domingo, 14 de outubro de 2007

O sangue no olhar dos vampiros

De todo o vasto estoque de personagens que o gênero fantástico deixa à disposição de seus autores nenhum fascina tanto os brasileiros quanto os vampiros. Tais criaturas fazem parte da mitologia e do folclore de diversas culturas há tempos, mas ganharam fama literária em 1879 com o lançamento de Drácula, de Bram Stoker. Por aqui, já exploraram o tema pelo menos duas telenovelas de grande audiência - Vamp e O beijo do vampiro -, além de muitos outros exemplos na música, nos quadrinhos, em programas humorísticos... Mais afeito ao terror, o vampirismo é o mote por trás de uma série de livros que podem ser considerados verdadeiros best sellers nacionais nesta área, todos de autoria de André Vianco e lançados pela editora Novo Século. Contudo, a ficção científica também faz sua parte para a construção do mito em nossas terras, sempre buscando substituir elementos sobrenaturais por explicações laicas e técnicas. Fazem parte deste grupo, escritores como Fábio Fernandes, Gérson Lodi-Ribeiro e Flávio Medeiros Jr. que ou já têm ou ainda pretendem lançar obras protagonizadas por homens-morcego. Em 2006, um novato chamado Osíris Reis entrou para esta galeria com um verdadeiro projeto multimídia.

Ancorado pelo que pretende ser uma série de nada menos que oito livros, este projeto sem dúvida é um dos mais ambiciosos em andamento no país com relação à ficção científica e ao terror. Isso por qualquer ângulo que se procure olhá-lo. Nascido em Goiás, mas radicado na Capital Federal desde 2001, Osíris Reis coordena lá de Brasília os esforços em torno da adaptação de sua idéia para outras plataformas. No site http://www.trezemilenios.xpg.com.br o internauta pode ter uma noção do que se planeja: já estão disponíveis imagens 3-D baseadas nos personagens e em objetos presentes na série, um trailer com narração feita pelo próprio autor e músicas instrumentais, entre outros brindes. Como atualmente o goiano faz o curso de Audiovisual - Tv, Rádio e Cinema - da Universidade de Brasília, e já participou da produção de documentários e de curta-metragens locais, o auge do trabalho pretende ser um filme inspirado nas obras literárias. A julgar pelo que se pôde ver no primeiro livro, caso venha mesmo a ser feita, teremos a versão nacional e com caninos proeminentes de Calígula; pelo menos no que diz respeito a derramamento de sangue e a cenas de sexo explícito.

O livro em questão é Treze milênios - Gênese vermelha, o Volume I de toda essa inusitada saga vampírica, publicado em 2006 pela editora Corifeu. Tudo começa em um futuro logínquo, uma data tão distante que parece algo proposto por Isaac Asimov. Em 7523, a humanidade conquistou o espaço, já fez intercâmbios pacíficos com outras culturas, dominou os quarks e construiu uma utopia de prosperidade, uma democracia direta intermediada por computadores. Neste contexto idílico, vive o protagonista da história, um médico que tem o nome mais ambíguo da história de nossa FC: Adolf Schindler. O personagem se prepara para comandar uma missão de exploração espacial em companhia de uma tripulação formada por outros seis capitães de origens diversas, entre eles, Mani, índia descendente de brasileiros. Tudo se encaminhava para uma ambientação típica de uma space opera, como aquela aparentemente infinita coleção de livros da série alemã Perry Rodhan. Porém, uma experiência clandestina de manipulação do tempo, posta em prática por um daqueles tripulantes, dá um rumo diferente à trama e carrega com ela meia dúzia de cobaias involuntárias.

A princípio, o objetivo do capitão renegado Eurass Brown era fazer um breve passeio - sair do ano 7523 para chegar a 7393. Algo dá errado, e o que deveria ser uma esticada de menos de um século e meio se tornou uma jornada composta por aqueles 13 milênios que dão nome à série. Pior que isso, ao chegarem ao ano de 5477 a.C. os viajantes do tempo descobrem que suas estruturas foram modificadas radicalmente no experimento. Não há porque fazer suspense: Osíris Reis dotou seus sete personagens com as características que nos acostumamos a identificar nos vampiros. Desde a imortalidade e a capacidade de regenaração até a necessidade de beber sangue e a fraqueza letal aos raios solares, o escritor buscou fornecer explicações científicas para tudo, partindo de uma alteração cromossômica planejada pelo antagonista do livro.

Teoricamente, o que os novos imortais precisariam para retornar à normalidade de suas vidas seria tentar não interferir na vida da humanidade, e com isso evitar alterações no futuro. Tudo isso e mais uma espera de 13 mil anos. Na prática, os planos dos membros do grupo entram em choque. Se o sempre ético Adolf Schindler pretende manter o ideal não-intervencionista, para preservar a utopia que virá, Eurass Brown não tem a menor intenção de se conter, e quer implantar um império na pré-história mesmo. A trama neste primeiro livro ocupa aproximadamente meio século, no qual a postura dos vampiros - dos sete pioneiros do século LXXVI e dos vários outros que eles criam entre os humanos locais - se alterna entre esses pólos. Os resultados são as já mencionadas sequências de derramamento de sangue e de cenas de sexo explícito: o escritor iniciante oferece a seus leitores algumas das descrições mais detalhistas e chocantes que a FC brasileira já produziu em ambos os quesitos. Torturas, desmembramentos, estupros e orgias com praticamente todas as tendências sexuais imagináveis formam um cardápio que daria orgulho a Vlad Tepes, o sanguinolento príncipe da Valáquia que inspirou Bram Stoker a criar seu livro mais famoso. Seguramente, não é algo recomendável para todo o tipo de leitores.

Gênese vermelha dá pistas de que seu autor pretende algo mais que contar a história secreta sobre a origem do mito do vampirismo. Detalhes, alguns mais sutis, outros nem tanto, dão a perceber que a influência dos sete vampiros vai se estender para outras mitologias, provavelmente percorrendo, ao longo da série, uma listagem do imaginário humano em todas as partes do mundo. Um detalhe tão ou mais ambicioso do projeto quanto as várias mídias em que ele pretende se lançar. Vai exigir bastante fôlego de seu idealizador, um esforço de pesquisa e uma habilidade narrativa enormes para dar coerência a tal saga. Pela amostra inicial, o escritor de 27 anos que propõe essa jornada conta com pontos positivos e negativos para acompanhá-lo pelo caminho.

Osíris Reis tem uma formação bem pouco usual que lhe dá boa vantagem para tratar das especulações que acumula pelas páginas do livro. Antes de começar o curso de Audiovisual, ele frequentou três semestres de Medicina, ainda na Universidade Federal de Goiás, e outros três de Mecatrônica, já na UnB. Tal currículo ajuda a explicar alguns bons momentos do seu livro de estréia, quando ele descreve minúcias técnicas sobre como foi possível a viagem no tempo, ou ainda quais são as extensões das alterações orgânicas dos primeiros vampiros. Neste último ponto, especificamente no trecho em que Adolf Schinler tem uma visão da nova composição celular dele e de seus colegas, o escritor foi especialmente feliz. O brasileiro consegue extrair daquela situação em nível molecular, algo semelhante ao que o americano Arthur C. Clark fez em planos bem mais amplos.

Vamos comparar, primeiro algumas linhas de Treze milênios - Gênese vermelha:

"Agora, Adolf estava microscópico. Até que se aproximou de um neurônio imenso. Uma célula cerebral sofisticadíssima, semelhante a uma estrela. Raízes brotavam dos raios dessa estrela, que o capitão sabia se chamarem de dendritos, com função de captar informações. Chamava a atenção um dos raios dessa figura, estendendo-se o suficiente para assemelhar-se a uma cauda. Era o axônio que, conforme Adolf aprendera na infância, passava adiante as informações que o neurônio recebera. Perto daquilo, Schindler era uma mosca na sopa. Mas ele não se assustava com isso. Não dizia nada. Apenas observava as ondas de eletricidade estática, brilhantes, que corriam na membrana, na pele do neurônio. Ondas de luz que davam ao cérebro a capacidade de pensar, correndo dos pequenos dendritos para os longos axônios. Mas Adolf continuava curioso e diminiuía. E foi a curiosidade que o levou a mergulhar no fluxo de informações".

Agora, uma amostra de 2001 - Uma odisséia no espaço, em tradução lusitana:

"Através do telescópio, altamente potente, podiam verificar que o asteróide era muito irregular, e rodava lentamente. Ás vezes, parecia-se com uma esfera achatada, e outras, com um tijolo grosseiramente talhado; o seu período de rotação era de pouco mais de dois minutos. Mostrava manchas de luz e sombra distribuídas, aparentemente ao acaso, pela sua superfície, e cintilava frequentemente, qual janela distante, quando planos ou afloramentos de algum material cristalino refulgiam ao sol.

Passava por eles a quase quarenta e cinco quilómetros por segundo; para o observar de perto, dispunham apenas de alguns frenéticos minutos. As máquinas fotográficas automáticas tiraram dezenas de fotografias, os ecos do radar de navegação cuidadosamente gravados para uma futura análise, e o tempo chegou à recta para apenas uma sonda de impacto".

Além dessas boas passagens, o autor de Goiânia demonstra segurança em várias outras áreas. Ele constrói um quadro bem vívido do futuro imaginado, propõe uma nova e interessante maneira de demarcar períodos históricos, avança com sucesso no grau de complexidade da trama - o que começa perigosamete como uma historinha de amor à primeira vista, evolui de modo interessante com o passar do tempo para situações bem mais inustitadas. Todavia, há também muita coisa para melhorar até chegar ao segundo livro da saga Treze milênios.

Tais pontos negativos podem ser divididos entre casos graves e outros nem tanto. O pior deles é a construção do lado emocional dos personagens, mais notadamente do protagonista germânico. O autor evitou criar um herói idealizado demais, sem dúvidas nem autocrítica. Poderia ser algo interessante, mas pesou demais a mão, o resultado foi um sujeito choraminguento que vive mergulhado em autopiedade, perdendo o controle das lágrimas e dos soluços. Isso ocorre com outros personagens, mas chega ao limite do bom senso com Adolf Schindler. Leitores que já reclamam dos excessos de sentimentalismo dos vampiros de Anne Rice, deverão se apavorar com o capitão deslocado do tempo. É algo a ser muito trabalhado por Osíris Reis se ele pretende mesmo manter a atenção do público por mais sete livros.

Um caso menos grave, é o uso da linguagem por parte dos humanos primitivos. O autor demonstra se preocupar com relação ao fato de aquelas pessoas serem tão culturalmente atrasadas = não apenas em contraste com os estrangeiros que nasceram mais de 10 mil anos no futuro, mas também em comparação ao leitor. Porém, o vocabulário dos sujeitos pré-históricos é rico demais para soar de forma realista, como parece ser a preocupação do escritor. Quem leu o capítulo inicial do livro de estréia do inglês Alan Moore, A voz do fogo, faz uma idéia do quanto é complicado tentar emular a fala e os pensamentos de nossos ancestrais. Mas esse é um desafio que não deveria ter sido deixado de lado.

No meio do caminho, há vários outros entraves que tornam a leitura cansativa. Certos recursos adotados fazem o texto soar muito artificial, alguns deles devido à obsessão do autor por não repetir palavras. Isso acaba gerando construções como "irmão de fulano" ou "primo de beltrano" a todo momento para substituir o nome de ciclano. Com o tempo, o efeito é bem mais irritante do que seria simplesmente ler o nome dos personagens repetidamente. No mesmo sentido, seria ótimo se o autor relaxasse em outras questões igualmente formais. Para exemplificar, o uso das mesóclises é constante em todo o texto. Seria radicalismo pedir para que não se use essa construção pronominal por ela soar pernóstica aos brasileiros, mas, pelo menos nos diálogos, poder-se-ia evitá-la sem empobrecer a prosa. Por último, novamente para aumentar a agilidade do texto, uma edição mais criteriosa eliminaria excessos e tornaria o livro bem mais magro. Não seria necessário apelar para a objetividade e secura de um Dalton Trevisan - dito o Vampiro de Curitiba, aliás -, só que, no mínimo, as constantes recapitulações da história deveriam ser podadas. Esse tipo de refresco para a memória do leitor é muito útil quando usado nos folhetins, mas em um romance, ele é mais que dispensável.

