sábado, 13 de dezembro de 2008

A prática dos jogos

No dia 15 de outubro de 2003 uma nova palavra entrou de vez para o vocabulário e para o imaginário dos que se interessam por temáticas espaciais. Naquela data, ao orbitar a Terra a bordo da nave Shenzhou 5 Yang Liwei, um chinês de 38 anos, se tornou o primeiro taikonauta da história, o nome que as autoridades de seu país escolheram para o mesmo profissional que, em tempos de guerra fria, foi chamado de astronauta pelos americanos e de cosmonauta pelos russos. O prefixo utilizado para diferenciar a conquista chinesa daquela feita pelos rivais históricos décadas atrás – derivado de “taikong”, espaço em mandarim – serviu de inspiração para batizar a mais ousada e ambiciosa iniciativa multimídia ligada à ficção científica no Brasil. Seu lançamento oficial ocorreu exatamente meia década depois da longa marcha espacial de Yang Liwei: foi em 27 de outubro deste ano que a empresa catarinense Hoplon Infotainment apresentou ao público o game on-line Taikodom, um produto que passou justamente os últimos quatro anos e meio em desenvolvimento, consumiu investimentos na ordem de R$ 15 milhões e será o mote de vários outros meios nos quais se contarão histórias sobre o Domínio do Espaço. O primeiro deles foi lançado em outubro em São Paulo, juntamente com o game, e também no início de dezembro, em Florianópolis, e é o motivo desta resenha, o romance Taikodom: Despertar, editado pela Devir e escrito por João Marcelo Beraldo.

O autor é um game designer carioca, com formação em história e desenho industrial, que já havia publicado um outro livro com abordagem futurística e espacial – Véu da verdade – e foi contratado pela Hoplon para cuidar do enredo do jogo, dos personagens, das missões e de todo material escrito. Para tanto, Beraldo segue as regras criadas pelo seu conterrâneo Gerson Lodi-Ribeiro, o responsável pelo contexto histórico do universo Taikodom, aquilo que no jargão dos games e séries do cinema e da TV é chamado de Bíblia. Neste mundo ficcional, a iniciativa privada começa levar seus projetos para o espaço a partir do ano de 2013, pouco mais de meio século depois, algumas colônias em torno da Lua e do Cinturão de Asteróides conseguem a autonomia em relação à Terra.

O evento mais traumático, e que muda por completo o rumo dos acontecimentos, ocorre em 2073. É quando um campo de origem desconhecida cerca o planeta, impedindo o retorno de qualquer um ao local, mas não a fuga em massa que acabaria por evacuar um planeta que em poucos anos se tornou quase inabitável. O surgimento desse campo demarcou uma nova era, os fatos passaram a ser considerados Antes da Restrição ou sendo da Era da Restrição. Os acontecimentos narrados neste primeiro livro se dão no ano 153 ER, ou seja, em 2226, pelo nosso calendário, quando duas das pessoas que tiveram que fugir às pressas daquele mundo condenado são despertadas, após passarem um século e meio em animação suspensa, e tentam se adaptar à vida em um tempo pouco amistoso a elas.

Jorge Santiago e Augusto Carrera são os protagonistas da história, brasileiros que eram respectivamente piloto e co-piloto na Terra nos tempos pré-Restrição. Os dois colegas voltam à vida porque foram selecionados, entre os incontáveis terrestres hibernantes, pelo conglomerado privado que dita as regras naquele universo. Na ausência de governos ou mesmo de estados, é o Consortium quem provê a segurança e o bem-estar dos habitantes do chamado Taikodom, porém a iniciativa é alvo de ataques de diversos grupos: sejam eles piratas, mercenários ou mesmo fanáticos religiosos. Por isso, de tempos em tempos, de acordo com a demanda do momento, alguns daqueles fugitivos do campo de restrição recebem a chance de voltar à vida, passar por um período de adaptação em estações que levam nomes como Jules Verne e tentar a sorte, por exemplo, como piloto em alguma das forças de segurança existentes. O problema está nessa adaptação.

Vindos com a mentalidade do século XXI, os ressurectos, como são chamados, formam a classe mais baixa em um mundo dominado por três castas de humanos mais bem adaptadas ao século XXIII. Os mais presentes no livro são os spacers, aqueles que vivem em estações espaciais; os mais misteriosos são os worms, habitantes dos subterrâneos de satélites como a Lua; há ainda os belters, presentes em asteróides. Neste contexto, Santiago e Carrera podem ser vistos como fornecedores de mão-de-obra barata em uma distopia com cara de utopia.

Mesmo entre esse grupo com tão poucas perspectivas, há variáveis nos caminhos a se seguir. E aquela dupla representa bem isso. Ironicamente, é Carrera, o antigo co-piloto, quem se adapta melhor ao novo mundo, passa a subir posições e ganhar a confiança dos seus superiores na esquadrilha em que passa a servir. Dono de um temperamento genioso, muito apegado à antiga existência na Terra e resistente às novas tecnologias, Santiago se mostra um ressurecto bem mais difícil de se lidar e sobrevive à base de bicos. Apesar das diferenças quase irreconciliáveis, ambos, cada um a seu modo, vão se envolver diretamente em uma trama de espionagem e conspirações que vai tomar proporções de uma guerra sem precedentes naquele novo mundo.

Beraldo lida muito bem tanto com o lado mais humano da trama – com os jogos de interesses políticos, as investigações feitas em botecos suspeitos e os momentos de confraternização de companheiros de batalha – quanto, e principalmente, com a parte puramente bélica – caças são abatidos por naves bem maiores, dróides explodem como buchas de canhão e enormes frotas espaciais são posicionadas de acordo com as estratégias de seus comandantes. Apesar de faltar alguma consistência, por exemplo, nas motivações de Santiago – a relação dele com outra personagem fica muito rasa para explicar o porquê das tomadas de decisões tão arriscadas – o autor é bastante hábil em um gênero controvertido da ficção científica, a space opera, que tem seus fãs e seus detratores. Ele até fez uma divertida e nada sutil homenagem a um dos expoentes do estilo, em uma fala de Augusto Carrera, na página 254: “Santiago, eu sou um piloto de caça, não um cavaleiro Jedi”.

