já trabalha na segunda parte de sua ficção alternativa, apesar de não revelar por qual editora pretende publicá-la.

O homem que matou Paolo Rossi

Mesmo tendo que dividir o tempo entre as capitais do Rio de janeiro, onde nasceu, e a do Espírito Santo, onde leciona na universidade federal local, o autor de A mão que cria segue pesquisando e escrevendo histórias de ficção científica. Nesta entrevista, publicada originalmente no site omelete.com.br, ele comenta as influências literárias e quadrinhísticas de seu primeiro romance; faz um balanço sobre os quase dez anos da carreira iniciada com "Eu matei Paolo Rossi", texto que deu origem ao universo da Polícia Internacional do Tempo, ou Intempol - atualmente, enquanto o site do projeto está fora do ar, ele se mantém ocupado publicando em capítulos Reis de todos os mundos possíveis em um endereço alternativo. -; e também dá pistas sobre os próximos projetos, entre eles, a continuação para o seu primeiro romance (de quebra, chutamos e acertamos o provável título do segundo livro da série). Com vocês, a mão que escreve, Octávio Aragão.

Lembrando que no próximo ano completa uma década de seu lançamento como escritor profissional, com a noveleta "Eu matei Paolo Rossi". Você poderia fazer um rápido balanço destes primeiros dez anos como autor? Quantos textos já foram criados, quantos foram publicados em livros ou em outras mídias, como a Internet?


Pois é, quase dez anos de "carreira".

Não, dez, não. Nove. Comecei em 1998, na antologia Outras copas, outros mundos, da extinta editora Ano-Luz.

Não me considero um autor "literário", pois ainda tenho muito arroz com feijão para comer, e, talvez por causa disso, não tenho muitas histórias rolando por aí. Até tomar uma decisão e escrever algo, deixo o conceito amadurecer muito - às vezes anos - antes de pegar no papel.

O número de textos publicados é consideravelmente pequeno. Não lembro de todos, mas acho que passaram de vinte. Ou seja, uma média de dois por ano. Em livros, antologias de contos com vários autores, que são os que levo mais em consideração, foram cinco, desde a estréia, em 1998. No ano passado, fui publicado no site da revista Cult e, fora isso, alguns fanzines, prozines e e-zines. Este ano deve ocorrer uma estréia internacional. Vamos esperar para ver.

Com todo o potencial do cenário que você criou e com o final inesperado e em aberto do livro, a pergunta é inevitável: vai haver uma continuação para A mão que cria (talvez A mão que pune, para completar a citação a A ilha do Dr. Moreau?)

Meu editor, Fábio Barreto, quer uma continuação desde que leu a história pela primeira vez. E o título deve ser mesmo A mão que pune. Não sei como vou me virar, pois tenho de defender meu doutorado em junho de 2007 e o Fábio gostaria de ter o manuscrito de A mão que pune em outubro.

Vai ser um trabalho do cão, mas será divertido... tenho algumas idéias aqui na manga e acho que vão dar outras possibiidades à história. Posso adiantar que será um livro maior, um pouco mais denso, mas sem perder a ação.

Na mesma linha: o seu projeto mais conhecido é o Universo Intempol, totalmente colaborativo e multimídia, que reúne mais de uma dezena de autores do Brasil e até de Portugal para contar histórias com um núcleo ficcional em comum. A mão que cria pode seguir esse mesmo caminho ou neste caso você pretende manter a exclusividade autoral?

Não, A mão que cria é um playground particular. A Intempol é legal, porém creio que já pode andar sozinha.

Veja bem, isso não quer dizer que eu não possa voltar ao universo eventualmente. Ainda tenho uma ou duas histórias que gostaria de contar, apenas não pretendo repetir o que já fiz antes. Um shared universe é o suficiente e fico feliz em ter dado oportunidade a autores tão diversos como Hidemberg Frota, Paulo Elache, Jorge Nunes e Osmarco Valladão. Todos são excelentes contadores de histórias que estrearam profissionalmente com os contos da Intempol.

Você pode comentar algumas das obras do gênero ficção alternativa que influenciaram seu livro? O que os brasileiros estão perdendo com a ausência de títulos como Anno Dracula e Tarzan alive nas livrarias locais? Você diria que há chances desses livros serem publicados por aqui?

Tarzan alive e Doc Savage: His apocalyptic life são dois livros ótimos de autoria de Philip José Farmer, autor de bons romances de ficção científica como Mundo do Rio e Dayworld. Eles estabelecem que os dois personagens eram pessoas reais cujas aventuras foram contadas de maneira "disfarçada". Isso promoveu Edgar Rice Burroughs e Lester Dent de ficcionistas a biógrafos, e a ginástica mental de Farmer para encaixar cada um dos romances produzidos pelos dois autores - e olha, não foram poucos - dentro da história do mundo "real", ou seja, o nosso, é apaixonante, hipnótica.

Anno Dracula, do escritor e crítico de cinema Kim Newman, é divertido, uma verdadeira homenagem ao subgênero do horror. Não é tão bom quanto os livros de Farmer, por quem ele confessa ter sido influenciado. Mas tem valor próprio, por estabelecer um universo coeso, detalhado, cheio de filigranas e referências. Se Farmer foi a base de Newman, ele, sem dúvida, foi a mola-mestra por trás da concepção de A mão que cria.

Quanto ao sucesso dos livros no Brasil, eu arrisco dizer que, graças à paixão que o tema vampiresco desperta nos leitores daqui, Anno Dracula seria um tiro certeiro. Tarzan alive talvez vendesse um pouco menos, mas o personagem é forte o bastante para alavancar o produto, apesar de apelar a um público mais velho.

Quanto às chances de publicação, só Deus sabe. Nosso mercado é surpreendente no bom e no mau sentido.

Sem dúvida, para os leitores ligados aos quadrinhos, a maior referência desse gênero é a obra de Alan Moore e Kevin O'Neill: A Liga Extraordinária. Por terem produzido quadrinhos, os autores puderem ser ainda mais ousados na série e o clima de ficção alternativa não se se restringiu só a protagonistas e coadjuvantes: até a figuração e a cenografia são formadas por citações literárias do século XIX. Qual sua opinião sobre essa série e a respeito do filme que ela inspirou?