Enfim, 13 mil anos, oito livros e sabe-se lá quantos outros projetos paralelos são uma longa odisséia. Há tempo e espaço para se fortalecer os pontos positivos e se solucionar os negativos. Somente ao final dela saberemos se Osíris Reis estava ou não à altura do desafio que ele mesmo se propôs. Também saberemos se a tradição em relação ao vampirismo, essa preferência nacional em termos de literatura fantástica, ganhou de fato um novo representante de peso com a saga de Treze milênios.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

O vampiro de Brasília

Para cumprir o objetivo de se tornar um escritor de literatura fantástica, ele passou em três vestibulares de duas universidades em cidades diferentes, a Goiânia de nascimento e o Distrito Federal onde mora desde o início da década. Não satisfeito em garantir uma ampla formação acadêmica, ele ainda encarou uma batalha para lançar seu livro de estréia no gênero, Treze milênios – Gênese vermelha, uma mistura de vampirismo, ficção histórica e FC: desde longas caminhadas para digitar o texto em um computador emprestado, até uma vaquinha em família para viabilizar a publicação da obra (que é apenas a primeira parte de uma saga que, entre outras mídias, deve contar com nada menos que oito volumes escritos e algumas adaptações audiovisuais). Na entrevista a seguir, este determinado autor fala ainda sobre polêmicas na construção de personagens, opina a respeito do uso de temáticas nacionalistas na produção cultural e ainda dá uma prévia dos próximos projetos. Com vocês, o Vampiro de Brasília, Osíris Reis.

Considerando não apenas o número de livros que devem compor a série, mas também as diversas obras paralelas, Treze milênios é um dos projetos mais ambiciosos em andamento no país tendo a FC como tema. Antes de se lançar nessa saga, de que outros trabalhos em termos de literatura, seja na forma de contos ou de poesia, e de audiovisual você já participou?


Até os dezoito anos, apesar de apreciar loucamente a ficção fantástica, produzir algo nesse assunto não combinava com minha religiosidade (leia-se, a minha maneira de praticar a religião, e não o grupo religioso do qual eu fazia parte).

Apesar de não me permitir escrever ficção científica e terror, eu me permitia (e como!) imaginá-las, cena por cena, como se eu assistisse a um filme particular. Era a maneira de eu, menino, e depois adolescente, assistir filmes e TV quando não me era permitido.

Treze Milênios foi a história que mais me cativou de todas as que imaginei. Imaginei-a no final do ensino médio e comecei a escrevê-la no início do curso de medicina, ao sentir que, à medida em que estudava anatomia, eu perdia o "jeito" de criar tais histórias.

Em outras palavras, minha carreira literária praticamente iniciou-se com a saga. Antes disso, tenho poemas e canções escritas para a igreja da qual eu fazia parte, mas não me apetecem mais. Depois que comecei a escrever a saga, tendencialmente não faço nada fora dela. Exceções a essa regra são os trabalhos de faculdade, ou pedidos dos amigos mais próximos. Só recentemente é que venho tentando, dentro de minhas limitações de tempo, fazer outros trabalhos por conta própria.

Na faculdade, como era de se esperar, os projetos são principalmente audiovisuais. Há alguns contos escritos para uma ou outra disciplina, vários deles com temática fantástica (a qual, em princípio não é a menina dos olhos dos professores). Há um roteiro muito legal e simples, do início do curso e outro da metade do curso (muito elogiado por vários professores, mas também um tanto polêmico). Participei de peças de rádio (apresentação de programas piloto e radionovelas), da sonorização de Nosfê (sim, um curta sobre um vampiro), e também do documentário São Severino, sobre Severino Cavalcante, ex-presidente da Câmara dos Deputados. Fiz uma pequena narração em A vingança da bibliotecária (terror), participei das animações do piloto do programa infantil Zonzo (vinhetas em que uma avezinha voava ao redor do planeta, passeava entre zebras, girafas e leõs etc.) e da produção do curta-metragem Do andar de baixo. Há ainda outros documentários dos quais participei, principalmente narrando. Há também cerca de cinco pilotos de programas de TV, que participei produzindo, filmando e dirigindo.

O trabalho para o qual mais me dedico atualmente é um programa na TV Comunitária de Brasília, uma revista eletrônica para idosos. Divido com Fernando Ladeira (que me deu uma senhora mão na revisão do primeiro livro) a redação, a câmera, a sonorização, a edição e os efeitos especiais.

Há também poemas e canções, mas nenhum deles publicados.

E claro, há as coletâneas de conto que estou, devagarinho, participando. O primeiro é o conto "Bandeiras", publicado na edição 16 da Scarium [fanzine de FC]. E tem outros aí no forno.

Nos agradecimentos de Gênese vermelha, você dá algumas pistas sobre os bastidores do livro, desde a ajuda de alguém para lhe emprestar o computador no qual o texto foi escrito, até a participação dos familiares que contribuíram para viabilizar a edição propriamente dita. Pode dar mais detalhes sobre como foi a batalha para estrear no ramo literário com um romance? Há quanto tento cultiva a idéia básica de Treze milênios?

A história dos oito livros foi bolada em 1997, enquanto eu concluía o ensino médio, com 17 anos. Ao terminar o segundo grau, minha intenção era trabalhar com Ficção Científica, mas sem sair de Goiânia. Como não havia qualquer "faculdade de FC", fui aconselhado a fazer um curso que me desse uma boa base científica, pra escrever depois, no tempo livre. Daí a medicina.

Obviamente isso não funcionou. Qual estudante de medicina tem tempo livre pra escrever? Quando se é médico de carreira consolidada, a coisa pode ser mais fácil, mas também não será muito mais simples do que quando se estuda medicina. Complicado, pelo menos. Isso me frustrou a ponto de abandonar o curso. Pra minha mãe, separada e nos sustentando com pouco mais de um salário mínimo, ver o filho abandonar medicina não foi nada tranqüilo, principalmente pelos problemas de saúde que ela estava enfrentando.

Como as finanças estavam complicadas, eu mesmo não estava legal e tinha me inscrito para o vestibular de engenharia mecatrônica (que, conforme eu imaginava, me aproximaria da FC), deixei de trabalhar e fui passar uns meses na casa dos meus avós, estudando para o vestibular. Nesses três meses, comecei a digitar, timidamente, o material que eu tinha manuscrito. Fiz o vestibular e voltei a Goiânia, para aguardar o resultado e ficar com minha mãe. Eu tinha uma perspectiva bem complicada caso não fosse aprovado: ficar sem estudar, só trabalhando. Por isso, usei boa parte desse tempo para terminar o primeiro livro. E como não tinha computador, pedi a um amigo da igreja (o Luciovan a quem agradeço no livro) para emprestar-me o computador que ele acabara de comprar. E tenho que dizer que o cara teve uma paciência de Jó, porque eu invadia o quarto dele horas e madrugadas a fio, digitando e revisando a primeira versão do livro. A parte "batalha" da história é que eu não tinha dinheiro de ônibus pra chegar na casa dele. Caminhava um bocado pra isso.

O livro foi terminado às pressas, mas mesmo assim o enviei, como rascunho, para algumas editoras. Como é de praxe, não houve qualquer resposta positiva. Fui aprovado para mecatrônica, mudei-me para Brasília e, com a opinião de alguns novos amigos do curso, comecei a revisar o trabalho. Cheguei a fazer uma revisão completa assim, apesar das horas estudando cálculo. Entretanto, as coisas só caminharam mesmo quando conheci o Fernando, jornalista, com quem hoje faço o programa na TV Comunitária. Ele me ajudou a fazer mais três revisões do trabalho. Mandei o livro para mais editoras, e novamente não houve resultados.

Enquanto fazia mecatrônica tomei conhecimento do curso de Comunicação Social, fiz um terceiro vestibular e acabei "grudando" no Audiovisual. Isso me permitiu vislumbrar melhor como a indústria cultural funciona, e como um livro longo, primeiro de uma série, de um brasileiro estreante, de FC e terror e, ainda por cima, pouquíssimo comportado, seria complicado para os editores brasileiros. Assim, publiquei-o primeiro pela Vivali, em formato eletrônico. Depois conheci a Corifeu, com a publicação sob demanda, bem mais barata do que as outras opções, mas ainda um tanto fora das minhas possibilidades. Meio relutante, procurei os parentes, pedi um pouco pra cada e, felizmente, eles puderam me ajudar.

Resistir à polêmica é fútil, portanto vamos logo a ela. Seu protagonista é descendente de alemães, branco, extremamente ético, preocupado com todas as formas e vida, heterossexual convicto. O antagonista é o oposto: mulato, totalmente amoral, genocida, bissexual. Quais foram suas intenções quando escalou personagens com tais características para desempenhar esses papéis tão distintos?

Quem me conhece sabe que os dois são igualmente parte de mim, diferentes faces da minha vida cotidiana e da minha história. O motivo pra que Eurass tenha sido mulato é que eu gostaria que um personagem parecido fisicamente comigo criasse a viagem no tempo. Devido a alguns traços da personalidade que imaginei para ele enquanto desenvolvedor de duas tecnologias tão à frente de seu tempo, a reação que ele teve à sede de sangue foi absolutamente aberta: assumir o monstro dentro de si. Além disso, com um vampiro mulato na Pré-escrítica, decidi aproveitar o mito do meu nome, só que transformando o Osíris, de uma divindade benevolente, numa malévola.

Já Adolf começa como o protótipo do bom moço, inclusive fisicamente. Minha intenção era, no decorrer dos oito livros, desconstruir esse "bom mocismo" do Adolf. E até pelas reações do livro, acho que dá pra dizer que tive sucesso, mesmo que "pesando a mão" "um pouco".

Eurass é programador de computadores, é lógico, é "capitalista". É o criador. Adolf é médico, psiquiatra, é caridoso. É o que conserta. Tanto o programador quanto o médico fazem parte do meu dia-a-dia (não, não pratico medicina). Acho que isso, por si só, já explica muito do comportamento de ambos. Suas etnias são em parte explicadas pela minha identificação enquanto criador da saga. E Eurass ser mulato como eu também é uma maneira de dizer que, como todas as pessoas, tenho meu lado monstro (que por vários motivos, decidi não exercer).

Finalmente, as etnias dessas personagens também se relacionam a pessoas de minha infância, muito íntimas. Uma, negra, vivia uma liberdade com um pé na libertinagem. A outra, branca, ensinou-me um autocontrole que às vezes beira a obsessividade. Obviamente, essa relação é apenas uma coincidência na minha vida. Aliás, conheci muitas pessoas, muito queridas, negras, que definitivamente não abusam da própria liberdade. E pessoas brancas cujo autocontrole não é o ponto forte. Assim, acredito que as etnias de Adolf e Eurass são uma referência de meu inconsciente às duas pessoas específicas que cito no começo deste parágrafo, e não às etnias negra / parda e branca. Vide as etnias das demais personagens do livro e seus comportamentos.

Escrevendo isso lembrei-me de uma personagem do livro que pertence às duas etnias ao mesmo tempo: Cosmo, do Prólogo e do Epílogo. Ele apareceu pouco nesse livro, mas aparecerá nos próximos, com sua história sendo contada paulatinamente. Porém, já foi possível perceber que ele alterna cor de pele, cabelos, cor de olhos e estrutura craniana. Há um padrão nessas mudanças de etnia, que só ficará mais claro nos próximos livros. Um padrão que considero relevante para essa questão.

Vale dizer que, das características citadas acerca dos dois, a orientação sexual não é, em absoluto, algo que eu desejasse criticar. No começo do livro, Eurass se mostra um tanto quanto machista e homofóbico. E certamente, pelo que se pode ler nas reações de Adolf, para ele, ser "heterossexual convicto" não é virtude nem defeito. Creio que a diferença entre os dois no que tange à sexualidade seja a seguinte: um permitiu-se viciar em sexo a ponto de não medir quem é machucado no processo, e o outro preocupa-se em conhecer a própria sexualidade (independente de ela ser hetero, bi ou homossexual) e vivenciá-la de maneira equilibrada.