É importante que o leitor tenha em mente que Taikodom: Despertar é uma aventura que põe um jogo em prática. Isso quer dizer que várias das soluções em suas páginas foram criadas originalmente para tornar o game atrativo e não com finalidades literárias. Gerson Lodi-Ribeiro, o criador deste universo, é reconhecido por sua afinidade com a ficção científica hard, aquela em que as extrapolações científico-tecnológicas são mais plausíveis. Apesar disso, para se ajustar às necessidades típicas de um game, ele teve que fazer concessões. Um exemplo bem básico diz respeito à virtual imortalidade dos personagens.

Como eles representam jogadores, foi necessário encontrar uma solução que garantisse o seu retorno mesmo após serem mortos em combate. Era isso ou cada jogador teria que recomeçar sempre do zero a cada derrota. A saída foi dotar os pilotos desta realidade com uma espécie de computador pessoal no cérebro; além de municiá-lo com informações, o recurso ainda faz uma espécie de backup da personalidade do usuário o que permite cloná-lo mais tarde, resultando em uma nova vida para o gamer. Outra questão diz respeito aos avanços tecnológicos que permitem itens como campos de força, geradores de gravidade artificial e atalhos por regiões do espaço. Tudo isso é explicado pela ação de misteriosos alienígenas (provavelmente os mesmos responsáveis por aquele campo de restrição) que desapareceram de vista não sem deixar para trás artefatos cuja tecnologia está mais próxima da fantasia que da ciência.

Felizmente para o leitor, João Marcelo (ou J.M. como assina o livro)Beraldo consegue utilizar tais recursos, que poderiam significar uma camisa-de-força na história, em benefício da trama. Um exemplo é o uso inteligente que um personagem faz do seu computador cerebral – na verdade, Organizador Neural Intracraniano – para driblar a própria morte e proteger informações valiosas no processo. Ou ainda, nos momentos da estratégia de guerra, aqueles atalhos espaciais se mostram um trunfo importante para um dos lados da batalha. O envolvimento com o romance garante a necessária suspensão de descrédito para que se possa apreciar a aventura sem tropeçar em impropriedades científicas. O texto direto e agradável do autor contribuí para tanto. Contribuiria ainda mais se, com uma revisão um pouco mais criteriosa, fossem eliminados certos erros e algumas palavras repetidas que surgem poluindo muitas frases.

Outro bom achado da edição lançada pela Devir – que inclui ainda um CD de instalação do game – é a bela capa de autoria do jornalista e artista gráfico Ivan Jerônimo, também funcionário da Hoplon. Apesar de um dos principais diferenciais do jogo ser os gráficos 3D, foi bastante agradável a escolha de uma ilustração mais, digamos, orgânica – apesar de ser uma pintura eletrônica – para a obra impressa. Mesmo assim, para instigar a curiosidade dos leitores e potenciais jogadores, além de aproveitar o material desenvolvido por um batalhão de designers, uma falha da edição foi a de não incluir no interior do livro algumas imagens disponíveis do game. Um apanhado das incontáveis naves, de todas as classes e modelos, citadas ao longo do romance poderia ilustrar a abertura dos 41 capítulos espalhados por 320 páginas, por exemplo.

Taikodom: Despertar é uma boa amostra do que se pode esperar dos próximos lançamentos editoriais que devem expandir o universo do jogo. Há histórias em quadrinhos sendo produzidas e novos livros previstos. O próximo lançamento deve ser uma coletânea de contos de autoria de Gerson Lodi-Ribeiro, alguns disponíveis no site, que se passam antes e depois da história contada neste primeiro romance. A previsão é de que os lançamentos cruzem fronteiras e sejam exportados para outros países, em um primeiro momento, para Portugal. Isso tudo fora as perspectivas de Taikodom, o game, propriamente dito. Nada mal para um projeto que começou quase simultaneamente com o primeiro passo dado pelo chinês Yang Liwei no espaço.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Uma distopia nada ambígua

O texto abaixo é a introdução escrita por mim para o livro Fome, de Tibor Moricz, lançado pela editora Tarja:

Nas páginas seguintes, você terá a oportunidade de testemunhar a morte de, pelo menos, dois mitos. Um deles é a tradição bem-comportada da Ficção Científica brasileira, uma vez que o bom-mocismo desse gênero da literatura nacional raramente encontrou quem o desafiasse ao longo dos anos. Já nas linhas iniciais do primeiro dos quinze contos, Tibor Moricz trucida tal padrão estabelecido ao ir muito além do que fez, por exemplo, lá no início da década de noventa, o pioneiro e decano André Carneiro em sua singular utopia sexual Amorquia.

O paulistano descendente de húngaros (mais especificamente, sobrinho-neto de um dos maiores escritores e dramaturgos daquele país, Zsigmond Móricz) criou nesta coletânea uma distopia nada ambígua. Se em seu romance de estréia, Síndrome de Cérbero, ele fez uso de um tema clássico da FC mundial – a viagem no tempo – para analisar a angustiada relação de um filho com o pai ausente, aqui o autor volta a trabalhar com um cenário bastante conhecido, o do futuro pós-apocalíptico, mas com resultados bem mais cruentos.

Em Fome, o Caos e o Abismo de Nietzsche abusam, torturam e canibalizam um segundo mito, o do Bom Selvagem de Rousseau. A civilização acabou, os governos não existem mais, as relações familiares e as religiões ou se extinguiram ou surgem apenas como caricaturas farsescas. O que move os poucos sobreviventes é a urgência em atender àquela necessidade física que dá nome à obra. A fome, em suas diferentes e variadas manifestações, é a protagonista onipresente.

“Não eram tempos para analogias”. Dessa maneira se define o mundo descrito a seguir, em um dos primeiros contos. Mais à frente, em outro texto, retoma-se o assunto. “Um tempo onde a comida não existia. Um tempo onde a água pura não existia. Onde a sobrevivência suplantava tudo. Mas um tempo, sobretudo, onde todos, sejam caça ou caçador, sabiam que a vida é uma questão de sonho e decepção”. É nesse tempo e nesse lugar que você está entrando agora, no espaço da Entropia. Não é bem o caso de dar as boas vindas, mas a verdade é que você está prestes a conhecer a distópica entropia de Tibor Moricz.