Eu fiquei um pouco decepcionado quando a primeira série saiu nos EUA. Estava esperando uma revolução, uma coisa de outro mundo. E, bem, não foi exatamente isso que eu vi. Até porque The League lança mão de algumas idéias antes ventiladas por Newman, como o confronto entre Fu Manchu e Moriarty (em Anno Dracula eles são rivais que estabelecem uma trégua para unificar o submundo de Londres contra o poderio da aristocracia vampírica) ou o desaparecimento de Sherlock Holmes (no romance de Newman, o maior detetive de todos os tempos está preso na Torre de Londres e, portanto, fora da ação do livro).

Sem falar que a tal "fidelidade" aos originais do século XIX, propalada pelos autores na época do lançamento, é discutível. O Capitão Nemo como guerreiro Sikh remete à Ilha misteriosa, mas é uma tremenda liberdade em relação a Vinte mil léguas submarinas (no primeiro romance, Nemo é descrito com características de um eslavo, provavelmente polonês. Usa botas de couro de foca e uniforme bastante condizente com um marinheiro e não aquele turbante e o modelito "hindu chic").

Outra que foge bastante à descrição do romance original é Mina Harker. Ao final de Dracula, ela não apenas está casada com Jonathan Harker, como é mãe de um menino, batizado como Quincy Harker, em homenagem ao companheiro morto na cruzada contra o vampiro. Onde foi parar esse filho, que sequer é citado na série? Não que Mina não pudesse se separar de Jonathan, ok, mas abandonar o filho seria muito fora da personalidade dela.

Curti muito mais o segundo volume, que tem idéias mais radicais envolvendo Moreau e o Homem Invisível, sem necessariamente ferir os conceitos originais dos personagens. Além do mais, aquela descrição de Marte, envolvendo personagens e fatos de diversas vertentes, é sensacional. Lembro que, quando descobri num quadrinho o Ovo de Cristal, do conto homônimo de H.G. Wells, pensei: "Aaah! Agora sim! Os caras estão mesmo botando para quebrar!".

Quanto ao filme, claro que não se trata de uma grande peça cinematográfica, mas tem lá seus maus e bons momentos. Adorei, por exemplo, o Dorian Gray, apesar de ter achado aquele Tom Sawyer uma bobagem. Adorei o design do Nautilus como um sabre - apesar de fugir léguas da descrição original de Verne, mas perdoe minha deformação profissional. Afinal, ainda sou designer e isso é o que paga minhas contas. Detestei o Homem Invisível andando pelado pelo ártico ou sendo queimado vivo (e sobrevivendo). Por outro lado o conceito de industrialização dos poderes dos personagens - graças a um hilariante "Kit Extraordinário" - é muito divertido.

Ficção alternativa, por empregar personagens alheios, é um gênero muito dependente das leis de direitos autorais em vigor em vários países. Para voltar a lembrar de Alan Moore, é só citar o sufoco que ele passou na Inglaterra para poder usar uma personagem ligada a Peter Pan em seu trabalho quase pornográfico Lost girls. Existe algum personagem que você gostaria de trabalhar em um livro mas que fica limitado pelas restrições existentes?

Não foi só com Peter Pan que o Moore teve problemas. Fu Manchu também não é citado nominalmente na League, mas pela alcunha genérica de "O Doutor". Farmer teve problemas com seu romance The adventure of the Peerless Peer - um crossover entre Tarzan e Sherlock Holmes -, em que teve de trocar o velho Lord Greystoke por Mowgli. Isso acontece com qualquer um que esteja bulindo com marcas registradas.

Exemplo bom é o da Isabel Allende e seu romance Zorro - Começa a lenda. O mascarado criado pelo escritor Johnston McCullen é uma das marcas mais bem guardadas do showbiz, mas isso não impediu que a autora fosse contratada para recontar sua origem com toda liberdade possível. Mas veja bem, ela foi contratada para o serviço...

Quanto a um personagem sobre o qual eu gostaria de trabalhar, ah, são tantos, mas tantos que dói pensar.

Houve um dia em que o escritor e compositor Bráulio Tavares fez um convite conclamando autores amigos a escrever contos novos de Sherlock Holmes, mas totalmente dentro do cânone, sem inventar nada, sem desconstruir nada, sem ridicularizar ou fazer pastiche. Na época, amarelei. Hoje, acho que toparia o desafio de participar de uma antologia sherlockiana.

Uma maneira ao menos parcial de driblar a questão dos direitos autorais são as fanfictions e os fanfilms, que normalmente são tolerados (e em alguns casos até incentivados) pelos titulares dos personagens desde que não tenham finalidades comerciais. Lembrando que A mão que cria teve uma origem fanfic, quais na sua opinião são as diferenças marcantes entre esse gênero e a ficção alternativa?

Não muitas. Acho que alguns autores de fanfics se auto-impõem rédeas curtas ou então, ao contrário, resolvem contar histórias que são o que eles queriam ver, mas que no fundo descaracterizam os personagens originais e suas premissas.

Por exemplo: li um fanfic de Arquivo X em que, ao final, Mulder e Scully iam para a cama depois de um beijo apaixonado. Bolas, aquilo era o que a autora "sonhava" que eles fizessem, mas não seria como eles, os personagens, fariam. A tensão sexual entre a dupla sempre foi óbvia, mas não era assim que os dois funcionavam. Era totalmente fora do formato e, em conseqüência, anticlimático, falso.

No extremo oposto, há vários fanfics de super-heróis que sofrem por não arriscar nada, enquanto autores profissionais, como Grant Morrison ou Garth Ennis, fazem exatamente o caminho contrário, com resultados bastante interessantes. Eu sempre penso que há pontas soltas nas origens de alguns desses personagens que nunca foram bem exploradas e que dariam muito pano para manga... tenho umas idéias e, algum dia, ainda escrevo algo a respeito.