Sua formação é bastante singular, como você já enfatizou: estudou medicina e mecatrônica e agora faz uma faculdade ligada aos meios audiviosuais. Fora isso, já participou de cursos ou de oficinas literárias, por exemplo? No livro, você aborda muitas questões de fundo filosófico e histórico, essas áreas do conhecimento também fazem parte do seu currículo formal ou você é um autodidata nelas?

Os cursos e oficinas literárias dos quais participei foram todos da formação de um estudante normal. Ou seja, antes de escrever o Gênese vermelha, as únicas oficinas de redação das quais participei foram as do Ensino Fundamental e Médio. Claro, no curso de Audiovisual participei de disciplinas voltadas à escrita, mas isso foi depois da última revisão do livro.

O que apresento de filosofia e história no livro apreendi no Ensino Médio. Para ser mais preciso, o pouco de filosofia que se dava diluído em outras disciplinas do Segundo Grau dos anos 90 foi o que serviu de base para que eu deduzisse a imensa parte das considerações filosóficas citadas no primeiro livro. Obviamente, após o ingresso no Ensino Superior (mais precisamente a Comunicação Social, com mais espaço para filosofia, antropologia e sociologia - não me recordo de ter usado no livro nada de filosófico que eu tenha aprendido na faculdade de medicina) fui identificando vários conceitos que eu tinha usado intuitivamente (ou deduzido) no livro.

Ainda na área curricular: o quanto essa já comentada formação contribui para a parte técnica, hard, de sua produção como escritor de FC? Além dela, como você se prepara para a pesquisa dos vários tópicos abordados na trama da série? Consulta livros ou sites especializados, tira dúvidas com pessoas da área?

Essa formação me ajudou a dar nomes mais precisos para o que eu descrevi na obra. Fora a citação da hemoglobina enquanto uma molécula estrelada com um átomo de ferro no centro (na verdade o grupo Heme da hemoglobina, que para facilitar a compreensão do leitor chamo genericamente de hemoglobina), todas as informações científicas citadas na obra foram apreendidas por mim ainda no Ensino Médio, sem pesquisa consciente do assunto.

Desde pequenininho curto muito ciências, e imagino cada detalhe atômico e celular com muita clareza, em cada momento do meu dia-a-dia. Ou seja, olhando para uma lâmpada em funcionamento, tendo a visualizar os elétrons sendo puxados, como grãos de ferro por um ímã, alternando o sentido desse "puxar", num movimento tão rápido que o filamento que conduz esses elétrons se aquece a altíssimas temperaturas. Mas não queima, nem reage com nada, devido à não reatividade do gás nobre que envolve essa molazinha de metal.

Também é uma característica minha preferir entender um conteúdo do ponto de vista do cientista que primeiro o enunciou. Isso era, por vezes, uma chateação para os professores, mas sempre foi fonte de prazer pra mim. Sentia que isso me dava liberdade de compreender pelo menos a maior parte dos motivos de tal conhecimento e das implicações do mesmo, bem como juntá-lo a outros. Como se cada novo conhecimento fosse uma peça de montar, e eu sempre gostasse de olhar a peça por todos os ângulos, para explorar suas possibilidades.

Dessa forma, eu acabei escrevendo, no livro, coisas que eu não conhecia mas que já eram estudadas. A teoria das supercordas é o maior exemplo disso. Obviamente, durante a revisão do livro, eu já com maior bagagem científica e cultural, pude renomear alguns dos termos que eu tinha criado por outros que eu tinha aprendido, mas as idéias permaneceram as mesmas. Outros, no entanto, deixei que permanecessem como estavam, até pela perda de conhecimento ocorrida na Informática Medieval do universo que criei.

Assim, para o primeiro livro, não creio que houve uma preparação específica. Entretanto, como os próximos livros se passarão em momentos históricos dos quais já temos mais registros, a pesquisa já está em andamento. Inclui, por enquanto, internet, documentários, filmes, conversas com amigos do curso de história. E certamente incluirá livros especializados, assim que a agenda desafogar um tiquinho.

Quais são suas principais influências no gênero fantástico, no cinema ou na literatura? Que autores você admira tanto na área de FC quanto na de terror, sejam eles nacionais ou estrangeiros

Definitivamente não leio tanto quanto gostaria. Uma autora que admiro é Clarice Lispector, apesar de ainda ter lido, dela, apenas A hora da estrela. Entretanto, o impacto dessa obra em mim é tamanho que considero que essa seja a minha maior influência. Mesmo que ela não tenha trabalhado FC, fiquei absolutamente cativo do fluxo de consciência que ela tanto explora em seu texto.

Leituras muito interessantes foram Anne Rice (O Vampiro Lestat), e Asimov (Os robôs do amanhecer). Estou seco pra ler Bram Stoker, Mary Shelley, e Verne. Mas tenho que confessar que isso só acontecerá à medida que der conta dos textos da faculdade, que estão atrasados.

Com meu recente ingresso no Fandom [a comunidade de fãs de FC], alguns livros brasileiros muito interessantes chegaram às minhas mãos. Tiro o chapéu para A mão que cria e para Necrópole - contos de vampiros. Embora ainda tenha muita coisa muito bem comentada na internet, que quero realmente quero ler.

Quase me esqueci. Cinema: as séries Alien, Matrix, O senhor dos anéis, Star trek e Planeta dos macacos. Os filmes O quinto elemento, Eu, robô, Enigma do Horizonte, Pacto com lobos, Do Inferno, Energia Pura. E a lista se estende.

Você faz parte de um manifesto chamado Antibrasilite que pretende explicitar a liberdade dos autores para que eles façam seus trabalhos independentemente de usar ou não temáticas nacionais. Mesmo assim, vale lembrar, há no livro uma personagem indígena, de origem aparentemente brasileira. Qual seu engajamento com os ideais do manifesto? Como você sente essa pressão que se faz a escritores para que atenham sempre a questões internas, preferencialmente de cunho social?

Posso começar respondendo com o que considero uma máxima: criar tem que ser um ato livre, o mais livre possível. Livre de amarras norte-americanizadas, mas também de amarras nacionalistas. Sim, Mani é uma índia de descendência brasileira, mas não considero que foi por Brasilitite que a incluí na história. Não foi o sentimento de obrigação ante a identidade nacional que me levou a isso, e certamente não foi meu editor (na época em que a história nasceu eu nem entendia direito o que ele faz) que me pediu uma história engajada com o Brasil. O sentimento que me levou a inclui-la na história foi imaginar (e desejar) que as nações indígenas sobreviveriam por milênios e formariam uma cultura belíssima ao conciliar suas tradições com a ciência e tecnologia do futuro. Posso até dizer que foi a vontade de que eles sobrevivam culturalmente mesmo quando o conceito de Brasil não mais fizer sentido.

O movimento começou como uma pequena reunião na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, de maneira bem informal. Logo me interessei, sugeri o termo "Antibrasilitite" e escrevi o manifesto, para que fosse votado pelo grupo. Por isso, fica fácil perceber porque meu engajamento com os ideais do manifesto é questão de essência, um imperativo interno, realmente. Creio que nunca engoli muito bem o etnocentrismo, a idéia de que a cultura em que crescemos é melhor ou deva ser mais valorizada que as outras. Não curto o nacionalismo em si, na verdade esse sentimento até me irrita um pouco. Creio que devemos nos preocupar, sim, com o povo do Brasil, e protegê-los de outras nações que porventura o agridam física, política ou econômico-financeiramente. Mas realmente não vejo muita razão de ser, me sinto meio enganado quando penso nos elementos que forjam a nossa nacionalidade ou a de outros povos. Gosto de jogos olímpicos quando o pessoal se respeita e se admira. Torço o nariz quando dizem que "o Brasil agora é o melhor do mundo em tal modalidade".

Meu conto "Bandeiras", na Scarium 16, traduz bem o que sinto sobre isso. Acho que enxergo culturas de nações estrangeiras como alguns brasileiros menos etnocêntricos costumam olhar a cultura de outros estados brasileiros, com grande respeito, admiração, e amplo espaço para troca. Creio que, no fim, somos todos humanos, todos seres inteligentes. Vale a pena, sim, manter nossas culturas. Mas o ideal da Democracia Intergaláctica de Treze Milênios, mesmo que politicamente utópico, é o ambiente de respeito e pluralidade cultural no qual eu me sentiria confortável.

Como digo no site do manifesto, acredito que a Brasilitite (a exacerbação do nacionalismo cultural brasileiro) teve sua importância, mas que, hoje, ela sufoca. O público, em grande parte, vive a Síndrome do Capitão Barbosa (o contrário da Brasilitite, ou seja, a proibição mental de tratar do Brasil nas obras de FC, Terror e Fantasia). A crítica e o mercado editorial vivem, em grande parte, a Brasilitite. Fica no mínimo complicado para o autor, não é?

Repito que o ato criativo deve ser o mais livre possível. Qualquer obrigatoriedade temática alija o autor de veios narrativos que poderiam enriquecer a história com o que há de mais genuíno dele.

No site http://www.trezemilenios.xpg.com.br/ você comenta que está participando da criação de uma associação nacional para escritores de ficção fantástica. Em que estágio se encontra tal projeto, quais são seus objetivos e como tem sido a recepção de outros autores à idéia?

Esse projeto está no aguardo. Minha intenção era de apenas dar o pontapé inicial para começar a associação, rascunhando um objetivo para a mesma, um site etc.. De lá para cá, entretanto, o projeto final do meu curso (um média-metragem baseado no Gênese vermelha) começou a tomar mais de meu tempo, assim como o programa na TV Comunitária. Mesmo assim, os autores de Ficção Fantástica no Brasil estão sempre em movimento, e acho que estamos vivendo um formidável momento.

Já que estamos falando de engajamento na área da ficção fantástica: como você analisa o estágio atual da FC, da fantasia e do terror no Brasil? Em sua opinião, o que poderia ser feito para tornar esses gêneros literários mais populares no país?

A geração dos anos 80, que cresceu jogando video-game e assistindo a He-Man, Superamigos, animes, Sexta-Feira 13 etc., é adulta hoje. E muito mais aberta a fruir e produzir ficção fantástica. Aos poucos, vejo isso chegar ao mundo acadêmico, não tão aos poucos assim a tecnologia se populariza e permite que façamos, aqui no Brasil, livros, vídeos, músicas com recursos técnicos respeitáveis e custo mínimo. Acho promissor esse momento. Acho meio improvável que a Ficção Fantástica não assuma um espaço na literatura brasileira, mesmo que isso demore mais uma década ou duas.

O que precisa ser feito já está acontecendo, naturalmente. Mas com certeza o Estado pode acelerar o processo, com os investimentos certos, no público certo, nos momentos certos. Num primeiro momento escrevemos FC, publicamos FC. Num segundo momento, crítica e academia voltam seus olhos para esse fenômeno. Num terceiro, bem posterior, a literatura fantástica brasileira ganha respeito na mídia e no mercado. Finalmente, as novas gerações habituam-se à ficção fantástica brasileira desde cedo, da mesma forma como tem acesso a animes, mangás e livros estrangeiros.

Vale citar que cada um desses momentos exige e promove o refinamento e o aumento da qualidade da Ficção Fantástica Brasileira.

Por fim: como está o desenvolvimento dos próximos passos da saga Treze milênios? Já há datas para novos lançamentos? Além desse projeto, que outros trabalhos ligados à ficção você deve produzir no futuro próximo?

O próximo passo de Treze milênios é a produção de um média-metragem, que é o meu projeto final para o segundo semestre de 2008. Há também a formulação de um sistema e de um livro de RPG, ambientado entre o primeiro e o segundo livros da saga. Posso adiantar que o sistema está bem interessante, mas ainda há um bocado a ser ajustado.

Após o filme, virá, é claro, o segundo livro da saga. Nesse ponto, pretendo dar uma folga na Faculdade (vou estar formado) e dedicar-me mais sistematicamente à escrita da saga.