Vire a página por vontade própria.

sábado, 11 de outubro de 2008

Viagem ao centro da FC

A ficção científica costuma ter uma relação curiosa com público e crítica. Nos países em que o gênero literário conta com uma maior carga de tradição, como os EUA ou a Inglaterra, alguns escritores se tornam fenômeno de venda, mas tamanha popularidade costuma gerar desconfiança entre os críticos. Por outro lado, existem países em que a literatura, falemos na de gênero ou não, desconhece o que seja atingir uma massa de leitores. Nem é preciso dizer que este é o caso do Brasil. Por aqui, mesmo sem fazer valer o adjetivo de “popular”, com livros nacionais ou mesmo traduções de material estrangeiro raramente chegando à casa dos milhares de exemplares, a FC é relegada a segundo, terceiro ou último plano pela crítica. Todavia, se a interação com público e crítica não tem sido das mais profícuas, há um terceiro território em que os textos fictícios sobre especulações científicas recebem cada vez mais atenção: o ambiente universitário.

Pode não chegar a ser um avanço que inspire otimismo, mas não deixa de ser uma evolução o que vem ocorrendo. Entre 1967 e 1987, foram publicadas seis obras nacionais dispostas a analisar o tema. Meia dúzia de títulos em duas décadas. Nos anos 2000, mais exatamente de 2002 a 2006, já havia se conseguido igualar aquele número. Em 2007, um sétimo livro foi lançado, o mesmo de onde foram retirados os dados para este parágrafo, e com isso se renova a esperança de que a FC possa entrar cada vez mais na agenda do público, da crítica e da academia. Volta ao mundo da ficção científica presta uma contribuição e tanto neste sentido ao abrir espaço para discutir, sob vários ângulos, este gênero da literatura fantástica, irmão mais novo da fantasia e do terror.

De início, o interesse da dupla de organizadores, Edgar Nolasco e Rodolfo Londero, era se restringir a estudos sobre a produção brasileira. Com o tempo de elaboração, o escopo do livro lançado pela editora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) se ampliou: dos nove artigos, dois terços realmente tratam de temas locais; o restante traz visões de brasileiros a respeito de obras e de autores de outros países. Uma outra contribuição, muito bem-vinda, foi a inclusão de um conto inédito na coletânea. Vamos ver neste texto um apanhado do que Volta ao mundo da ficção científica oferece a seus leitores ao longo de 168 páginas.

O livro abre com textos de seus organizadores. Em “Clarice e a ficção científica”, Edgar Nolasco analisa as ligações de uma de nossas mais consagradas escritoras com o gênero. Doutor em literatura comparada e professor da UFMS, Nolasco é um pesquisador com mais de um trabalho em elaboração a respeito da obra de Clarice Lispector. Neste paper, ele foca tanto em algumas das traduções que a escritora fez para textos de Edgar Allan Poe e Jules Verne, quanto em um conto de FC criado por ela para o livro A via crúcis do corpo, de 1984, “Miss Algrave”, que conta com a participação importante de um alienígena na trama.

Rodolfo Londero, jornalista e mestre em letras pela UFMS, além de co-organizador da obra, contribui com um estudo sobre tema mais amplo em “Níveis de recepção do cyberpunk no Brasil: um estudo de casos exemplares”. Para tratar do impacto do subgênero (e movimento) criado nos EUA por William Gibson, em meados dos anos 80, o pesquisador dividiu os casos em três níveis. No primeiro, o “direto”, ele enquadra autores brasileiros que dialogam frontalmente com as obras inaugurais do cyberpunk, caso de Fábio Fernandes e de alguns contos de sua coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, do ano 2000. No que chamou de “recepção análoga”, Londero se refere a material nacional que captou o espírito do tempo que marcou a obra de Gibson, mesmo sem seguir o cânone daquele e de outros escritores americanos. Um exemplo citado é o livro Piritas siderais, cujo autor, Guilherme Kujawski afirmou em entrevista ao pesquisador que desconhecia o próprio termo cyberpunk, apesar das semelhanças entre sua obra, de 1994, e as temáticas do movimento criado uma década antes.

O nível a que o artigo dedica mais espaço levou o nome de “indireto” e seria o de obras brasileiras que dialogam com trabalhos precursores da ficção cyber. Neste conjunto de textos que compartilham um repertório semelhante ao dos americanos – por exemplo, a influência do filme Blade Runner, do diretor Ridley Scott – estão as criações do cantor e performer Fausto Fawcett, como o livro Santa Clara Poltergeist, de 1991.

“Ficção científica e o despertar do interesse científico: o fator eureka” é o nome da contribuição mais atípica da coletânea. De autoria do jornalista especializado em divulgação científica e em letras e literatura Alfredo Suppia, o texto é o único que prioriza exemplos vindos do cinema no lugar da literatura, para demonstrar como este gênero é capaz de despertar o interesse do público pela ciência. São vários os filmes que o autor analisa para comprovar sua tese, entre eles duas películas nacionais, Parada 88: limite de alerta, dirigido em 1988 por José de Anchieta, e Abrigo nuclear, feito em 1981 com a direção de Roberto Pires. Ambas as histórias são distopias ecológicas, retratando futuros próximos em que o meio ambiente se encontra irremediavelmente modificado pela ação humana. Seja nas citações locais ou nas internacionais, o artigo busca apresentar exemplos daquilo que o autor denominou de “fator eureka”, ou seja, o elemento sedutor capaz de familiarizar a audiência com temáticas da ciência real.