O segredo, enfim, é o equilíbrio. Tem de ousar, mas fazer isso com conhecimento de causa dos personagens e de toda sua mitologia.

Por falar em fanfic, não há referências no livro sobre esse passado da obra. Foi uma decisão sua ou da editora não mencionar a questão? E do mesmo modo, na lista de anotações não existem citações aos vários personagens inspirados nos quadrinhos. Por que isso acontece se até obras com direitos ativos (caso dos filmes da série Alien e Sexta-Feira 13) foram listadas?

É diferente. As referências a Alien e Sexta-Feira 13 são tangenciais, mais homenagens mesmo. As outras, não.

A decisão a respeito de não se tocar nas encarnações anteriores da história foi editorial, mas eu sempre falo a respeito disso quando perguntado ou não. Nunca fugi das origens "fanfiqueiras" de A mão que cria.

Outra coisa, achei por bem não mastigar tudo para o leitor. Para você ter uma idéia, todos - eu disse "todos" - os personagens são referenciais, com duas exceções. No entanto, a maioria não está creditada nos anexos. Penso que os leitores têm de fazer uma forcinha também. Faz parte da brincadeira.

Tem quem ache que eu "esqueci" de citar alguns homenageados. Não foi o caso, homens de pouca fé... Eu apenas deixei a bola quicando na grande área. Cabe ao leitor chutar.

Houve alguma reação na comunidade ligada à ficção científica nacional por sua editora apresentar A mão que cria como o primeiro romance de ficção alternativa do Brasil. Lembrando que autores como Monteiro Lobato, Raimundo Caruso, J. J. Veiga e até Jô Soares lançaram livros que podem ser encaixados tranqüilamente no gênero, qual sua posição sobre o assunto?

Houve quem chiasse, mas isso não me incomoda, muito pelo contrário. Quero mais é que falem a respeito.

Eu mesmo cito Lobato e Veiga como precursores de peso, mas creio que a diferença crucial é que usei o termo cunhado pelo teórico francês Eric Henriet, Ficção Alternativa, e os outros nem sabiam que isso existia quando pensaram suas histórias. Ou seja, fiz de caso pensado, os outros talvez não. Ao menos, que eu saiba.

Mas honestamente, discutir isso me parece mais um caso de procurar cabelo em ovo. Por outro lado, repito: em termos comerciais, qualquer polêmica é positiva.

Voltando a falar sobre o Intempol e seus outros projetos: depois de um portal, livro de coletânea de contos e história em quadrinhos, vai vir mais alguma ação multimídia por aí? Qual a opinião predominante dos autores de ficção científica brasileiros para projetos como esse, que abrange tantos meios distintos?

As opiniões, como em tudo mais, se dividem. Há quem goste muito; existem aqueles que pensam saber como deveria ser feito, sem jamais ter tido ou a disposição ou a coragem ou a grana para desenvolver um projeto desses. E há quem simplesmente ignore (mesmo que tenham proposto vários contos e tenham sido repetidamente rejeitados).

Pretendo retomar a Intempol em 2007, se tiver tempo, e não o contrário. Mas encarei alguns problemas contratuais referentes à publicação da graphic novel [The long yesterday], que foi um bom passo, mas não o "elemento definidor", como querem alguns. Explico: o Projeto Intempol já existia antes da graphic novel e existirá depois. Se The long yesterday foi indicada a prêmios, teve muito mais a ver com a qualidade do material que com o fato de ter sido efetivamente publicado. Postular o contrário é inverter a realidade. Foi publicado porque é um bom material, não é um bom material porque foi publicado.

Acredito na força da marca e creio que ainda podemos alcançar outros públicos neste segmentado mundo do entretenimento brasileiro.

O mais engraçado é que o público de HQs ignora solenemente a versão literária, enquanto o leitor de ficção científica não ligou muito para a graphic novel e a pequena história publicada na revista Wizard. Isso tudo, porém, em lugar de ser uma complicação, pode ser mais uma vantagem. Segmentação é uma saída viável para esse tipo de produto.

O fato é que tenho uma verdadeira coleção de idéias que dependem apenas de mim, entre elas um romance de hard science fiction, que vai me tomar um tempão de pesquisa, e outras coisas que devem estar pipocando em alguns meses.

Adoro a Intempol e não vou abandoná-la, mas a vida é curta e tenho muita coisa para fazer nos próximos dez anos.

Sangue e silício

No mundinho dos leitores brasileiros de literatura fantástica em geral, e de ficção científica no particular, certos livros escritos por seus compatriotas carregam um status mitológico semelhante ao do misterioso Necronomicon. Alguns privilegiados juram que já os leram, citam trechos cifrados em conversas ou em trocas de e-mails e até deixam escapar detalhes da trama. Só que não emprestam, nem dizem como seus interlocutores poderiam adquirir algum exemplar, mesmo que seja de terceira ou quarta mão, rasurado, sem capa, com manchas de café espalhadas pelas páginas. Com isso, o mito em torno do objeto de culto cresce e divide o mundo entre os que, mesmo sem provas, crêem em sua existência e aqueles que, meio desdenhosamente, classificam tudo de delírio coletivo ou de teoria conspiratória. Pelo menos, agora, desde junho de 2007, uma dessas lendas urbanas passou a ter sua existência comprovada e se tornou acessível a todos os interessados - sejam crentes ou céticos -, graças à intervenção tecnológica do site Overmundo.

Interface com o vampiro e outras histórias havia sido publicado e comercializado, em formato eletrônico, pelo Writers, um projeto colaborativo para a produção de obras literárias. O problema é que, logo após o seu lançamento, no ano 2000, a editora virtual fechou, prejudicando tanto a divulgação quanto a disseminação daquele título. Somente um seleto grupo de pessoas ligadas ao meio da FC teve acesso ao e-book na época, o que lhe emprestou a mesma aura de inatingível de alguns dos livros clássicos desse gênero lançados no país em meados do século passado. O mistério só acabou porque seu autor, após ter recuperado a totalidade dos direitos autorais da obra, resolveu torná-la disponível na íntegra no Overmundo. O mérito pela iniciativa, portanto, cabe ao escritor e poeta e tradutor e dramaturgo e ator e jornalista e teórico professor e blogueiro Fábio Fernandes.