Para agora, há minha participação no projeto 22 (http://www.ericnovello.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=457&Itemid=1 ), uma coletânea de contos de FC, Terror e Fantasia. E pretendo participar de outras antologias, com maior freqüência.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Estranhos em terras estranhas

Brasileiro elogiado por argentinos é tão raro que vale a pena reproduzir a opinião manifestada no site www.axxon.com.ar, referência latino-americana sobre literatura fantástica: "Carlos Orsi Martinho es periodista y, probablemente, el mayor autor del género de terror en lengua portuguesa". O comentário se deu porque um conto daquele autor foi publicado lá, "Ya no" (tradução de "Não mais") que flerta com a possibilidade de o Brasil continuar a ser uma monarquia por influência de uma substância misteriosa. O reconhecimento do personagem em questão não veio só da parte de nossos vizinhos do Sul. Nos EUA, também já apostaram no talento dele, quando o selecionaram para participar de Rehearsals for oblivion (algo como ensaios para o esquecimento), coletânea em tributo a Robert W. Chambers. Pouco conhecido no Brasil, mas considerado forte influência de H.P. Lovecraft, o americano serviu de inspiração para os participantes do livro, todos eles dos EUA ou da Inglaterra, sendo o brasileiro o único do projeto a não ter o inglês como primeiro idioma. Ele, que já podia ser considerado sucesso de crítica entre argentinos, agradou também ao público americano. Seu conto "The machine in yellow" - referência a "The king in yellow", peça teatral fictícia sempre citada nos contos de Chambers e fonte da idéia original para o igualmente fictício Necronomicon lovecraftiano -, ambientado durante a última ditadura brasileira, é o mais bem cotado entre os comentários publicados por leitores no site www.amazon.com

Sim, Carlos Orsi Martinho - ou, simplemente, Carlos Orsi, como prefere assinar os textos ficcionais - é jornalista especializado em divulgação científica, nasceu em Jundiaí, interior de São Paulo, e pode ser considerado um dos grandes escritores de nossa língua de histórias de terror. Mas não só isso, ele é também um dos maiores autores de sua geração quando o assunto é a prima-irmã do gênero: a ficção científica. Orsi estreou profissionalmente como ficcionista aos 21 anos com o conto "Aprendizado" lançado em uma das últimas edições da Isaac Asimov Magazine, publicação que a editora Record trouxe ao Brasil bem no início da década de 1990. Desde então, faz 15 anos que aproveita as chances que lhe aparecem ou que ele mesmo cria. Já publicou contos e novelas de FC e horror em praticamente todos os espaços disponíveis no país, desde fanzines como o tradicional Scarium, até a seção de ficção da revista Pesquisa Fapesp, passando pelas coletâneas de diversos autores lançadas pela antiga editora Ano-Luz - da qual ele foi um dos sócios -, como Phantastica brasiliana (onde saiu originalmente "Não mais") e Intempol. Há ainda os livros solo Medo, mistério e morte, impresso pela Didtática Paulista, em 1996, e O mal de um homem, da já citada Ano-Luz, publicado quatro anos depois.

Porém, o melhor ponto de partida talvez seja uma outra obra com material mais atualizado do jundiaiense. Tempos de fúria - Contos de aventura e terror é o nome do livro publicado em 2005 com o selo da coleção Novos talentos da literatura brasileira na qual escritores dividem despesas com a editora Novo Século. Os seis contos da coletânea são uma boa amostra de um autor que amadureceu em estilo e em influências, deixando um pouco de lado a presença quase sufocante exercida por Lovecraft nos seus primeiros textos, a exemplo, de entre outros, "Sob o signo de Xoth" (presente no livro Outras copas, outros mundos). Neste seu trabalho mais recente, o escritor explorou novas fronteiras como fica claro já pelos autores mencionados na página de agradecimentos; uma eclética lista formada por gente do nível do brasileiro Monteiro Lobato, do argentino Jorge Luis Borges e do americano Robert E. Howard. Não apenas as influências variam, também são variados elementos misturados nas 160 páginas de Tempos de fúria.

Os textos que abrem e fecham o livro, "Estes 15 minutos", com 13 páginas, e "A aventura da criança perdida", com 11, são os mais curtos e exemplificam tal diversidade. O primeiro está mais para o realismo fantástico, com a história de um traficante pé-de-chinelo no Rio de Janeiro. Em uma viagem, entre os místicos do Nepal, o personagem conhecido como magro fez uma descoberta capaz de mudar sua carreira. Ele ficou sabendo que a realidade como a conhecemos não é o fluxo linear de acontecimentos que aparenta - a cada 15 minutos, um universo novo ocupa o lugar do antigo, são pequenos flashes que dão a ilusão de continuidade num eterno liga e desliga. Uma anologia possível, é Festim diabólico, filme clássico de Alfred Hitchcock. No longa do diretor inglês, somos convencidos de que a trama foi rodada em tempo real, um plano sequência com a duração do filme. Na verdade, por questões técnicas, houve a necessidade de se filmar cenas de, no máximo, 15 ou 20 minutos. Foi na montagem que ocorreu a mágica capaz de nos enganar. Votando ao conto: magro conseguiu um truque para burlar a montagem que algum diretor invisível executa em nosso universo e faz planos para tentar levar vantagem com isso. No final, descobrimos a utilidade que pode haver em uma balinha de hortelã. O único problema do conto é que o autor não se decidiu se deveria escrever o número 15 por extenso ou se deveria usar algarismos.

Trecho: "O mundo, cara, é cheio de remendos. Quando ainda existia vitrola, o que a gente chamava de 'pulos da agulha'. Emendas malfeitas entre os pedaços de 15 minutos. Costuras ruins. Merda, tá entendendo? Como diziam os romanos, Xíti rápens".

Já o outro curta-metragem de Orsi, o que encerra o livro, tem ainda mais ingredientes. "A aventura da criança perdida" mistura elementos de space opera - aquele subgênero com cenários interplanetários cujas principais referências são Guerra nas estrelas e Jornada nas estrelas -, FC hard - no qual escritores buscam trabalhar conceitos das ciências exatas sendo o mais precisos possíveis - e histórias de detetive à Sherlock Holmes. Na ambientação criada pelo paulista, teremos um futuro em que agências de segurança oficais são formadas por grupos nada recomendáveis, tais como mafiosos italianos e guerreiros islâmicos, competindo por contratos com todo tipo de jogo sujo. Outro aspecto bizarro deste mundo é a mutação que ocorre no nome das pessoas: Ângyla e Edowardo são exemplos, sendo que este último se trata da criança do título. O local do desaparecimento é uma interessante especulação do autor, uma plataforma espacial que serve para o atraque e o lançamento de naves. O encarregado para resolver o impasse criado com o sumiço do pequeno Edowardo é o narrador Fersen Quartelmar, que para resolver o caso não precisa nem abandonar seu escritório, um asteróide com meio quilômetro de comprimento. Bastam algum conhecimento de física e malandragem para se virar com o jogo de interesses que chama a atenção de gente perigosa.

Trecho: "O seqüestro e, mais do que ele, a concorrência aberta entre as empreiteiras havia colocado todo o sistema Terra-Lua e respectivas estruturas orbitais em polvorosa. Não havia criminoso ou vagabundo livre que não tivesse o braço ou outro apêndice torcido, quebrado ou chutado; puta que não fosse subornada ou drogada; preso que não fosse interrogado sob rede neural ou mesmo torturado. Como o moleque não reaparecia, ficou claro que nada disso estava dando resultado".

Voltando à seqüência original dos contos, já que todos os outros se encaixam na categoria média-metragem - ou seja, textos que apresentam por volta de 30 páginas -, temos um dos pontos altos de Tempos de fúria: "Questão de sobrevivência". Seus estranhos personagens e cenário lembram um tanto as melhores obras do movimento cyberpunk, como Piratas de dados, de Bruce Sterling. A diferença é que, na criação do brasileiro, o alvo da pirataria é algo mais tangível que bytes. No elaborado pano de fundo da história, vemos São Paulo em um futuro tão apocalíptico quanto verossímil. Na capital, acompanhamos as reflexões morais de Zé Mateus, um dos líderes do Campo Fidel, dito o maior acampamento urbano do Ocidente e que ocupa a maior parte do centro histórico da cidade. Em outro ponto do Estado, a ação é comandada por Pedro Minanhanga (Diabo-feito-Homem, segundo o autor), empenhado em capturar uma preciosa carga. Ele e seus companheiros agem no meio de uma favela transformada em área contaminada após um bombardeio, autorizado pelo governo. O resultado foi o surgimento de um local tão inóspito em que basta se respirar o ar sem proteção para encurtar drasticamente a perspectiva de vida. Para piorar a situação das pessoas que tentam viver no local, outra intervenção pública - a distribuição de anticoncepcionais na água - só serviu para impedir que mães pudessem amamentar diretamente seus filhos. Leite materno, agora, apenas o processado industrialmente, como o daquele carregamento que atravessa o estado em um caminhão para embarcar no Porto de Santos e ser exportado como mercadoria de luxo.

Com a narrativa dividida entre os pontos de vista dos dois protagonistas, o líder sem-teto com dilemas de consciência e o pragmático agente de campo, o conto segue estruturado em persongens bem construídos vivendo um contexto igualmente bem delineado. Carlos Orsi conseguiu dar uma consistência ao conto que outros autores seriam incapazes de obter em um romance. Aos poucos, os leitores recebem informações históricas daquela realidade, como o fato de ter havido uma guerra nos morros cariocas em 2011; terem ocorrido grandes saques aos supermercados sete anos depois; culminando com um período de repressão marcado pela chuva bioquímica naquela favela, no início da década seguinte. Detalhes das motivações e do grau de comprometimento de cada jogador também vão clareando lentamente até os atos finais. É interessante notar que o autor, apesar de andar no fio da navalha o tempo inteiro, com uma história que poderia cair para o maniqueísmo rasteiro, consegue se livrar das tentações e manter a trama em um grau de complexidade exemplar.

Trecho: "A autoria do epíteto 'Vale da Norte' era incerta - se de inspetores de Direitos Humanos da ONU que tinham visitado o local após os bombardeios, ou se de um locutor de telejornal - mas a expressão pegou. E o conjunto de ruínas, árvores retorcidas e solo venenoso, calcinado, deixou, de uma vez por todas, de ser o 'jardim' que jamais havia sido".

Se "Questão de sobrevivência" é mesmo um dos cumes do livro, "Desígnios da noite" está mais para um vale. O conto tem muitas qualidades, sempre naquele binômio de bons e exóticos personagens e cenários. Em um período de nosso futuro, quando começam experiências de colonização no espaço, o cotidiano na Terra está bastante modificado. Para se resolver pendências jurídicas, as pessoas passaram a dispensar advogados para confiar sua honra a duelistas profissionais, agentes que se enfrentam em pelejas que podem terminar em nocaute ou com a morte de um dos contendores. É o caso do narrador do conto, veterano de duelos e ex-combatente de tropas de elite, conhecido como Marco e que tem uma questão pessoal a resolver. De positivo ainda, há inovações tecnológicas propostas, como tatuagens utilitárias; a apropriação inteligente que o autor faz de uma pseudociência, no caso, astrologia zodiacal; e, claro, o estilo do texto - para quem decora manuais, no quais sempre se condena o uso dos adjetivos, talvez seja um choque a passagem na página 115 na qual são empilhados nove deles para descrever um relacionamento. De fato, são muitos pontos positivos, tantos que, talvez, o problema seja esse mesmo. Mesmo sendo o maior texto do livro, com 34 páginas, o espaço é pouco para tamanha fartura de informações, cenas de ação e de investigação. Caso fosse um plot de uma série, "Desígnios da noite" seria excelente. Como história única e fechada, peca pelo excesso.

Trecho: "Servotatuagens são o tipo de coisa que se espera encontrar em duelistas, atores, acrobatas - e bandidos comuns. Cada pigmento abriga um conjunto de circuitos e nanóides programado para ampliar determinadas perícias físicas, acelerar a transmissão de impulsos nervosos, induzir reflexos".