Talvez o artigo com interesse menos universal do conjunto seja o que vem a seguir. “História e representação: o jogo de memória e realidade em O homem do castelo alto, de Philip K. Dick” tem como objeto de pesquisa um dos romances mais conhecidos do consagrado autor americano. A obra de 1962, recentemente republicada no Brasil pela editora Aleph, imaginou uma história alternativa em que os vencedores da II Guerra Mundial foram os japoneses e os alemães, povos que dividiram entre si os Estados Unidos. O paper foi escrito pelo então doutorando Anderson Gomes e trata dos vários modos com que o “passado real” se relaciona com a “narrativa imaginada” naquela obra. Este é o texto que mais exige um conhecimento prévio do leitor nos temas abordados em suas páginas.

O quinto artigo foi escrito por um autor que teve sua obra na ficção analisada em outro texto do mesmo livro, traduziu o romance que foi tema do capítulo anterior e que também escreveu um dos já citados livros teóricos sobre FC lançados na última década. Fábio Fernandes, doutor formado na área de comunicação e semiótica da PUC-SP, produziu a coletânea Interface com o vampiro e outras histórias, foi o tradutor da edição mais recente de O homem do castelo alto e lançou em 2006 A construção do imaginário cyber: William Gibson, criador da cibercultura. No texto “Para ver os homens invisíveis: a Intempol e sua influência na literatura de ficção científica brasileira”, ele faz um estudo de caso do universo compartilhado criado pelo escritor Octavio Aragão, baseado em uma polícia internacional do tempo, que mobilizou dezenas de outros escritores nacionais em um projeto comum que abrange várias mídias. O autor do texto aponta o projeto Intempol como um exemplo possível para vencer aquilo que o jornalista e editor catarinense Dorva Rezende definira como sendo a invisibilidade cultural que atinge a FC nacional.

Um artigo que bem poderia render livro à parte é “A ficção científica no cordel”. Seu autor é outro escritor cuja obra serviu de tema para alguns dos outros colegas da coletânea e que também já havia contribuído com duas obras teóricas sobre a FC, uma lançada em 1985, O que é ficção científica?, e outra publicada 20 anos depois, O rasgão no real: metalinguagem e simulacros na narrativa de ficção científica. Braulio Tavares faz a inusitada comparação entre a literatura de cordel e os formatos em que foram publicadas várias das histórias de FC no exterior, como as dime novels ou as pulp magazines. Para isso examina duas obras representativas, uma escrita em Portugal e outra no nordeste brasileiro.

A contribuição lusitana é O balão aos habitantes da lua, um livreto em verso escrito em 1819 por José Daniel Rodrigues da Costa. Nele, se narra a aventura do personagem Robertson, um aventureiro que conseguiu chegar à lua e contatar seus habitantes viajando a bordo de um balão. Um exemplo equivalente encontrado no Brasil foi o folheto História do homem que subiu em aeroplano até a lua, de João Martins de Athayde, publicado no Recife em 1923. O protagonista desta segunda história, tembém narrada em versos, levou o nome de Baratão e foi outro que travou contato com selenitas. O artigo é uma rica e bem documentada análise que termina com esta conclusão: “cordel e FC são hoje primos em terceiro grau, mas sua acestralidade em comum não pode ser ignorada”.

Outro escritor de ficção e pesquisador da área assina o sexto artigo do livro. Roberto Causo escreveu Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950 em 2003 e o romance A corrida do rinoceronte, três anos depois, além de manter atualmente uma coluna sobre FC no site Terra Magazine. Com o artigo “O poeta que viu o disco voador”, o bacharel em letras português/inglês pela USP faz a análise da noveleta O 31º peregrino, publicada em forma de livro em 1993, pelo premiado escritor Rubens Teixeira Scavone. Aquele texto foi uma espécie de continuação informal de uma das obras mais significativas da história literária inglesa, os Contos da Cantuária, escrita pelo poeta inglês do século XIV Geoffrey Chaucer. A obra original contava como 30 peregrinos a caminho de Canterbury, para visitar o jazigo do arcebispo Thomas Beckett, faziam uma parada em uma hospedagem para compartilhar suas histórias. O brasileiro Scavone inseriu um novo personagem àquela narrativa, 650 anos depois, e com ele acrescentou uma carga de ficção científica e horror fantásticos ao cenário medieval, feitos esses analisados por Causo em seu paper.

O penúltimo artigo da coletânea guarda a particularidade de ter sido escrito com uma visão estrangeira sobre a produção de FC do Brasil. Sua autora é a americana M. Elizabeth Ginway, que já havia publicado um livro sobre o assunto em 2005, Ficção científica brasileira: mitos culturais e nacionalidades no país do futuro, e é professora adjunta de literatura portuguesa e brasileira na Universidade da Flórida. Em “A cidade pós-moderna na ficção científica brasileira”, a brasilianista enfatiza a importância dos aglomerados urbanos em várias histórias de FC produzidas no país. Como não poderia deixar de ser, as metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo assumem um papel de destaque nos exemplos dados. Seja em contos, como “Jogo rápido”, do já citado Braulio Tavares, texto incluído na coletânea A espinha dorsal da memória, de 1989, ou “Feliz Natal, vinte bilhões”, de Henrique Flory, publicado no livro A pedra que canta e outras histórias, de 1991, que mostram respectivamente a capital fluminense e a paulista como ambientes superpopulosos e ultraviolentos. A pesquisadora também analisa romances do cyberpunk nacional, alguns já citados anteriormente. Curiosamente, como ela chama a atenção, todos protagonizados por personagens negros: os dois ambientados no Rio, Silicone XXI, de Alfredo Sirkis, escrito em 1985, e o já mencionado Santa Clara Poltergeist; além do paulistano Piritas siderais, também já comentado.

Quem fecha a parte ensaistíca do livro é Ramiro Giroldo, por sinal o tradutor para o português do artigo da professora Ginway. A segunda contribuição de Giroldo na coletânea é o texto “Outra utopia”, um adiantamento do tema de sua dissertação de mestrado em estudos da linguagem na UFMS: a análise do romance Amorquia, publicado em 1991 e de autoria de um dos mais prestigiados escritores de ficção científica do Brasil, André Carneiro. O estudo do mestrando propõe uma interpretação daquele livro, sobre um mundo futurista em que a entrega de seus cidadãos aos prazeres sexuais são amplamente incentivados pela sociedade. A discussão segue sobre os limites e as diferenças entre utopias e distopias.