O livro é um apanhado de histórias curtas escritas entre 1989 e o ano da primeira publicação, ao todo são 11 jogadores, tal e qual nas melhores seleções. Apesar do longo tempo de produção entre um e outro desses textos, o leitor tem mais a ganhar se optar por acompanhá-los na mesma ordem com que foram dispostos nas páginas virtuais ao invés de praticar uma leitura aleatória. Interface com o vampiro tem algo em comum com discos conceituais, a exemplo do aniversariante Sergeant Pepper: a justaposição de suas faixas - ou, no caso, capítulos - empresta sentidos novos à fruição do conjunto. Em alguns casos de maneira explícita, em outros, insinuada, a ordem com que o autor organizou as peças de sua obra sugere relações entre as diversas histórias, fortalecendo o livro como um todo, mais que a simples soma randômica de suas partes. Outro ponto em comum com o famoso álbum dos Beatles, é o gosto por harmonizar cultura erudita e biscoito fino para as massas, terreno pantanoso que costuma engolir muitos de seus exploradores.

Já que a ordem escolhida para a apresentação foi aqui elogiada, não sejamos contraditórios; façamos alguns comentários a respeito dos contos na mesma sequência com que eles entram em campo.

"O artista da carne (uma párabola)" - Interface com o vampiro começa com a história de um... vampiro. Daqueles clássicos, com caninos proeminentes e gosto por sangue. Mas estamos no século XXII, a existência desses seres é reconhecida e até tolerada. O protagonista, sem nome, por exemplo, só se alimenta em bancos de sangue autorizados. Cansado da solidão de uma vida que se estendeu por mais de 200 anos, ele faz uma encomenda ao personagem que dá título ao texto: quer que o Artista da carne providencie o clone de uma mulher que conheceu no passado, antes da opção pelo vampirismo. Narrativa econômica e minimalista ao extremo.

Trecho: "Os meses passam, e tudo continuou perfeito. O vampiro desconfiou: a experiência lhe ensinara que nada continuava perfeito".

"Em camadas" - Existe um texto que é praticamente unanimidade entre os críticos quando perguntados a respeito do que existe de melhor em termos de ficção científica no Brasil. Com justiça, o escolhido é "A escuridão", noveleta escrita em 1963 pelo poeta e decano da FC nacional André Carneiro. Trata de um mundo em que todas as fontes de luz - do sol ao fogo, das lâmpadas às estrelas - vão lentamente se extinguindo, deixando a humanidade, simbolizada por um homem solitário chamado Wladas, totalmente entregue às trevas. O segundo conto da coletânea de Fernandes guarda semelhanças e qualidades que permitem a comparação com o clássico do gênero nacional. O protagonista aqui recebeu o nome de Ivan, aparentemente em homenagem a outro escritor brasileiro de ficção científica Ivan Carlos Regina (um paulista cujos textos também podem ser lidos em alguns sites), a quem a história é dedicada, ao lado do americano Philip K. Dick (autor que já foi traduzido no Brasil por Fernandes, exemplo mais recente, o livro Valis). Aos poucos, Ivan percebe uma série de estranhos fenômenos: primeiro são estações de rádio que aparentemente começam a sofrer interferências, como se as frequências estivessem sobrepostas, e em seguida, fitas de vídeo e de aúdio também dão sinais do mesmo tipo de problema. Em um crescendo rápido, as falas e os idiomas das pessoas, textos de livros, o sabor dos alimentos, os sonhos, as imagens, as impressões táteis, tudo enfim, vira um absurdo sinestésico, se misturando em um amálgama de realidades. O efeito do conto é pertubador. Apesar do ritmo e andamento serem perfeitos, faz o leitor imaginar o que aconteceria se o autor o trabalhasse na forma de um romance à parte.

Trecho: "É como se tudo no universo existisse em camadas, e agora elas estão se interpondo umas no meio das outras, invadindo os espaços alheios, acelerando a entropia, antecipando um novo Big Bang".

"A conta, por favor (ou Salvador almoça no Antiquarius)" - Basicamente, uma piada corriqueira ganha ares de conto fantástico. Escrito com estilo, o texto narra, em primeira pessoa, a refeição que um homem de tapa-olho faz em um restaurante caríssimo. O conto é dedicado a outro escritor brasileiro, Victor Giudice (1934-1997).

Trecho: "Os mais endinheirados sempre trazem um enfermeiro a tiracolo para servir a comida na boca. Pelo menos foi o que vi há um ano, da primeira vez em que vim. Este é o meu segundo jantar aqui. E provavelmente o último. É tudo muito caro hoje em dia. Por isso saboreio o quanto posso".

"Falange vermelha" - Este é um caso em que a justaposição dos contos provoca uma sensação de que tudo pode fazer parte de um contexto mais amplo. Lido isoladamente, o quarto texto de Interface com o vampiro e outras histórias, bastante curto, aparentemente não faz parte de nenhum gênero da literatura fantástica. Parece mais um pequeno tratado naturalista sobre um homem que teve um dedo decepado (ou ainda, um homem que decepou o próprio dedo). Mas quando lido em conjunto com aquele que o antecede, o efeito é de algo bem maior.

Trecho: "No instante do corte, é como quando você corta uma fatia de queijo, só que o queijo é você. Você sente a faca deslizar pela carne, e é tão palpável essa sensação que a impressão é de que você também sente os nervos sendo cortados. Mas é só impressão: você só conseguiria sentir um corte a esse ponto se a faca estivesse muito cega. Porque se estiver bem afiada você não sente quase nada".