Os dois outros contos de Tempos de fúria formam o que poderia ser chamado de as crônicas venusianas de Carlos Orsi. O primeiro deles, "Pressão fatal" retoma a mistura de space opera, FC hard e história de detetive, mas com ainda mais eficiência que em "A aventura da criança perdida". Uma morte suspeita ocorre em uma estação espacial em órbita de Vênus, responsável por parte do projeto de terraformização do planeta. A expressão costuma ser mais aplicada a especulações sobre Marte, nosso outro vizinho no Sistema Solar, significando o conjunto de ações necessárias para tornar um ambiente extraterrestre compatível com a vida humana. Curiosamente, quase todos os tripulantes da Eros-III têm nomes franceses - a exceção é o médico chamado Mendes, cuja personalidade irascível lembra a de seu colega McCoy de Jornada nas estrelas. Para investigar a morte, ou o assassinato?, é convocado o inspetor-gendarme Henri Bernardin, um tipo que, pelo sotaque, trejeitos e cuidados com o bigode, lembra muito o detetive mais famoso do staff de Agatha Christie, Hercule Poirot. Exatamente como ocorre com Fersen Quartelmar - que, aliás, se formos compará-lo também aos personagens da Dama do Crime inglesa, estaria mais para o estilo de investigação de Miss Marple -, Bernardin tem nos conhecimentos científicos sua maior vantagem.

Trecho: "A atmosfera do planeta era um turbilhonar constante de cores mutáveis, um entrechoque de nuvens e matizes, salamandras azuis devorando javalis esverdeados que pisoteavam dinossauros vermelhos que comiam salamandras azuis, um caos vagamente harmônico de brilho e textura causado pela combinação do clima feroz do planeta com os dispositivos automáticos de terraformização - sondas, robôs e nanóides - com que a Eros-III bombardeava a superfície venusiana".

Para encerrar, o segundo conto ambientado em Vênus e, para dizer o mínimo, um dos melhores textos de FC já criados por brasileiros. "Planeta dos mortos" começa no clima de um dos grandes clássicos do gênero, Tropas estelares, do americano Robert Heinlein, uma vez que o personagem que narra a trama é um soldado, cujo nome desconhecemos, lotado no segundo Batalhão de Batedores de Florestas, Esquadrão de Caça, equipado para enfrentar qualquer ameaça. A terraformização, iniciada no conto anterior, está completa. O planeta conta com dois continentes, Afrodite e Ishtar, separados pelo Mar de Níobe, e com pelo menos um conjunto de ilhas, o Arquipélago de Têmis. Para ajudar na tarefa, o autor concebeu um mundo em que ocorreu uma formidável descoberta, ou melhor, redescoberta. Carlos Orsi faz novamente uso de um recurso pseudocientífico aqui, no caso, as teorias do psiquiatra Wilhelm Reich sobre o orgônio. Na reinterpretação do brasileiro, os polêmicos estudos do austríaco foram reabilitados no início do século XXII como parte de um novo campo de estudos: a neoquântica. Descobriu-se que existem partículas - bíons - que formam a energia que torna a vida possível. Elas fazem a diferença, "o salto quântico", entre algo apenas orgânico e o que é de fato vivo.

Este é por si mesmo um dos melhores conceitos já trabalhados na ficção científica nacional, tanto que já foi utilizado por outro autor em seu romance de estréia: A mão que cria de Octávio Aragão - não por coincidência, é ele quem assina a apresentação de Tempos de fúria. Orsi vai além, explorando a idéia até as últimas conseqüências, dando uma explicação que soa plausível para um dos maiores fetiches dos filmes B de terror. No meio das divagações dos personagens, há espaço na trama para muitas e ótimas cenas de ação, as quais o autor parece dever a um daqueles escritores citados nos agradecimentos. Afinal, quantas vezes Robert E. Howard fez seus personagens se perguntarem - o cimério Conan à frente - como matar algo que já está morto? A prosa do jundiaiense está em grande forma neste conto, principalmente nas linhas finais. Entre suas qualidades, podemos dizer que Carlos Orsi é um mestre no desfecho das histórias, mas em "Planeta dos mortos" ele se esmerou. O final é lírico. Atroz, mas lírico.

Trecho: "Torsos. Tiros! Cabeças. Tiros! Membros. Não pessoas, mas partes - movendo-se (ou seria a luz?). Bocas sangrentas. Olhos sangrentos. Tiros! Unhas. Órbitas vazias.

Tiros!

Escuridão".

Da leitura da meia dúzia de textos que formam Tempos de fúria - Contos de aventura e terror ficamos com uma impressão inusitada. Afinal não é sempre que encontra um escritor de gênero capaz de trabalhar tão no limite quanto este. Há algo de iconoclasta em todas as histórias, um distanciamento de autocrítica em cada uma delas. Porém, ele não cai nunca nas armadilhas mais fáceis, nas paródias, na carnavalização dos temas. Há desconstrução, mas ao mesmo tempo há também uma disciplina por trás disso tudo, de quem sabe valorizar as particularidades da ficção científica, do terror, do mistério... Isso é raro. As aventuras vividas pelo traficante magro, pelo detetive Fersen Quartelmar, pelos revolucionários Zé Mateus e Pedro Minanhanga, pelo duelista Marco, pelo inspetor-gendarme Henri Bernardin e pelo soldado sem nome acabam sendo uma amostra pequena da produção de um dos mais prolíficos de nossos autores. Porém, como já foi dito, é um bom ponto de partida para os interessados em julgar se críticos argentinos e leitores americanos estão certos a respeito de Carlos Orsi.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Licença para pensar o impensável

Em 1992, quando a edição nacional da Isaac Asimov Magazine publicou em suas concorridas páginas um texto chamado "Aprendizado", estava sendo dada a oportunidade para a estréia de um jovem de 21 anos no ramo de escritor profissional de ficção científica, fantasia & horror. Desde então, em um cálculo aproximado, este autor publicou cerca de meia centena de histórias e conquistou a reputação, até internacional, de ser um dos melhores naquilo que faz. Diretamente de sua cidade natal, Jundiaí a 50 km da capital paulista, onde exerce a profissão de jornalista especializado em divulgação científica, ele relembra aqui os primeiros passos na literatura de gênero; comenta suas influências - incluindo aí o papel exercido por H.P. Lovecraft nos seus textos iniciais -; fala sobre as motivações atuais; e revela qual tipo de trabalho o faz se sentir, a exemplo de certo espião inglês, portador de uma licença especial. Com vocês, Orsi, Carlos Orsi.

Nestes últimos 15 anos, você se tornou um dos autores de FC mais prolíficuos do Brasil. Entre contos e novelas publicados em livros impressos e virtuais, revistas ou fanzines, dentro e fora do país, qual é o tamanho estimado de sua produção ficcional? Quantos prêmios você já recebeu ao longo da carreira? Há alguma chance de um dia vermos tudo isso reunido em um site, por exemplo?


Bom, por partes: o tamanho da obra? Não faço a menor idéia. E, várias trocas de HD depois, nem sei se ainda tenho cópias de tudo. Além disso, há os contos que eu chamo de "mutantes", que vão se transformando a cada publicação - não sei se deveria contar cada encarnação de uma mesma história como um conto independente ou juntar tudo. Fora que meus primeiros contos eram datilografados, não digitados, logo esses só existem, mesmo, nas páginas dos fanzines. Mas, supondo que de 1992 a 2003, mais ou menos, eu tenha escrito uns dez contos por ano, e achado 50% disso digno de publicação, então seriam umas 50 histórias cuja paternidade eu reconheço ou deveria reconhecer... Prêmios: tapìraì (do fanzine Megalon), Nova e um segundo lugar no Argos. Além do Prêmio Turno da Noite, de Portugal. Juntar tudo? Não sei. Há muitas histórias que, simplesmente, não me interessam mais. E nunca tive um site pessoal. Talvez tenha um dia - mas não creio que vá usá-lo como uma espécie de omnibus, não.

Você pode fazer um retrospecto de sua formação como autor? Que tipo de exercícios literários você fazia nos primeiros anos de atividade? Participou de oficinas ou foi mais em base autodidata mesmo? Como foi sua preparação antes de publicar o primeiro texto e como é seu cotidiano agora?

Publiquei meus primeiros textos ficcionais, mais puxados para a paródia e o humor escrachado, num fanzine, Anarquia, que saiu em três números aqui em Jundiaí, por volta de 1984-85. Era um fanzine meio político, animado pelo fim da ditadura, etc. Naquele tempo eu usava camiseta de Che Guevara. O zine gerou um convite para colaborar com o suplemento dominical do Jornal de Jundiaí, o que fiz, creio, de 1985 a 1990, mais ou menos. Em 87 fiz uma oficina literária com João Silvério Trevisan, no gabinete de Leitura Rui Barbosa, um clube-biblioteca aqui da cidade.

Não me lembro, realmente, de um dia ter tido alguma rotina específica para a preparação do texto. Acho que a coisa sempre foi constrangida pelos limites tecnológicos - no tempo da máquina de escrever, minha oportunidade de revisão era a fita corretora e/ou rasgar tudo e começar de novo. Hoje, com o computador dá pra "pentear" mais o texto. Hoje em dia eu escrevo, deixo o texto "de molho" alguns dias, mexo um pouco, peço pra minha mulher, a Renata, ler, presto atenção nos comentários dela, deixo o texto "de molho" mais um pouco, enquanto decido se acato (ou não) as sugestões dela, repasso mais uma vez e então dou o trabalho como pronto. Se - como geralmente acontece - passam-se meses ou anos antes de surgir uma oportunidade de publicação, reviso uma última vez imediatamente antes de submetê-lo.

Tempos de fúria, seu livro lançado há dois anos, aparenta ser um marco em termos de estilo. Seu trabalho anterior sempre foi bastante associado ao do americano H. P. Lovecraft, mas neste livro, a presença dele parece mais diluída. Houve alguma forma de ruptura com o velho mestre ou é apenas um movimento natural de busca de novos horizontes?

Olha, eu tendo a dizer que a influência de Lovecraft na minha obra foi meio que superestimada. Fiz alguns contos realmente calcados nos Mitos de Cthulhu, mas acho que a última história que consideraria lovecraftiana "puro sangue" foi "Deus dos abutres", ainda no século passado. O fato é que, quando comecei a escrever eu tinha um problema grave: meus esboços tinham clima, tinham boas ironias, eram engraçados, tinham um bom ritmo, eram inteligentes... Mas iam do nada ao lugar nenhum. Resumindo, eu tinha estilo mas não tinha competência narrativa, no sentido de, ok, os personagens entram na história na situação A e quero que saiam dela na situação B. Como ir de A para B? Eu não sabia. Não fazia a menor idéia.

Nesse aspecto, HPL foi muito importante porque ele tinha uma disciplina narrativa muito rígida - tão rígida que, em alguns contos, dava pra ver o final chegando como um trem vindo do fim do túnel. Além disso, tinha intensidade emocional, que era outra coisa que me faltava. Então, creio que o que houve foi que eu precisava aprender, e HPL - não só ele, toda aquela geração da [revista americana especializada em contos estilo pulp fiction] Weird Tales, com Howard e Ashton-Smith também - foi uma escola. Como nas artes plásticas, aprende-se imitando e, depois, desconstruindo os mestres.

O que mudou, de lá para cá, foram meus interesses temáticos. Estou migrando para a hard SF, e acho que vou ficar lá por algum tempo. Nesse sentido, ando lendo muita não-ficção (meu livro do ônibus atualmente é o Investigations, de Stuart Kauffman) e muito conto de FC hard contemporâneo. Há algumas ótimas antologias recentes, como Solaris book of new SF e uma antologia de space-operas Forbidden planets, e o Mammoth book of extreme SF. Para "limpar as papilas", como o copo de água que os enófilos tomam entre taças de vinho, encaixo um mainstream ou um policial.

Vários dos cenários e dos personagens presentes em Tempos de fúria poderiam render novas histórias, como é o caso das duas histórias em torno do planeta Vênus. Qual a sua opinião em retornar a antigos trabalhos? Você já fez isso em relação ao conto que publicou na coletânea original da Intempol, não é mesmo?

Retomar histórias para mim é meio complicado porque, geralmente, meus contos nascem de um ponto de enredo - digamos, quero escrever uma história sobre um ataque de zumbis. Aí, todo o resto nasce como estrutura de suporte, como andaimes para sustentar esse ponto. Uma vez que eu tenha desenvolvido o ponto, os andaimes simplesmente deixam de ser interessantes, para mim. Não que eu não tenha entusiasmos - por exemplo, cheguei a imaginar "Planeta dos mortos" como primeiro de uma série que culminaria com "Galáxia dos mortos", ou algo assim - mas o princípio motor da coisa toda, que era a publicação em uma revista, desapareceu antes que eu conseguisse pôr a idéia em prática, e logo outros temas chamaram minha atenção.