Quanto ao já anunciado conto que encerra Volta ao mundo da ficção científica, o autor é justamente André Carneiro. Precursor nos estudos sobre o gênero no Brasil, é dele o livro que os organizadores desta coletânea apontam como sendo o pioneiro no país, Introdução ao estudo da “science fiction”, de 1967. Carneiro teve seu trabalho publicado em mais de uma dezena de países e escreveu a noveleta “A escuridão”, que lidera a maioria das listas sobre qual é o melhor texto de FC nacional de todos os tempos. O conto que aparece no livro se chama “Pensamento”, e conta a história de um casal de pesquisadores envolvidos em uma experiência considerada proibida pelas autoridades: a clonagem de um cérebro.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Ficção científica semestral

No início da década de 90, durante pouco mais de dois anos, leitores brasileiros de ficção científica viram nascer, prosperar e morrer a mais importante iniciativa para difundir por aqui o que de melhor se produz neste gênero. Enquanto durou, a edição nacional da Isaac Asimov Magazine trouxe todos os meses a preço acessível e com distribuição ampla alguns dos mais importantes escritores de FC de todos os tempos: além do senhor que emprestava o nome à publicação, invadiram as bancas gente do nível de Orson Scott Card, Frederik Pohl, Geoffrey Landis, David Brin, Octavia Butler entre muitos outros. Mais que isso, a revista também abriu espaço para talentos locais que não fizeram feio ao dividir páginas com estrangeiros já consagrados, como Gérson Lodi-Ribeiro, Carlos Orsi Martinho, Jorge Luiz Calife, André Carneiro e Maria Helena Bandeira. Apesar de não chegar a dar prejuízo, os resultados comerciais não foram o esperado pela editora responsável, a Record, uma das grandes do mercado brazuca. Com o seu fim, toda uma geração de órfãos da IAM passou a se lamentar pela falta de projetos semelhantes.

Em 15 anos o quadro mudou muito pouco, apenas com alguns fanzines impressos e sites tentando manter atualizada a produção de escritores que ainda não haviam realizado o sonho do livro próprio. Porém, 2008 parece querer se firmar como um ano em que ao menos parte do vácuo deixado pelo fim daquele importante marco editorial pode ser preenchido. Neste segundo semestre, começam a se consolidar iniciativas neste sentido, com projetos coerentes que podem dar novo fôlego à ficção especulativa nacional. Talvez a proposta mais ambiciosa desta nova fase seja uma revista de título mutante que pretende apresentar, a cada seis meses, uma nova leva de autores, mesclando nomes conhecidos neste meio com outros mais identificados com a chamada literatura mainstream. Quem está capitaneando o empreendimento é o escritor e ensaísta Nelson de Oliveira, conhecido por organizar coletâneas de qualidade dentro do gênero fantástico – e que está preparando uma nova para ser lançada ano que vem pela mesma Record da falecida IAM, cujo título será Futuro presente: dezoito ficções sobre o futuro.

Na edição de lançamento, a revista recebeu o nome de Portal Solaris, em referência à obra-prima de Stanislaw Lem. Ao longo dos próximos três anos, a cada semestre, um novo Portal deve ser lançado, sempre com a mesma intenção de homenagear grandes ícones da ficção científica; pela ordem, são eles Neuromancer, Stalker, Fundação, 2001 e Fahrenheit. A idéia por trás desta lista de títulos é simples, mas pode dar um bom resultado: o projeto pretende despertar o desejo por FC de qualidade em novos leitores, criando uma demanda para ser satisfeita em uma fase posterior. Neste primeiro momento, os autores reunidos se divididem em cotas para bancar a publicação, cuja tiragem reduzida é distribuída entre alguns formadores de opinião por todo o Brasil. Somente após consolidar o conceito, ao longo das seis edições anunciadas, é que os responsáveis pretendem transferir o Portal para uma editora, incubida da impressão e distribuição, passando assim a remunerar seus colaboradores com os direitos autorais.

“Cada portal é um organismo cibernético multidimensional, sem forma ou conteúdo definidos, acionado pela fantasia e pelos desejos de quem o utiliza”, escreveu Oliveira no texto de apresentação do número de estréia do projeto. “Juntos, os seis portais funcionam como o aleph do célebre conto de Borges. Juntos, os seis portais formam o ponto de onde é possível enxergar todos os pontos do uiverso. Ou ser por eles enxergado”. A forma com que este primeiro Portal se manifestou é a de uma revista em preto e branco, com 106 páginas e dimensão de 16 por 23 centímetros. O requinte gráfico se manifesta no belo projeto gráfico, de sobriedade elogiável, e na excelente capa, um estudo caligráfico do título da publicação, assinado Teo Adorno. Até a revisão, feita por Mirtes Leal, está muito acima da média dos lançamentos nacionais, aí incluídos livros e revistas.

Quanto ao conteúdo, Oliveira reuniu 14 contos de dez autores de nada menos que sete estados do país, dando uma ótima amostra contemporânea, e em escala verdadeiramente nacional, do que se produz em termos de ficção fantástica. A escolha dos convidados contemplou alguns nomes conhecidos de quem acompanha a FC nacional e outros que se mostram uma boa novidade na área. O mais veterano, sem dúvida, é Roberto de Sousa Causo, um dos escritores nacionais premiados e publicados pela já citada IAM (a noveleta “Patrulha para o desconhecido” foi impressa no número 14). Em sua contribuição para o Portal Solaris, o paulista, autor de A corrida do rinoceronte e responsável por uma coluna semanal sobre FC para uma página da internet, apresentou o conto “Rosas brancas” – dedicado ao americano Philip K. Dick – cuja temática bélica futurista faz parte de suas marcas registradas.