"M.U.A." - Início dos anos 80, Ramón e Renata são dois jovens que estão prestes a se casar no Rio de Janeiro quando o rapaz simplemente desaparece. Ele só volta a dar sinal de vida seis anos depois, reaparecendo de súbito na frente de sua ex-noiva para lhe contar uma história absurda. Com uma engenhosa incursão pelas Leis de Newton (as letras do título são a sigla de movimento uniformemente acelerado) usadas para explicar fenômenos da quarta dimensão, Fábio Fernandes criou uma bela história de personagens palpáveis envolvidos em uma situação surreal. Digno dos melhores momentos de um Além da Imaginação, até pela reviravolta do final.

Trecho: "Isso começou a acontecer uns seis meses antes do dia do casamento. Eu comecei a ter brancos estranhos. Atravessava uma rua de manhã, e chegava do outro lado à tarde. Entrava na cozinha à noite e voltava para a sala ao meio-dia".

"Se um viajante a bordo de um disco..." - Outro exemplo de texto curto que parece ter tido origem em uma piada ampliada. Exercício de estilo em narrativa de segunda pessoa sobre uma vítima de rapto espacial. O que os alienígenas poderiam querer com uma cobaia quase cega de tão míope? A dedicatória, desta vez, foi para dois autores internacionais: Ítalo Calvino, nascido em Cuba mas considerado um dos maiores escritores italianos (de quem Fernandes tomou emprestado o título do conto), e H. G. Wells, o inglês que é um dos fundadores da moderna FC.

Trecho: "O medo que você esperava sentir não é tão grande. Tantos filmes de ficção científica tinham que servir para alguma coisa, afinal".

"Declínio e queda" - Sucessão aparentemente interminável de desgraças na vida de Guilherme, por certo o mais azarado jornalista carioca de todos os tempos. Entre um ônibus e outro, ele tem que enfrentar funcionários burocratas e grevistas, sofrer com múltiplos assaltos e arrastões, levar tiros, facadas e pancadas, aguentar chuva, fome e dor. Crueldade autoral na última potência.

Trecho: "Quando salta no ponto final, está chapado, anestesiado, cansado de tudo, os nervos esticados como cordas finíssimas, prontas para se romper com a menor tensão".

"Não temos tempo" - Mudança de cenário: sai o Rio de Janeiro, terra natal do autor que atualmente mora em São Paulo, e entra Itabirito, cidadezinha mineira, entre Belo Horizonte e Ouro Preto, como lembra o narrador do conto. O narrador em questão é um adolescente, cheio de citações cinematográficas na ponta da língua, que escolhe o dia de um baile para escapar com sua namorada. Só sabemos que a dupla foge do que o rapaz identifica simplesmente como eles.

Trecho: "Torci o braço dela e respondi: isto não é cinema mesmo não, sua tonta, é pior, é a realidade".

"O poder e a glória" - Novamente, um texto reforça o que veio antes, aparentando ligação de causa e efeito. Neste conto, um personagem não identificado está sozinho, elaborando teses cada vez mais complexas sobre o mundo que o cerca. A impressão é a de uma resposta ao texto anterior, "Não temos tempo" e, talvez, até mesmo a "Em camadas".

Trecho: "O todo é como um número infinitesimal de folhas transparentes superpostas. Unidas elas se tornam opacas. Obstáculos".

"Um diário dos dias da peste" - Fábio Fernandes entra aqui em um cenário típico da ficção científica, computadores adquirindo consciência, formando o princípio de uma inteligência artificial (IA). Voltamos ao Rio de Janeiro. Paulo é formado em Administração, mas já há quatro anos trabalha como técnico de informática e passa a enfrentar uma crise sem precedentes relacionada às máquinas que ganha a vida consertando. Computadores começam a apresentar um comportamento bizarro, comportando-se como se estivessem vivos, xingando seus proprietários com mensagens nos monitores, se recusando a serem desligados. Em seu diário, digitado quando viável, manuscrito quando não é mais possível controlar os PCs, o personagem relata os efeitos do que a imprensa apelidou de Infodemia, uma doença espalhada pela rede a todos os processadores do mundo.

Trecho: "Meus olhos estavam colados no botão da CPU. Apertei-o e só então levantei a cabeça. As letras continuavam na tela. Desliguei o monitor, o estabilizador de tensão e puxei o fio da tomada. Abri a pasta e peguei um par de luvas de látex e a chave Phillips. Às vezes é preciso destruir o coração do monstro".

"Interface com o vampiro" - No conto que dá nome ao livro, a relação direta com o antecessor é a mais explícita. Na realidade, somando ambos, "Um diário dos dias da peste" e "Interface com o vampiro" representam quase a metade das 124 páginas do livro digital e formam aquela que, muito provavelmente, é a melhor história cyberpunk já escrita no Brasil. E é bom lembrar que o autor é um especialista no assunto, tendo lançado neste ano um ensaio teórico sobre o assunto: A construção do imaginário cyber – William Gibson, criador da cibercultura. Oito anos após o evento que levou o nome de Despertar, ou seja, do surgimento das primeiras IAs (ou Inteligências Construídas, como preferiu o autor), Paulo, auxiliado por seu computador consciente Anjo 45, tem que enfrentar as consequências dos novos relacionamentos entre homens e máquinas.

Agora ele é um importante agente de segurança neste novo mundo tecnológico, trabalha para a multinacional Wells-Kodama, corporação fictícia que surge em vários textos de Fábio Fernandes, desde suas colaborações para o projeto Intempol até uma fanfic que o autor criou para o site Hyperfan sobre Grimjack, personagem dos quadrinistas John Ostrander e Timothy Truman. Se a ameaça anterior era a Infodemia, agora o problema é ainda maior: a humanidade está sendo contaminada por vírus cuja origem vem a ser as cada vez mais necessárias máquinas sapientes. Progredindo em um estilo de escrita cada vez mais minimalista (que ecoa o utilizado na abertura do livro), o conto chega ao fim abrindo várias pontas. O diálogo final entre Paulo e Anjo 45 tanto pode lembrar os leitores da obra mais famosa da escritora de horror Anne Rice (cuja paródia no título do livro de Fernandes é evidente), quanto das cenas clássicas de Hal 9000 e Dave Bowman em 2001 – Uma odisséia no espaço. De quebra, ainda é possível se especular a respeito de uma ligação maior entre este conto e aquele que abre a coletânea, "O artista da carne", o que nos dá um looping narrativo e tanto.