A Intempol, nesse aspecto, é uma coisa diferente. Em parte, pelo desafio de expandir um universo com a ajuda, e muitas vezes sob a orientação, de outras pessoas. Segundo, porque escrever para a Intempol me dá um certo senso de irresponsabilidade - eu me sinto, paradoxalmente, mais livre, talvez porque a carga da autoria fica meio que diluída: é como se escrever para a Intempol fosse uma espécie de "00" literário, "licença para pensar o impensável". Curiosamente, esse mesmo efeito faz com que meus trabalhos na série sejam alguns dos meus melhores trabalhos.

Por falar naquele conto situado no universo criado por Octávio Aragão: "A mortífera maldição da múmia" foi adaptado para uma versão em quadrinhos on line. Como foi a experiência de ter um trabalho traduzido para outra mídia? Pode haver outras novidades nessa área, seja com material já publicado, seja com roteiros inéditos? E, por fim, qual sua opinião sobre quadrinhos de um modo geral?

Trabalhar com a equipe que fez a adaptação do "MMM" foi muito legal. Eu criava uma espécie de pré-roteiro, com uma sugestão de diagramação e decupagem das cenas, além de adaptar o diálogo. Os quadrinhistas seguiam, adaptavam ou ignoravam minhas instruções, dependendo do que fosse melhor para a série (e estou certo de que eles sempre escolhiam o melhor). Fiz isso, um capítulo por semana, durante um semestre, creio. Pessoalmente, acho a versão em quadrinhos melhor que o conto. Tanto que "Melissa, a meretriz do mal" [um romance, dando continuidade a primeira história, que saiu em formato digital] segue, em detalhes, a HQ, não o conto, por exemplo.

Quanto a novidades, ei, se quiserem me adaptar, adaptem-me! Se for para um álbum de luxo franco-belga ou para uma minissérie Vertigo eu gostaria de ser pago, mas se não, só me dêem crédito e peçam educadamente.

Quadrinhos: adoro quadrinhos. Antes de querer ser escritor, quis ser quadrinhista - desisti porque não tenho paciência de aprender a desenhar. Ando lendo pouco, atualmente - acompanho a série do Conan da Dark Horse e fico de olho na obra do Warren Ellis, e quase nada além.

Você disse que a ficção científica estilo hard é, atualmente, seu principal interesse. Seus últimos trabalhos, como a maioria dos contos do livro e o texto que publicou recentemente no fanzine Scarium fazem parte do subgênero. Como jornalista especializado em divulgação científica, portanto acostumado a lidar com minúcias técnicas da área, é mais fácil passar pelo processo de pesquisa a que esse estilo obriga seus autores?

Eu tenho um profundo interesse, um grande respeito, pelo programa científico como postura filosófica - nenhuma idéia está acima de crítica, o grau e confiança numa afirmação depende da totalidade da evidência, a evidência articula-se logicamente - e traduzir isso para a literatura é um grande barato. É O grande barato, ao menos para mim, atualmente. Creio que minha atuação como divulgador ajuda, sem dúvida: as maiores fontes de idéias para boa FC estão nas páginas da Science e da Nature, que são revistas especializadas na publicação de trabalhos científicos e circulam semanalmente.

Por falar naquela edição da Scarium: nela foi publicado um artigo que gerou alguma polêmica entre fãs e críticos de FC por fazer a defesa de uma produção associada ao estilo pulp, como o da citada revista Weird Tales. Algumas pessoas associaram tal proposta a um perigo de se relaxar na qualidade literária, de ser algo ultrapassado. Qual sua opinião sobre essa controvérsia?

Pessoalmente, considero controvérsias literárias um campo meio estéril. Digo, cada um escreve o que acha melhor, e pronto. Por trás da idéia de controvérsia está a de programa - a de que existe um caminho a seguir, e a controvérsia se dá entre programas antagônicos - e eu simplesmente não acredito em programas literários com mais de um aderente. Cada escritor tem o seu, ou cada escritor tem vários ao longo da carreira, mas tentar vender um programa é meio inútil.

Reformulando: pode ser útil na medida em que os debatedores usam o debate para lançar um olhar crítico sobre seus próprios programas. Um debate vigoroso é sempre um bom estímulo à autocrítica. Mas o que geralmente acontece é um duelo entre homens de palha, com um lado atacando não o outro, mas uma caricatura do outro.

A finada Isaac Asimov Magazine foi muito importante para toda uma safra de escritores nacionais, por apresentar a eles parte do que era produzido no exterior e, obviamente, por representar um local de qualidade onde se poderia publicar. Não deve ser coincidência o fato de que dois dos mais respeitados escritores de FC do país tenham estreado naquelas páginas: Gérson Lodi-Ribeiro e você mesmo. É algo assim que está faltando hoje em dia para ajudar a popularizar o gênero entre novos leitores e novos autores?

Bom, obrigado pela parte que me toca! No meu caso específico, a IAM me ajudou a amadurecer minha visão do gênero - eu achava que FC era Lucky Starr e Jornada nas estrelas, e de repente estava lendo Kim Stanley Robinson. Isso faz falta hoje, assim como faz falta um mercado comprador de FC.

Você tem acompanhado a produção brasileira de ficção científica e de terror? Entre novatos e veteranos há alguém que tem chamado sua atenção nos últimos anos?

Acompanhar, não acompanho. Sou um escritor, não um crítico, e o que leio, basicamente, é o que me interessa ou o que acho que poderá ser útil na composição da minha obra. Autores que me cahamaram muito a atenção nos últimos anos foram Osmarco Valadão, de quem eu realmente gostaria de ler mais coisas, e uma "novata", Cristina Lasaitis, cujo conto de estréia na antologia Visões de São Paulo foi um dos melhores, se não o melhor, do livro.

Quais são seus próximos projetos em termos de ficção?

Continuar me aprofundando no lado “hard” da FC e continuar procurando onde publicar. Eu queria inverter o equilíbrio da minha produção de textos e fontes de renda - com a a ficção pesando cada vez nos dois quesitos - e sigo buscando oportunidades para conseguir isso. Quem sabe

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O domínio do mal

Nova Iorque, Londres, Tóquio. Quem acompanha obras de ficção científica em seus diversos formatos - seja em livros, quadrinhos, filmes, seriados de TV, animações, videogames ou jogos de RPG - está sempre sendo apresentado a visões futurísticas daquelas metrópoles mundiais. Menos usual é acompanhar especulações do tipo em lugares célebres por apresentar forte resistência a mudanças, mais afeitos às tradições que ao ritmo adrenalizado das revoluções tecnológicas. Lugares assim como a infinidade de pontos pretos que sinalizam nos mapas os municípios de Minas Gerais, o estado-símbolo do tradicionalismo quando se pensa no Brasil, algo que pode ser resumido em uma frase famosa de um filho da terra, Otto Lara Resende: "Minas está onde sempre esteve". Por isso mesmo, pelo fato de usar Belo Horizonte e outras cidades mineiras ainda lutando para preservar suas características históricas em um futuro não tão distante - ou "no outono do século XXI" - é que Quintessência já começa surpreendendo os leitores.

O livro representou a estréia de um novo escritor brasileiro de FC: Flávio Medeiros Jr., médico especializado em oftalmologia nascido, criado e formado na capital mineira, que em 2004, mesma época de seu aniversário de 40 anos, resolveu se lançar na nova atividade pelas mãos da conterrânea editora Monções. A segunda surpresa da obra é a constatação de que seu autor levou bastante a sério a novidade, muito mais que a média dos iniciantes neste mundo complicado da literatura de entretenimento nacional. Na criação da intrincada trama de Quintessência, ele demonstrou que décadas acumuladas de leitura - principalmente de quadrinhos, já que as referências a eles são onipresentes na obra - acabaram servindo de formação para um contador de histórias muito bom.

Nas primeiras 20 páginas do livro, a impressão que pode passar é a de que estamos diante de um Robin Cook made in Brazil. Flávio Medeiros Jr. tem muitas semelhanças com aquele escritor americano que não só é médico, como também conta com especialização em oftalmologia e tem um passado de professor universitário. Cook é considerado o responsável pela introdução de temáticas ligadas à medicina na literatura popular, sempre as misturando com outros gêneros: suspense, horror e até ficção científica. Para completar, tal e qual o brasileiro novato fez em seu primeiro livro, o veterano é conhecido por dar títulos com apenas uma palavra a suas obras, alguns exemplos são Febre, Coma, Cérebro, Invasão. A impressão é reforçada por algo a mais que tais coincidências. Naquele trecho inicial, o detetive Tomaz Rizzatti, personagem narrador do livro, passa por uma longa - e realista - consulta em que é diagnosticado como portador de epilepsia do lobo temporal, condição muito rara por atingir duas áreas distintas do cérebro e provocar súbitos apagões de consciência.

Mas esse é só o início da história. Ao longo de 232 páginas, Medeiros vai bem além da sessão Plantão Médico, há muitas outras referências, diretas ou indiretas, em seu trabalho. O caso em que o protagonista está envolvido - a serviço de uma força policial que unificou agentes civis e militares - é a investigação de uma série de ataques terroristas em sua cidade. O atentado que abre o livro é cometido em um shopping de Belo Horizonte: um homem não-identificado abre fogo contra visitantes do local e, quando parece que vai ser capturado pela segurança, comete suicídio graças a um poderoso material bélico de uso controlado. Pistas vão aparecendo e tudo indica que há uma bizarra ligação com outros casos de assassinos suicidas, um deles investigado anos antes pelo próprio Rizzatti, o de um franco-atirador em ação na Lagoa da Pampulha, e ainda muitos outros, espalhados entre Europa e EUA. Há motivos para se supor que todos estes crimes tenham sido cometidos por uma mesma pessoa, apesar desse detalhe inquietante levar a se pensar na existência de um suicida serial.

Diante do alcance globalizado dos atentados, que podem estar sendo coordenados por um terrorista internacional, igualmente dado como morto, Tom Rizzatti carrega uma sombra em suas andanças pelos municípios mineiros: um agente paulista da Interpol. O que começa como rivalidade profissional - e aquele sentimento arisco bem mineiro - vai se degenerando em desconfianças mútuas, perseguições automobilísticas, tiroteios, trocas de identidades e todos os componentes que tornam um thriller apto a receber a classificação chavão de "cinematográfico". Essa porção do romance é marcada por descrições rápidas e precisas das paisagens reais, ainda que em suas versões futurísticas. Lembra um tanto os pontos fortes do inglês Frederick Forsyth, velho mestre dos livros de espionagem pé-no-chão, como O dia do Chacal, O Manipulador, Dossiê Odessa, Ícone e longa lista.

O clima policial do livro continua mesmo após a grande virada que ocorre pouco antes da metade de suas páginas. É uma descoberta feita pelo detetive narrador que faz a trama levar suas características de FC a outro nível, para além da descrição de traquitanas tecnológicas e previsões futebolísticas. Tentar comentar, neste ponto, alguma referência da literatura ou do cinema seria entregar surpresas que aguardam os futuros leitores. Porém, mesmo a reviravolta não muda o rumo de película impressa de Quintessência. Antes pelo contrário, a velocidade da história aumenta, o número de personagens que se alternam e deixam escapar mais algum detalhe do enredo se amplia, sem perder o foco geral. Na verdade, o autor só altera mesmo o ritmo no clímax, nas aproximadamente 40 páginas finais, nas quais o livro deixa de lado o teor cinematográfico. Com um longo, muito longo, quase interminável diálogo - praticamente um monólogo - o mais correto seria dizer que, ao final, o andamento está mais para o do teatro que para o da tela de cinema.