Ataíde Tartari, morador de Santos, já participou da coletânea de contos de um subgênero da FC, a história alternativa, chamada Phantástica brasiliana e publicou livros originalmente escritos em inglês, como Tropical shade. Para a revista, ele escreveu um texto que presta homenagem ao clássico Um estranho numa terra estranha, do também americano Robert Heinlein, a começar pelo título, que cita quase literalmente o protagonista daquele romance, “Valentim”. O outro paulista do time, Ivan Hegenberg, divide a coordenação do projeto com seu conterrâneo Nelson de Oliveira. Ele estreou na área da FC com seu segundo livro, a distopia futurista Será, já resenhado aqui no Overmundo, de onde extraiu os dois contos publicados em Portal Solaris. “Dia qualquer” e “Mastch” deixam claro, respectivamente, a influência que Clarice Lispector e Friedrich Nietzsche exerceram sobre o jovem escritor.

Os demais colaboradores vieram de todas as regiões do Brasil e de além mar. Carlos Emílio C. Lima, autor de O romance que explodiu, é do Ceará; Carlos Ribeiro (Lunaris), da Bahia; Geraldo Lima (A noite dos vagalumes), de Brasília; Homero Gomes (Sísifo desatento), do Paraná; Luiz Bras (A última guerra), mora em Portugal; Mayrant Gallo (O inédito de Kafka), da Bahia e Rogers Silva (Manicômio, livro ainda inédito), de Minas Gerais. Porém, como deixou claro naquele editorial, Nelson de Oliveira pretende mudar não só o título a cada edição, mas também variar forma e conteúdo de sua série de portais. Interessados em participar de alguma maneira desta iniciativa, podem contatar o coordenador editorial pelo e-mail oliveira.e.cia@uol.com.br

sábado, 3 de maio de 2008

Complexo de Chronos

Milênios antes de o engenho humano tê-lo tornado possível, nosso velho sonho de voar como os pássaros ganhou a forma de uma lenda, na Grécia antiga. Histórias como a de Ícaro anteciparam e mobilizaram a vontade de um número incontável de pessoas ao longo das eras, servindo ora como fonte de inspiração ora como alerta. De certa maneira, a ficção científica pode ser considerada sucessora dessa linhagem de narrativas mitológicas, com o diferencial de ter substituido a intervenção dos deuses por uma dose – em alguns casos, ligeira pitada – de empreendedorismo humano e de conhecimento aplicado. Um exemplo prático desse moderno cânone mitológico foi o primeiro livro de um dos desbravadores do gênero literário: A máquina do tempo, de H. G. Wells. O escritor inglês fundou um novo mito quando fez seu Ícaro anônimo desafiar não os céus mas aquilo que chamou de quarta dimensão, em uma viagem ao futuro. A idéia por trás da obra de 1895 permanece como referência a gerações de escritores do mundo inteiro e, no Brasil, curiosamente, tem servido como porta de entrada para debutantes da FC. O Universo Intempol é um caso exemplar, pois surgiu no conto de estréia de seu criador, Octavio Aragão, e logo se tornou a oportunidade para lançar vários iniciantes, como Jorge Nunes. Fora daquele ambiente, time travel também vem sendo o mote dos romances de outros viajantes. Assim foi com Osíris Reis e o capítulo inicial de sua saga, Treze milênios, e é assim com o objeto de atenção deste texto, o primeiro romance do paulistano filho de húngaros Tibor Moricz.

O título do livro, lançado na primeira metade de 2007, já remete àquela idéia da ancestralidade das antigas mitologias na árvore genealógica da ficção científica: Síndrome de Cérbero. Esse é o nome do cão monstruoso que vigia a saída de Hades, a terra dos mortos, nas lendas gregas, um ser que enfrentou o herói Orfeu e o semideus Héracles – ou, Hércules, para os latinos. Na capa da obra, em uma pintura de William Blake – curiosamente não creditada em parte alguma da publicação – a criatura aparece na forma mais conhecida, com as três cabeças prontas para destroçar quem tentasse fugir do destino pós-vida. A explicação para se evocar a besta-fera só vai chegar ao leitor na página 280, quando faltam pouco mais de 50 para o fim do texto. O protagonista da obra, narrador da trama, queixa-se de seus azares: “Por que eu? Estou mergulhado nessa sopa de impressões até o pescoço. Vivo às portas do inferno, enlouquecido pela inconstância e pela dúvida. Nem dentro nem fora. Sinto-me como Cérbero. Não serei eu a viver deslocado da realidade? Uma pessoa à margem da história? Afastado da verdade, uma sombra?”. Só que não é ao reino de Hades que esse Cérbero involuntário está subordinado. Pode-se dizer que o destino dele se perdeu nos domínios de Chronos, aquele que, na mitologia grega, personifica o tempo, um ente que já existia antes mesmo de surgirem os primeiros titãs, deuses ou humanos.

Vamos ao enredo para tentar entender o porquê daquele desabafo shakespeareano feito pelo protagonista quase ao fim da jornada. Antes de mais nada, o nome do personagem em questão é Leonard Cameron e não, ele não é brasileiro. A história contada em Síndrome de Cérbero, apesar de começar em uma data de forte simbologia para o Brasil – em “algum dia de abril de 1964”, coincidindo, portanto, com o primeiro sinal da última ditadura que vivemos neste país – se passa inteiramente nos Estados Unidos. O início ocorre, mais precisamente, no dia 18 de abril de 1964, em uma pequena cidade do estado de Massachussets, chamada Greenville. Durante um piquenique em família, quando ele contava com dez anos de idade, um acontecimento marca o fim da infância de Leonard. O rapaz presencia o assassinato do pai, Robert Cameron, um político progressista com boas chances de se tornar senador, morto com um tiro na testa desferido por um criminoso nunca descoberto. Além de político em ascensão, Robert era o ídolo máximo do filho. Testemunhar o crime marca de tal forma o garoto que o mundo dele começa a perder o sentido na mesma hora. Ao longo de toda a narrativa, de modo obsessivo, a mente dele sempre divaga e retorna ao mesmo ponto, àquela primeira década de vida feliz ao lado da figura paterna.