Trecho: "Cogito ergo sum é muito limitador, Paulo. Queremos sair da teoria e entrar na prática. Queremos sentir".

Assim sendo, é desta forma que chegamos ao fim - e podemos até voltar ao começo - deste clássico recente da ficção científica nacional, finalmente disponível a todos os leitores potenciais nele interessados. O fato de que tal acontecimento tenha se dado em junho de 2007, a mesma data em que se encerra o último conto da coletânea, deve ser apenas coincidência. Para nós, leitores, o mais importante é que Interface com o vampiro e outras histórias esteja acessível a qualquer hora e em qualquer lugar, com a capa intacta e sem rasuras nem manchas de café espalhadas por suas páginas. Agora já posso voltar a procurar por uma edição do Necronomicon.

Poltergeist cibernético

Após longo período sabático, no qual concluiu sua pós-graduação tendo como tema a ficção científica, um dos melhores escritores brasileiros deste gênero literário volta aos poucos à ativa. Prova disso é o fato de ele ter tornado disponível no banco de obras do Overmundo o livro Interface com o vampiro, premiada coletânea de contos que pode ser considerada uma das mais importantes contribuições à literatura fantástica já lançadas no país. Nesta entrevista, o carioca radicado há alguns anos em São Paulo faz um retrospecto geral da carreira; revela detalhes sobre trabalhos que estão por vir nas diversas áreas artísticas em que atua; comenta alguns aspectos do seu livro originalmente lançado no ano 2000 e revela os detalhes por trás do apelido que ganhou de um colega escritor de FC: cybergeist. Com vocês, uma interface com Fábio Fernandes:

Você está na ativa produzindo textos literários – tanto em prosa quanto em verso - e teatrais, desde meados da década de 1980. Em um balanço rápido: já foram quantas peças escritas e encenadas; quantos livros lançados; quantas traduções de romances e de contos publicadas e de quantos autores diferentes; quantos prêmios recebidos nestas primeiras duas décadas?


Nunca parei para fazer uma contagem exata: crashes em discos rígidos de vários computadores e a perda lamentável de impressos de alguns textos foram em parte responsáveis por isso. Mas creio que é mais ou menos o seguinte: tenho três peças de teatro (Polêmicas, de 1985, peça de três esquetes que ganhou um prêmio em 1986 e que teve um de seus esquetes reescrito em 1998, tornando-se a peça Vestidos brancos, encenada no Rio de Janeiro sob a direção de Luiz Armando Queiroz; Com açúcar, sem afeto, monólogo cômico encenado por mim mesmo e dirigido por Anja Bittencourt; e Ao fim do longo inverno, ainda inédita. Esta última peça é a única que tem uma temática de ficção científica (inverno nuclear), e foi adaptada para o cinema por mim, Anselmo Vasconcellos e Marco Schiavon, para ser dirigida por Emiliano Ribeiro (As meninas). Esse filme está na fase de captação de recursos.

Livros: apenas o Interface com o vampiro, em 2000 e, mais recentemente, minha dissertação de mestrado, A construção do imaginário cyber (2006). Tenho uma coletânea de microcontos completa, o Pequeno dicionário de arquétipos de massa, composto de contos escritos entre 1998 e 2003, e que, embora tenha tido vários contos publicados em várias revistas (inclusive as brasileiras Cult, Et Cetera e Ficções e a portuguesa Periférica) e sites (inclusive o Overmundo), tem sido sistematicamente recusada por editoras. Publiquei vários contos em coletâneas e uma novela meio em formato fanzine, A revanche da ampulheta. Interface e Revanche ganharam dois prêmios Argos, concedidos pela Sociedade Brasileira de Arte Fantástica.

Traduções: algo entre 60 e 70, mas realmente não tenho a conta, até porque alguns desses livros (como Bird lives, uma biografia de Charlie Parker) nunca foram publicados. Contos, entre 20 e 30, todos para a extinta Isaac Asimov Magazine, entre 1989 e 1991. Autores, muitos e variados, de Kurt Vonnegut e Gore Vidal até William Gibson e Philip K. Dick, passando por nomes menos conhecidos dos brasileiros como George R. R. Martin e Frederik Pohl. Neste momento, estou terminando a tradução de Snow crash, de Neal Stephenson, um autor pós-cyber que ainda não é conhecido do grande público, mas que é o responsável pela introdução do termo "avatar" no jargão internético e cujo Metaverso ficcional serviu de inspiração para o Second Life.

Interface com o vampiro segue o caminho de flexibilização dos direitos autorais do copyleft. No ano 2000, a obra teve uma encarnação anterior, também eletrônica, porém o acesso era cobrado e intermediado por uma antiga editora virtual. Mas, antes disso ainda, alguns dos contos já haviam saído impressos na década de 90, em fanzines. Ou seja, seu livro passou por praticamente todas as fases de uma revolução no acesso ao conhecimento. Qual é o futuro que você imagina para a indústria editorial e para os escritores, principalmente os ligados à literatura de gênero, como fantasia e FC?

Toda previsão em termos de tecnologia é perigosa, e não pode ser levada a sério - talvez por isso gostemos tanto da ficção científica, que é um território de experimentações onde podemos deixar a imaginação correr solta. A experiência com a editora digital não foi boa, porque acho que esse sistema já nasceu falho: se todo mundo pode baixar uma imensa quantidade de conteúdo de graça, por que é que vai se dar ao trabalho de pagar o que seja (e lembro que, na época, o livro custava 18 ou 20 reais, o que ainda é muito caro) por um PDF? Por melhor que seja o conteúdo, não vale tanto. O interessante é que, pouco depois do lançamento do livro, entrei no mundo dos blogs - e percebi que a maioria dos blogueiros queria era, no fundo, publicar livros de papel! Ou seja, ainda não nos libertamos do papel.