Por sorte, Medeiros é hábil na construção das falas de seus personagens e, com isso, o texto continua fluindo nas revelações finais de sua obra. Para ser mais exato, nesse ponto o autor dedicou especial atenção a detalhes que costumam ser ignorados por muitos escritores de ficção científica, tanto brasileiros quanto estrangeiros. É o caso da especulação sobre como evoluiria a linguagem oral nos quase cem anos que separam nossa realidade e o período em que se passa a história. O escritor soube ser sutil quando necessário para se esbaldar quando há oportunidades. Nas conversas do dia-a-dia, entre adultos, pouco mudou, com apenas o acréscimo de um ou outro neologismo. O mais utilizado é um enigmático "bandjo" que parece ter substituído completamente expressões como "cara", "malaco" ou "malandro". Já nos momentos em que surge algum adolescente no enredo, começa um verdadeiro dilúvio de gírias, felizmente traduzidas pelo contexto. Detalhes pequenos mas que tornam uma trama de FC bem mais plausível.

Outro fator que ajuda a garantir a credibilidade do texto é a construção dos personagens, principalmente do protagonista. Tomaz Rizzatti não é só o detetive com um problema grave de saúde, recém-divorciado - ele se recusa a pronunciar o nome da ex-mulher, prefere chamá-la pela alcunha de Desgraçada - e fã de todo gênero de quadrinhos antigos imaginável. Já que somos testemunhas de seus pensamentos, flagramos suas reflexões sobre o assunto que dá título ao romance: qual a quintessência, a natureza mais profunda do mal? Qual o papel do livre arbítrio, do poder de decisão, nas nossas escolhas morais? Diante das atrocidades que é obrigado a investigar, algumas tão chocantes quanto o massacre das dezenas de pessoas na abertura do livro, esse é o tipo de questionamento a martelar o cérebro já atingido pela tal epilepsia do lobo temporal. Acaba sendo um contraponto interessante ao cinismo canalha da maioria de seus colegas da ficção o comportamento deste detetive tão preocupado com o real alcance do domínio do mal.

É bom avisar: tais questionamentos são sempre feitos a partir de um ponto de vista laico, não religioso. Até para caracterizar tal visão de mundo agnóstica, o autor reitera constantemente que em seu universo as religiões são coisa do passado. Em diferentes trechos da obra, referências bastante óbvias a mitologias greco-romana e indiana, além do próprio Cristianismo, passariam despercebidas aos personagens caso eles não as pesquisassem na ultranet, o próximo passo evolutivo de nossa internet contemporânea. Tudo bem, mas em um ponto isso fica pouco crível, quando uma das referências está ligada à identidade do já citado terrorista internacional. Que a população comum não perceba a ligação seria bem razoável de se acreditar, mas quando falamos de um agente que está na caçada há anos e que, obrigatoriamente, já teria trabalhado na formulação do perfil psicológico de sua presa, isso não soa muito lógico. Este, porém, é um dos raros deslizes de uma trama muito bem trabalhada, funcionando dentro das melhores tradições dos gêneros a que está afiliada.

Com Quintessência a literatura especulativa nacional somou alguns ganhos. O Brasil foi apresentado a Flávio Medeiros Jr. um novo autor de ficção científica que garante ainda ter novas histórias para contar quando surgirem as oportunidades. Aquele clube de detetives que existe entre as ruas Morgue e Baker recebeu Tom Rizzatti como um novo embaixador brasileiro. E os mineiros ganharam um romance de FC que, mesmo com todas as influências internacionais, é tipicamente seu, no mesmo sentido que o distópico Não verás país nenhum, de Ignácio Loyola Brandão, é tipicamente paulista e o lascivo O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro, é tipicamente baiano, isso para citar apenas dois clássicos do gênero produzidos no país. Vale a pena conferir, nem que seja para tirar a limpo se, no futuro próximo, Minas vai continuar onde sempre esteve.

Serviço: Para entrar em contato com o autor utilize o email livro.quintessencia@terra.com.br

O escritor de Andrômeda

Entre um plantão e outro na emergência de um pronto-socorro de Belo Horizonte e visitas ocasionais a diversas localidades vizinhas um médico mineiro fez a a pesquisa para um dos mais imaginativos livros de ficção científica lançados no Brasil. Nesta entrevista, o autor de Quintessência conta histórias sobre a produção de sua obra independente, descreve coleções de quadrinhos que ocupam caixas de papelão, kombis e quartos inteiros, dá dicas sobre como interpretar uma cadeira no palco de teatro e detalha como foi a formação de um escritor de FC nascido em Andrômeda, vulgo Minas Gerais. Com vocês, o lado B do doutor Flávio Medeiros Jr.

Seu livro de estréia pegou muita gente de surpresa - mesmo entre os especialistas mais dedicados em acompanhar a produção nacional de FC, no famoso eixo Rio-São Paulo. Poderia fazer uma revisão de outros textos ficcionais seus e contar um pouco dos bastidores da publicação de seu primeiro romance?


Penso que essa "surpresa" se justifica. Costumo dizer, em tom de brincadeira, que vivo em Andrômeda, pois Minas Gerais, no universo da FC nacional, fica tão distante do tal eixo Rio - São Paulo quanto outra galáxia. Na verdade sou um ávido leitor de ficção científica desde adolescente. Comecei com Perry Rhodan, depois Asimov, e daí não parei mais. Tenho toda a coleção da saudosa Isaac Asimov Magazine brasileira. No entanto, só quando já estava escrevendo o Quintessência foi que eu soube que existiam fóruns virtuais para discutir FC. Por isso as pessoas ligadas à FC nacional só souberam de minha existência quase simultaneamente à publicação do meu livro. Antes dele, só publiquei contos, crônicas e cartoons (que eu escrevi e desenhei) em jornais locais e universitários, a maioria tratando de temas cotidianos. Também escrevi algumas peças de teatro, que dirigi e encenei com grupos amadores, uma delas inclusive de ficção científica, chamada Proteu, o Protótipo.

Quanto ao Quintessência, a idéia inicial surgiu da seguinte preocupação, resultado de minha estupefação diante da crescente banalização da violência ao meu redor: até que ponto as pessoas não cometem crimes, dos mais leves aos mais hediondos, obedecendo aos próprios valores morais, e não ao temor de serem pegos e punidos? Então decidi criar o "supervilão do novo milênio", um personagem com poderes praticamente ilimitados para fazer o mal, e que comete seus atos com a certeza absoluta da impunidade. O interessante foi que eu pretendia que esse vilão fosse a encarnação do Mal absoluto, mas ao longo do texto que fui escrevendo o próprio personagem me fez entender que em termos humanos isso não existe: o ser humano que pratica o mal sempre carrega suas razões pessoais para isso, sempre busca ou fabrica justificativas para seus atos. Aprendi muito com ele.

O livro foi publicado no sistema de autopublicação, ou seja, eu mesmo banquei a edição. Ao contrário de alguns, considero esta uma forma perfeitamente válida e digna de publicar um livro, diante das dificuldades que o mercado impõe a novos autores. Esse sistema ainda tem a vantagem de dar ao autor total controle sobre sua obra, desde o conteúdo até a capa. Permite também que o autor negocie melhor o preço de capa do livro e a porcentagem da consignação, que é como a maioria das livrarias trabalha. A enorme desvantagem da autopublicação é o problema da distribuição. Enquanto você está na mídia o seu livro vende bem, mas quando param de falar dele o fantasma do encalhe aparece. Em relação ao Quintessência, após três anos da publicação ainda tenho a alegria de vender exemplares pela internet ou através de pessoas que leram, gostaram e indicam a outras pessoas. É uma venda em "conta-gotas", mas para mim isso não importa: eu vivo de medicina, escrever é o meu prazer pessoal.

A FC é sempre associada a mudanças profundas na tecnologia e no comportamento das pessoas; a dinamismo social, cultural, ambiental. Minas Gerais, por outro lado talvez seja o estado brasileiro mais ligado ao culto às tradições; um lugar em que o tempo parece correr mais lentamente. Algo que pode ser sintetizado na frase célebre do Otto Lara Resende: "Minas está onde sempre esteve". Como é lidar com este aparente paradoxo de ser um autor de ficção científica mineiro? Como seus colegas, amigos e familiares reagem a seu lado menos convencional?

Como você disse, o paradoxo é aparente. Outro dia li em um romance a crítica depreciativa de um dos personagens à ficção científica, nos seguintes termos: a tecnologia evolui, as descobertas se multiplicam, mas o ser humano continua o mesmo. Naquele momento eu me perguntei: "mas não é essa a realidade?" Observe a história da humanidade: como na Antiguidade continuamos nos matando por razões religiosas, ou por ambicionarmos o que os outros possuem. A diferença é que antigamente fazíamos isso usando pedra lascada, depois arco e flecha, e hoje empregamos alta tecnologia, armas de destruição em massa e microrganismos geneticamente alterados. Mas a atitude mudou muito pouco. Nossos tabus, crenças e preconceitos mudam de roupa e adquirem formas de expressão mais rebuscada, mas em essência não mudaram muito nos últimos milênios. Por isso, parafraseando o bom e velho Otto, eu diria que "o Homem está onde sempre esteve". Minha aposta é que isso vai persistir ainda por muito tempo no futuro, de modo que a FC, na minha concepção, precisa considerar essa possibilidade.

Quanto à segunda parte da pergunta, outro dia um colega médico me disse que eu sou um dos caras com o "lado B" mais interessante que ele conhece, entendendo-se como "lado B" aquilo que você faz quando não está tratando das trivialidades da vida, como dar atenção à família ou ganhar dinheiro. Esse lado escritor surpreendeu alguns dos amigos mais recentes, pois devido aos caminhos tortuosos que a vida toma, antes do Quintessência eu havia passado uns cinco ou seis anos sem produzir nada de substancial em termos de literatura. Mas quem me conhece há mais tempo, como os familiares e amigos mais antigos, não se surpreendeu em nada. Na verdade eu escrevo desde sempre, e as pessoas se acostumaram a me ver crescendo assim. No curso primário as professoras liam minhas redações para a classe inteira, e emprestavam para as outras professoras lerem em suas classes. Com uns oito ou nove anos pedi ao meu pai dinheiro para comprar um caderno; o dinheiro deu para dois cadernos, e comecei a escrever neles meus dois primeiros livros: As aventuras de Falangeta e Cidade submarina, ambos inacabados. Com onze ou doze anos eu e um primo escrevemos dois livros que eram fanfiction (embora na época eu acho que a palavra ainda não existia) de Planeta dos macacos e dos Smurfs, que então se chamavam Strunfs. Esses dois livros tenho em casa, foram datilografados em uma velha Remington que ganhei de minha mãe naquela época, e encadernados em uma gráfica do bairro. Infelizmente, são livros de um só exemplar. Ou seja, tirando aqueles cinco ou seis anos de hiato, sempre fui metido a escritor, e suspeito que agora não vou parar nunca mais.

Quadrinhos americanos, ingleses e italianos são uma referência mais que explícita em seu trabalho. Em certos momentos, obras como Sandman, Punisher e Dylan Dog são elementos importantes para se compreender a motivação e o universo particular de alguns dos personagens. Qual o papel dessa mídia na sua formação como escritor? Qual o tamanho de sua coleção de gibis e quão eclética ela é?

Entendo que, antes de ser escritor, você necessariamente tem que ser um leitor convicto. E eu aprendi a ler com as histórias em quadrinhos. Os adultos compravam os gibis, primeiro de Walt Disney, depois também de Mauricio de Souza, e liam para mim. Eu ficava do lado acompanhando a história e perguntava, de vez em quando, o nome de alguma letra. Um belo dia, e me lembro da cena como se houvesse sido ontem, já sabendo o nome das letrinhas, uma luz se acendeu na minha mente, e compreendi que bastava juntar o som de cada letra para ler uma palavra. Nesse dia eu li pela primeira vez, antes que a escola me ensinasse, para alvoroço dos adultos ao redor. E desde então não parei mais. Ainda criança, um dos melhores amigos do meu avô era dono de uma banca de revistas, onde ocasionalmente eu passava o dia inteiro lendo de tudo. Na adolescência me especializei nos quadrinhos de super-heróis, e nos últimos trinta anos tenho colecionado e lido tudo que foi publicado no Brasil em termos de Marvel e DC, além de brasileiros como Ziraldo (A Turma do Pererê), Laerte e Angeli. Também sou fã de Uderzo e Goscinny (Asterix), e de cartunistas, como o argentino Quino (Mafalda) e Bill Watterson (Calvin e Haroldo). Atualmente ainda leio de tudo isso, mas me dão mais prazer os chamados "quadrinhos adultos", de autores como Neil Gaiman, Alan Moore, Frank Miller, Garth Ennis, Mark Millar e Warren Ellis.