Leonard Cameron tem uma chance de realmente voltar fisicamente àquele período do tempo, muitos anos depois do atentado. Em fevereiro de 2004, já com 50 anos, leva uma existência banal, sem amigos, sem amantes, sem parentes. Depois de se formar de modo não muito brilhante em física pela Universidade de Yale, conseguiu emprego em uma instalação particular de pesquisa no estado de Connecticut. Como superintendente de Operações da Fundação Leicester, surge a oportunidade de acompanhar e de favorecer com relatórios positivos – algo que representa verbas mais generosas e maior liberdade de ação – certo experimento de um dos cientistas da instituição, Barnard Caldwell. Trata-se de um equipamento que, aparentemente, permite deslocamentos no tempo com o vetor oposto ao da máquina imaginada por Wells no século XIX, sempre para o passado. Uma rápida explicação para o funcionamento do maquinário é dada na página 29. “Para facilitar, a descoberta final foi a seguinte: o tempo não é linear. Ele se comporta como uma corda com suaves ondulações. Barnard chamou cada ondulação de arco”, simplifica Leonard e complementa a seguir: “Imagine uma reta imaginária cortando essa corda no meio. Teremos vários arcos, cada qual com uma extensão de tempo definida. Cada extensão de tempo exatamente igual a 28h17m06s. Ou seja, qualquer coisa que volte ao passado, ocupará um dos arcos na corda de tempo de milhões de anos de nosso planeta”.

Com isso, foram abertas as portas para o atormentado Cérbero desafiar a lógica paradoxal de Chronos em sucessivas viagens com o objetivo de salvar Robert Cameron e mudar o próprio destino. Os efeitos colaterais não demoram a surgir. Alguns são puramente fisiológicos e, relativamente, fáceis de se contornar: após cada deslocamento, a cobaia humana perde grande quantidade de líquidos corporais, sofre de sensibilidade à luz e fica bastante desorientada. Outras implicações são mais complicadas de se descrever e bem mais graves. Além de emprestar certo ar sobrenatural a várias passagens do livro – mesmo que existam explicações racionais, ligadas à física de partículas – elas conseguem tornar a existência de Leonard cada vez mais miserável. Porém, por mais bem conduzidas que sejam as jornadas físicas ao passado, as mesmas que fazem a alegria dos fãs de FC, o grande curinga do livro está nas reminiscências do protagonista. A todo momento, mesmo em meio à mais fantástica experiência científica já realizada, a consciência do homem sempre volta a divagar por aquele período de seus primeiros 10 anos de vida, juntando peças e dando pistas falsas sobre acontecimentos dos quais os leitores acompanham desdobramentos cada vez mais complicados.

O autor se revela muito competente neste jogo de idas e vindas na narrativa e no tempo. Talvez o melhor exemplo esteja na abertura, no prólogo que antecede os curtos capítulos da obra. Naquelas 30 primeiras páginas, os momentos em que o narrador descreve pequenos detalhes de sua infância são carregados de impressões táteis, olfativas, gustativas, visuais e auditivas: a travessura com uma bicicleta, a última pescaria com o pai, os primeiros momentos do piquenique trágico, a posição do vento, a altura da grama. O contraste fica evidente com o desdém insensível, inodoro, insípido, translúcido e taciturno com que são comentados os eventos após a morte de Robert: a adolescência solitária, a primeira transa, a vida universitária, o emprego aborrecido e mesmo a dinâmica por trás da viagem no tempo. Ao longo das páginas, há outros bons exemplos desse controle narrativo seguro e eficiente que ajudou a dar forma a um dos mais bem construídos personagens da ficção científica nacional, dono de uma série de camadas de vida interior e de mudanças de humor que o tornam excepcionalmente crível.

Contudo, se o destaque fica para o lado psicológico de Leonard, a parte mais dinâmica também é uma atração e tanto. Por força das circunstâncias, no vaivém cronológico, ele é forçado a entrar em ação a todo instante, a se meter em lutas corporais, perseguições, fugas e afins, apesar de ser uma pessoa reconhecidamente fora de forma depois de meio século de ócio improdutivo. A sequência em que ele invade uma propriedade murada é especialmente digna de atenção e, provavelmente, carrega algo de auto-ironia, uma vez que a criatura é apenas cinco anos mais velha que seu criador, nascido em 1959. Tibor Moricz se mostra um ótimo escritor nessas pequenas partes que formam o seu romance de estréia. Não é de se estranhar que ele, um publicitário na metade profissional de sua vida, tem recebido prêmios por narrativas mais curtas. Dois de seus contos de temática FC já levaram honrarias que prestam homenagem a autores consagrados do gênero. No XI Concurso de Contos de Araraquara – Prêmio Ignácio de Loyola Brandão, “Ordem Crepuscular” – história de ambientação espacial à Jornada nas estrelas – foi uma das vencedoras. Da mesma forma, um exercício de estilo também sobre questões temporais, “Filamentos iridescentes como numa chuva de néon”, ganhou o I Prêmio Braulio Tavares, promovido pela maior comunidade em língua portuguesa dedicada à ficção científica do Orkut.

No conjunto de capítulos que formam o romance de 332 páginas, o autor também se sai bem, já que mantém um domínio da trama que, em mãos menos habilidosas, poderia fazer daqueles arcos e cordas temporais um verdadeiro nó cego. Pelo menos na maior parte do tempo. Quase ao final da obra, quando chega o momento de aparar as pontas dos paradoxos cronais e da parte policial, algo acaba sobrando. Apesar de um personagem prometer que “nada ficará sem justificação”, pelo menos uma pergunta se mantém sem resposta e dá a impressão de que este mesmo personagem, pelas regras do jogo, sabe mais do que deveria. É como um gol de mão em nosso time aos 44 do segundo tempo. A rigor, poderia ser uma deixa e tanto para um próximo livro e o enredo de Síndrome de Cérbero se prestaria perfeitamente a uma obra derivada, contada sob um outro ponto de vista, resultando em algo ao mesmo tempo complementar e com vida própria. Material assim já foi feito na literatura de FC pelo americano Orson Scott Card, em sua saga de Ender; ou ainda, para ficar no subgênero da viagem no tempo, em certos momentos da trilogia cinematográfica De volta para o futuro. Resta saber se esta é mesmo a intenção do autor e, claro, se o mercado nacional estaria maduro o suficiente para esse tipo de franquia.