Mas eu não acho isso ruim, porque a literatura é uma mídia cujo melhor suporte ainda é o papel. Quando ela sai do papel, ou vira hipermídia ou game – até porque, se não virar, fica muito chata e malfeita – dá a sensação de que foi subaproveitada. Cheguei a pensar em fazer hipermídia há algum tempo, mas sei que ainda não explorei todas as possibilidades que as palavras têm para oferecer no simples suporte bidimensional do papel. Basta vermos o que tem sido lançado em literatura brasileira. O que tivemos de realmente revolucionário depois de Guimarães Rosa e de Paulo Leminski? Ainda existe muito chão, e, como disse Antero de Quental, é ideal ocupar estes espaços.

Em oportunidades anteriores, você já disse que pensou em voltar ao universo de alguns dos contos que formam a coletânea, especificamente o de "Um diário dos dias da peste" e "Interface com o vampiro". Tal retorno chegou a ser escrito? Existe a possibilidade de outros temas da coletânea serem revisitados, como o do conto "Em camadas"?

Esse retorno chegou a ser escrito em parte - um conto com o título provisório de "File not found" -, mas não cheguei a terminá-lo. Tive recentemente uma proposta para publicar um livro, e ofereci uma revisitação desse universo, onde eu reescreveria os dois primeiros contos e finalizaria o terceiro, mas a idéia não agradou. Quanto a outros temas da coletânea, ainda é muito cedo para falar, mas tenho pensado seriamente num livro que explore caminhos abertos não por "Em camadas" (que é um dos meus contos favoritos) mas por "M.U.A." Algumas idéias têm surgido na minha cabeça e acho que alguma coisa interessante pode surgir daí.

Há uma certa semelhança na situação vivida por seu personagem Ivan, do conto “Em camadas”, e na que vitima o protagonista de "A escuridão" de André Carneiro. Essa foi uma referência real ou a influência para o texto partiu de outras fontes? E ainda: em um comentário você chegou a dizer que a idéia para o conto partiu de uma experiência real. Poderia detalhar como foi esse ponto de partida?

Quando escrevi "Em camadas", eu tinha em mente as histórias de Robert Sheckley e os episódios de Além da Imaginação, mas não o conto do André Carneiro, apesar de eu gostar muito de "A escuridão". E o que deflagrou todo esse processo foi uma situação vivida por mim em meados da década de 1990, quando tinha acabado de me mudar para um apartamento em Botafogo, no Rio, e instalado minha primeira TV a cabo. Numa madrugada, eu estava assistindo a um filme (A vida segundo Garp) e, pouco antes do fim, a imagem simplesmente sumiu e foi substituída por outro filme (Asas do desejo, de Wim Wenders). A troca dos filmes e dos temas foi tão súbita que me deu um susto. Claro que tudo não passou de um erro da operadora, mas me deu o que pensar. Naquela semana lembro que havia acabado de escrever o conto “O artista da carne”, e tinha lido pouco antes um conto muito bom chamado "In numbers", do escritor australiano de FC Greg Egan. Todos esses fatores conjugados acabaram gerando "Em camadas".

Ainda sobre experiências de vida aproveitadas para a produção literária: quem lê "Um diário dos dias de peste" e "Interface com o vampiro" pode imaginar que se deparou com um expert em informática. A impressão se fortalece pelo fato de você ter se formado como técnico em eletrônica antes de cursar Jornalismo. Mas consta que sua experiência real com hardware não é bem assim, tanto que chegou a receber um apelido de um colega escritor de FC, Braúlio Tavares, para expressar a falta de jeito: cybergeist (literalmente, cyberespírito, mas também pode ser compreendido como "poltergeist cibernético"). O resultado prático dos textos citados são a prova da importância da pesquisa para todo escritor de FC que pretenda publicar algo mais hard, mais ligado ao mundo das ciências exatas e da tecnologia aplicada?

Na verdade, hoje eu até que aprendi um pouquinho de informática, o suficiente para não fazer mais jus ao grande e elogioso apelido do Bráulio. Mas na época, eu realmente pouco entendia do assunto: inclusive me identifiquei muito com o Gibson quando ele descreve suas reações ao usar seu primeiro computador para escrever Count zero (porque Neuromancer foi escrito em máquina de escrever).

Como tradutor, aprendi uma coisa que me ajudou e me ajuda muito na hora de escrever meus próprios textos: é muito importante pesquisar e aprender os termos corretos do que você vai traduzir - mas tão importante quanto, ou talvez mais, é conhecer bem seu próprio idioma, para que o texto pareça ter sido escrito por um brasileiro. Ao escrever uma história que exija pesquisa, mais importante que entender os mínimos detalhes do assunto é trabalhar bem a história, a linguagem e os personagens, para que a narrativa flua como se você estivesse, por exemplo, ouvindo alguém contar uma história que aconteceu de verdade. Quando você está numa roda de amigos ouvindo uma história verídica, os detalhes podem até ser fundamentais para você entender o que se passou, mas a maneira de contar é mais importante, porque se a história for boa mas o narrador for chato, não rola, não dá liga. Acho que, primeiro, o escritor de FC precisa ler muita literatura brasileira, de todo tipo, de Machado de Assis a Ana Maria Gonçalves, passando por Clarice, Jorge Amado, Paulo Leminski, Nelson Rodrigues, enfim, é um universo incrível e maravilhoso. Agora, se esse candidato a escritor for daquele que só curte ler FC, então é bom nem começar, porque não vai sair um bom trabalho.

Para encerrar o assunto sobre esses contos: em um deles aparece uma referência à companhia fictícia que se tornou marca registrada de seus textos: a Wells-Kodama. De onde veio a idéia para a concepção dela? A junção dos nomes remete mesmo ao fundador da FC moderna, H. G. Wells, e à viúva de Borges, Maria Kodama, ou há algo mais?