Eu não saberia te dizer o tamanho da minha coleção, mas apenas para dar uma idéia, no ano passado eu vendi parte dela para uma feira de gibis usados, promovida por uma livraria de Belo Horizonte. Um funcionário teve que vir até minha casa para separar o material, depois veio uma kombi com mais dois caras para buscar doze caixas de papelão grandes cheias de revistas. Isso me rendeu um crédito de quase oitocentos reais na livraria, e hoje o quartinho de despejo do meu apartamento ainda está cheio mais da metade com grandes caixas repletas de revistas. Aproveito a oportunidade para agradecer publicamente à minha esposa pela compreensão e pela paciência e tolerância infinitas.

Você já deve ter pensado na possibilidade de continuação para Quintessência, não? Uma adaptação do livro para HQ ou mesmo uma sequência em tal formato já estiveram em seus planos?

Na verdade, a princípio eu pretendia acabar a história ali mesmo, apesar de que o final do livro gerou reações bem diversas: alguns adoraram, outros quiseram me matar e exigiram uma continuação. Eu respondi, na época, que só escreveria uma continuação se tivesse uma idéia que realmente valesse a pena. Acontece que no último ano eu tive e já andei amadurecendo essa idéia, daí que a continuação do Quintessência deverá ser meu próximo romance. Quanto a adaptações, não penso que os quadrinhos sejam o melhor formato. Observe que o livro é contado em primeira pessoa, e tem que ser assim mesmo, para que o leitor vá fazendo as descobertas, e tendo as surpresas e sustos junto com o protagonista. Ou seja, a história é contada dentro da mente do personagem, que atua como narrador. Os quadrinhos são uma linguagem muito mais visual e dinâmica do que narrativa e reflexiva, então uma adaptação de Quintessência ia ser cheia daqueles balões cheios de falas e recordatórios intermináveis, e não gosto de HQs assim. Se você precisa falar mais do que mostrar, melhor contar a história em texto. Por outro lado, já foi iniciada uma adaptação do livro para roteiro de cinema, que a meu ver está no meio termo entre a literatura e as HQs em termos de estética narrativa. Essa adaptação está meio parada depois que a pessoa responsável começou a fazer mestrado, mas é uma adaptação que considero muito mais interessante.

Além de comics e fumetti, quais as obras e autores que influenciaram seu thriller policial-científico? Entre os escritores, há algum brasileiro na lista, como Ignácio de Loyola Brandão de Não verás país nenhum? Pergunto isso porque há alguns pontos de semelhança entre seu livro e o daquele autor, como a questão ambiental em São Paulo e a unificação de forças de segurança, sua Polícia de Elite e os civiltares de Brandão.

Confesso que não conheço a obra de Brandão, embora meu interesse por ela tenha surgido recentemente, após ler nos fóruns de discussão a opinião de outros leitores e escritores de ficção científica a respeito dela. Mas antes de começar a escrever Quintessência eu senti que precisava ler algo em termos de literatura policial de autores nacionais, então li BR 163, de Tony Bellotto, e Enquanto Seu Lobo não vem, de Aluísio Santiago Campos Jr. Meu estilo nada tem a ver com nenhum dos dois, mas após ler essas obras me senti mais tranqüilo sobre escrever um romance policial com uma ambientação e personagens brasileiros. Quanto a autores internacionais, achei divertido quando alguns leitores compararam meu estilo ao do Dan Brown, e quando li O código da Vinci entendi o motivo: ele usa alguns truquezinhos como eu também usei, de terminar cada trecho de ação num momento de suspense, como nos episódios dos antigos seriados policiais, de maneira a fazer o leitor não querer largar o livro, para saber o que virá a seguir.

Quanto a minhas preferências, em termos de estilo admiro autores como Neil Gaiman (Deuses americanos, Os filhos de Anansi) e Stephen King. Deste último destaco as obras O iluminado, na qual ele retrata de forma magistral a crise no relacionamento de um casal sob o ponto de vista de uma criança pequena, e Salem’s Lot, quando na cena do sepultamento de uma criança morta ele mistura as falas do padre, que realiza sua função de maneira protocolar e impessoal, com as do pai do garoto morto, tomado por um desespero que beira a insanidade. Recentemente também me tornei fã de Philip Roth e seu Complô contra a América, para mim um dos melhores livros de todos os tempos. Esses são os caras que eu quero ser quando crescer.

Há toda uma reflexão que os leitores testemunham no fluxo de consciência de Tom Rizzatti sobre questões de fundo moral: o bem, o mal, o livre arbítrio, a essência mais profunda e definidora disso tudo. Refletir sobre pontos como esses fizeram com que você repensasse pontos de vista? Foi possível chegar a alguma conclusão no final da jornada de 230 páginas?

Talvez essas reflexões sejam a essência do livro, ou a principal razão de sua existência. Na verdade esses questionamentos são os que ficam ali, como a pulga atrás da orelha da humanidade, há muitos séculos. E são importantes, uma vez que se referem nada menos que à própria existência. Muitos buscam as respostas na religião, e se contentam com isso. Outros preferem não pensar a respeito, embora curiosamente essas questões sempre retornem, marcadamente naquelas situações de profunda comoção humana, como mortes e doenças na família, por exemplo. Outros, mais inquietos, continuam buscando. A própria ciência começa a se enveredar nesse caminho, o que não deixa de ser uma ousadia: tratar cientificamente de questões metafísicas. As melhores e mais satisfatórias respostas que encontrei até agora estão na Logosofia, ciência que aborda essas questões e muitas outras partindo do conhecimento de si mesmo. O mais interessante é que, quanto mais respostas, ou partes delas, você encontra, mais questões surgem. Mas é um estudo muito gostoso de fazer, a partir do momento que você começa a não se frustrar sempre, como se atingisse uma barreira intransponível. E, assim como a vida, não tem fim.

Sua formação como médico e a experiência de ex-professor universitário certamente foram úteis para lidar com o lado científico do livro. Mas e os demais elementos da trama? Como foi a pesquisa a respeito dos vários locais reais descritos em detalhes ao longo das páginas, sem falar no básico em termos de técnicas investigativas para a porção policial da obra?

Quanto aos locais de Belo Horizonte, minha cidade, foi mais fácil. Fui até o BH Shopping e fiquei de pé exatamente no topo das escadas rolantes, onde ocorre o atentado da abertura do livro. Ali desenhei mentalmente toda a cena. Depois "invadi" a galeria técnica do shopping onde o terrorista vai se refugiar, e imaginei toda a cena da explosão. Para a cena do congresso de neurologia no Minascentro, onde o orador metralha a audiência, aproveitei minha presença lá em um congresso e subi ao palco, para ter a visão exata do agressor. Passei pelo Viaduto Oeste várias vezes para memorizar detalhes e escrever a cena em que Tom Rizzatti escapa de seus perseguidores subindo o viaduto pela contra-mão. Cenas como as de Lavras Novas e sua cachoeira, e também Visconde de Mauá, também não foram difíceis, pois conheço bem as duas localidades. Fiz mais de um passeio ao lado oposto da Serra do Curral, caminho para Macacos, onde no meu livro vai ser construído o Memorial Leôncio Lamas, para verificar a viabilidade de minhas "teorias".

Para a cena ambientada em Paris, no final do livro, entrevistei brevemente uma amiga que morou lá: "você está de pé sobre a Pont Neuf; olha para um lado, e o que vê? E do lado oposto?" Com um mapa da cidade obtido na internet e uma foto da ponte, foi como se eu tivesse mesmo estado lá. Coisas "futuristas" como o domo sobre a região da Savassi e uma rede de autovias passando pelos subterrâneos da Praça da Liberdade, são projetos que talvez jamais se tornem realidade, mas que existem, de verdade: alguma imaginação insana pensou nisso antes de mim. Quanto à parte policial, aproveitei que trabalho em um pronto-socorro para onde convergem todos os casos de violência urbana de BH, e sempre que chegava uma turma de policiais trazendo alguma vítima ou bandido, eu "colava" nos caras e começava a fazer perguntas. Olha, ouvi coisas que você não acreditaria, nem se eu escrevesse em um livro de ficção.

Passado algum tempo de sua estréia no ramo da literatura de gênero já deve ser possível fazer um retrospecto. Entre perdas, ganhos e empates qual é o saldo destes primeiros três anos?

O saldo é totalmente positivo, já que correspondeu exatamente às minhas expectativas. Escrever para mim é um prazer, não um meio de vida. Quando você escreve por gosto, sem pressões, a chance de ter um bom resultado é melhor. Minha maior alegria é o retorno, geralmente positivo, de quem leu e gostou. Já tive comentários curiosíssimos de leitores de todas as idades, que para mim servem de sinal de que, apesar do trabalho que dá e do tempo que consome o ato de escrever, a recompensa é sempre superior. Não pretendo parar tão cedo.

Em uma perspectiva mais geral: em sua opinião, o que está faltando para a literatura de entretenimento ganhar mais espaço entre os brasileiros? Quando falamos de ficção científica nacional, especificamente, há algo que se possa fazer para popularizar o gênero e atrair novos leitores e escritores?

Um de meus leitores fez um dos comentários mais significativos, após acabar a leitura do Quintessência: "gostei muito do seu livro, apesar de ser ficção científica". Observo que a maioria das pessoas que afirmam não gostar de ficção científica nunca leu um livro do gênero, e baseia sua opinião na mídia do cinema ou da TV. Então minha proposta é: vamos escrever boas histórias! Coisas com conteúdo, mesmo que não seja nada filosófico, mas um texto inteligente e bem escrito. Ser FC, ou horror, ou policial, ou fantasia, é secundário desde que a história seja boa. De preferência com idéias originais, próprias. Se minha história de FC não passar da descrição de uma perseguição espacial, se meu texto de fantasia não for mais que a descrição da luta entre um príncipe e um dragão, talvez a mídia certa seja mesmo a TV ou o cinema.

A pista que dou, porque é a que tento seguir, é: boas histórias têm que ter um conteúdo humano. Uma vez perguntaram a Stanislawski, um dos gênios do teatro, se ele seria capaz de representar uma cadeira no palco. A resposta dele foi: "Se essa cadeira tiver o sonho de virar uma poltrona, ou se tiver o medo de morrer em um incêndio, eu represento. Se não tiver nada disso, você não precisa de um ator: use uma cadeira". Penso que na literatura seja a mesma coisa. Tenho lido muita coisa boa de gente nova na literatura de gênero, e se tivermos mais oportunidades de mostrar esses trabalhos para mais pessoas, através da divulgação e da melhoria do acesso das pessoas à literatura, esse panorama vai mudar. E esse trabalho tem que começar junto à juventude, que tenho encontrado sem muitas motivações e incentivos que transcendam a superficialidade.

"O futuro é uma página em branco dentro de um quarto escuro em uma noite de neblina". Foi assim que, à altura da página 90 de Quintessência, você definiu o porvir. Mesmo com toda a nebulosidade e escuridão para atrapalhar a vista, o que o futuro lhe reserva como escritor?

Idéias é o que não me falta. Estou com um novo romance pronto para publicação, chamado Casas de vampiro. Enquanto Quintessência é uma mescla dos gêneros ficção científica e policial, no novo livro misturo FC e horror. Tenho também pronta uma coletânea de contos leves, de humor e temas cotidianos, chamada Leia e fique rico. Acabo de terminar um conto de FC inspirado por uma música da cantora Tanita Tikaram, que deverá sair publicado em uma antologia de vários autores de ficção científica, horror e fantasia. Além disso estou fazendo as pesquisas para um conto no universo da Intempol, e para o romance que será a continuação do Quintessência. E já tenho algum material guardado para o romance que virá logo depois dele, uma ficção científica mais "pura", sem muita mistura de gêneros, para variar. Ah, nos horários vagos eu cuido do "lado A": trabalho, família e saúde.