É exatamente o que você falou. A idéia foi um trocadilho, uma homenagem-brincadeira. Que pretendo utilizar ainda mais algumas vezes.

Por falar em Borges, ele parece ser uma referência clara em seus textos mais voltados ao fantástico. Que outros autores fizeram e fazem parte da sua lista de influências assumidas? Entre eles todos, qual a importância de William Gibson, o criador da cultura cyberpunk e que chegou a ser tema de sua pesquisa na pós-graduação?

São muitos autores. Sempre gostei de ler de tudo. Uma lista rápida, pensada de cabeça, sem ordem de importância: Borges, Cortázar, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, William Gibson, Alastair Reynolds, David Zindell, Gene Wolfe, Machado, José de Alencar, Martins Pena, Marçal Aquino, Clarice, Jorge Amado, Osman Lins, Guimarães Rosa, Erico Veríssimo, Luis Fernando Veríssimo, e.e.cummings, Sylvia Plath, John Donne, Paulo Leminski, Yeats, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Martins Pena, Campos de Carvalho, Patricia Melo, Rubem Fonseca.

Sobre Gibson: a leitura dele, em 1989, foi um divisor de águas na minha cabeça. Eu já gostava muito de FC, mas até então eu era meio que um nerd, um legítimo nerd que, apesar de já ler bastante coisa em inglês e de curtir muita coisa que não era lida no Brasil, não entendia a FC como algo que pudesse ser realmente revolucionário. Claro, já existia a New Wave britânica, mas eu só fui ler esse pessoal depois de ler os cyberpunks. Eu me identifiquei de cara com a atitude punk sem deixar de ser inteligentes: era possível ser um nerd punk sem ser um geek, era possível fazer algo que não se limitasse a robôs e espaçonaves (coisa que, aliás, a leitura dos cyberpunks me travou para fazer; confesso que sempre quis escrever uma space opera ambientada no futuro distante, mas nunca vi futuro para isso no Brasil e não sei se vou conseguir escrever isso algum dia).

Quanto ao seu relacionamento com a academia, como a produção de escritores de FC, nacionais e internacionais, é encarada hoje no mundo acadêmico brasileiro? Você teve alguma dificuldade em propor seu tema para dissertação de mestrado na universidade e, principalmente, em encontrar outros pesquisadores para orientá-lo e para participar de sua banca?

Felizmente, não tive nenhuma dificuldade. Gibson e Stephenson são escritores lidos na academia, pelo menos no círculo de acadêmicos que estuda novas tecnologias. Minha orientadora de mestrado, a net artist Giselle Beiguelman, me deu muito apoio para escrever sobre Gibson. Não encontrei nenhuma dificuldade, pelo contrário: antes de mim, já trilharam essa seara pesquisadores incríveis, como Gilbertto Prado, André Lemos e Adriana Amaral, com os quais tenho o prazer de travar ótimos diálogos. E, pelo que pude conferir a partir da publicação da minha dissertação, vem mais gente por aí com material interessante para discutir FC. Na minha tese de doutorado, que devo defender até o final de 2007, continuo um pouco desse diálogo com a FC, mas não tratando especificamente do Gibson, e sim autores que exploraram a questão do pós-humano no futuro de diferentes maneiras, como Arthur C. Clarke, Stanislaw Lem, Richard K. Morgan, H.G. Wells e mais alguns.

Você acompanha o que vem sendo escrito atualmente em termos de FC no Brasil?

Infelizmente, não tenho acompanhado a produção atual. Parei na época da Intempol, porque foi justamente quando optei conscientemente por fazer uma espécie de "sabático" de ficção científica brasileira, basicamente porque eu precisava me aprofundar nos cyberpunks e em William Gibson para o mestrado.

Praticamente não escrevi FC nesse período: o que fiz foi terminar o Pequeno dicionário e batalhar pela sua publicação em revistas e como livro em editoras. Depois me formei no mestrado e atualmente estou dando aulas e traduzindo. E tive de mudar o eixo das minhas leituras de forma radical, o que inviabilizou um contato com publicações independentes.

Para finalizar: quais são seus projetos para o futuro nessas áreas todas em que atua?

Traduções: acabo de terminar uma tradução de ficção científica mas não estou autorizado a dar o nome do livro; deverá sair no segundo semestre. Agora estou traduzindo Snow crash e até o ano que vem tenho programada uma nova trilogia de fantasia de Shannara, de Terry Brooks, a sair pela Bertrand Brasil. Traduzi uma trilogia do mesmo autor há alguns anos e parece que ela está fazendo sucesso entre os fãs brasileiros.

Livros: uma editora me encomendou um livro de ficção científica, e comecei a escrever uma história que está com cerca de 120 páginas, mas ainda não fechamos contrato, por isso não posso falar mais a respeito. Os projetos mais concretos que tenho no momento são uma noveleta de 30 páginas que escrevi para o site mojobooks baseada em Charlotte Sometimes, uma história a la Neil Gaiman que publiquei no ano passado num número especial de ficção científica da revista Ficções. A noveleta tem a ver com um dos álbuns da minha vida, Staring at the sea, da banda The Cure (mas não tem nada a ver com ficção científica, apesar de Charlotte Sometimes ser ambientada num universo fantástico). Essa noveleta ainda não recebeu a aprovação dos editores, mas se eles toparem, pode ser que saia (em PDF gratuito) até o final do ano. Se não toparem, tudo bem; o original tem mais de 100 laudas e tenho a intenção de batalhar publicação assim que terminar a história.

Por outro lado, estou finalizando um livro de não-ficção para a Editora José Olympio: trata-se de um pequeno dicionário de verbetes sobre personagens marcantes da literatura brasileira. É um projeto que durou dois anos e me deu muito prazer - e me fez voltar a ler literatura brasileira em profusão, algo de que eu estava sentindo saudades (aliás, foi por isso que acabei criando o blog O Viajante Imóvel para o Overmundo). Além disso, estou finalizando minha tese de doutorado, que tratará do modo de ser na cibercultura, com um foco sobre o pós-humano.