Fora isso, escaparam alguns deslizes no texto que não resistiriam a uma revisão mais rigorosa. A maioria dos casos é de redundâncias, como aquele “imagine uma reta imaginária” do trecho citado páragrafos atrás. Mas há mais, há olhos que olham, pilhas de coisas empilhadas, elos que fazem ligação, pessoas certas de suas certezas, quem encara algo de frente e sobe em cima de algum objeto. Nada que comprometa o prazer de se ler uma boa trama bem contada, todavia são detalhes que poderiam ser resolvidos facilmente na edição. Mas a editora responsável pelo lançamento – JR, mais conhecida por trabalhar com publicações espíritas – também tem seus méritos por publicar uma obra muito bem acabada, com diagramação e tipologia agradáveis. Ficam registradas a ausência do crédito da pintura de capa e uma sugestão para aumentar a gramatura das páginas: em um livro repleto de paradoxos e de pistas espalhadas pelo texto, virar e revirar as folhas é uma necessidade constante. Quando elas são muito finas, como neste caso, acidentes tendem a acontecer...

Tibor Moricz, apesar de ter se lançado tardiamente ao mercado – nos textos de apoio do livro, informa-se que ele escreve desde a adolescência, mas vinha resistindo a publicar seu material –, mostrou-se uma ótima contribuição à FC nacional e ainda promete outras obras para breve. A mistura de viagem no tempo, aventura policial e romance psicológico tornam Síndrome de Cérbero um dos livros de literatura fantástica mais interessantes lançados nesta última, e produtiva, década no país. Quanto aos apaixonados por aquela neomitologia fundada por H. G. Wells, há pouco mais de 110 anos, esses ganharam uma nova obra para influenciar mais sonhos que envolvam desafios aos limites impostos por Chronos. Sonhos que vão continuar enquanto ciência e tecnologia não os tornarem realidade, como elas fizeram com nosso desejo de voar. A vantagem é que isso até pode demorar outros tantos milênios, a exemplo dos que separaram a lenda de Ícaro da invenção do avião; afinal, no caso das viagens no tempo, alguns milênios a mais ou a menos não representam nada no fim.

Serviço: O livro pode ser comprado virtualmente na Saraiva, Cultura, Fnac e Cia dos Livros. O preço normal é R$ 38 reais, mas ele está em promoção por R$ 24,50 no www.submarino.com.br

Acidental feito pedra no caminho

Romancista estreante e contista premiado, como leitor ele se define atípico e como escritor de ficção científica diz que o gênero surgiu em sua vida feito uma topada numa pedra. O primeiro romance dele, Síndrome de Cérbero - no qual um homem de meia idade viaja 40 anos ao passado para tentar salvar o idolatrado pai de ser assassinado - é uma amostra de seus objetivos literários: um autor que pretende utilizar ferramentas do gênero para tratar das angústias humanas, dos dilemas do indivíduo. Na entrevista a seguir, o paulistano comenta os motivos para ter situado o livro em um cenário estrangeiro, descreve um pouco do método quase mediúnico de escrita e aproveita a experiência como publicitário para analisar as estratégias possíveis para se popularizar a FC no Brasil. Com vocês, o sobrinho-neto do escritor e dramaturgo húngaro Zsigmond Moricz (1879-1942), Tibor Moricz.

Você lançou seu primeiro livro com praticamente a mesma idade do protagonista da obra, às vésperas de completar 50 anos. Mas, nos textos de apresentação de Síndrome de Cérbero, é dito que você escreve desde a adolescência. Há muitos outros textos seus, quer sejam ou não de ficção científica ou de literatura fantástica em geral, já elaborados e aguardando publicação?


Devo ter escrito ao longo da minha vida centenas de contos. Todos eles perdidos nas mudanças que realizei ou devorados pelas baratas. Tenho dois romances prontos. Mas a editora cometeu um exagero quando disse que eles estavam no prelo. Na verdade não tenho nenhuma intenção de publicá-los. Um deles é uma fantasia medieval que cheguei a reescrever quatro vezes procurando aprimorá-lo; o outro, um livro de aventura e sobrenatural que, embora seja relativamente bom, está longe de me agradar inteiramente. E quando não me sinto seguro com algum escrito, não o torno público. Jamais. Há um terceiro, mas este foi escrito recentemente, tem o título de Fome e se encontra nas mãos de alguns editores conhecidos. Acredito muito na sua publicação. O conto que abre o livro está disponível na internet e já foi lido por muitos. Chama-se “O caçador”.

Depois de tanto tempo escrevendo antes de se lançar às livrarias, por que você escolheu a FC como tema do romance de estréia? De onde veio seu interesse pelo gênero e que autores você costuma ler e lhe servem de referência?

Uma vez eu disse que a FC aconteceu na minha vida da mesma maneira que uma pedra acontece na vida de algum passante distraído. Foi uma topada acidental. Ocorreu de elaborar uma história cuja temática central era de viagem no tempo. Resisti muito a aceitá-lo como ficção científica porque meu objetivo era – e sempre será – o homem. O indivíduo. Suas incertezas, seus medos, suas imperfeições. Utilizei a poderosa máquina de Barnard Caldwell apenas para dar uma base segura ao argumento principal que era o amor de um filho pelo pai. Com o passar do tempo fui me ajeitando dentro desse novo contexto e comecei a aceitar o fato de ter escrito uma obra de ficção científica. Justamente por ter sido um evento acidental não posso dizer que fui influenciado por esse ou aquele autor do gênero. Sou um leitor diferente. Em muitos aspectos, atípico. Desde a pré-adolescência venho lendo quase tudo o que me cai nas mãos. Muito mais literatura mainstream que de gênero, embora tenha lido Isaac Asimov, Arthur Clarke, Ray Bradbury, Robert Silverberg e outros. Considero-me atípico porque não lembro os livros que li, a não ser uma meia dúzia que por essa ou aquela razão me marcaram. Nesses, incluo Sexus, Nexus e Plexus de Arthur Miller, A insustentável leveza do ser de Milan Kundera, Complexo de Portnoy de Philip Roth, Fome de Knut Hamsun, Os sete minutos de Irving Wallace e outros mais recentes que ainda não foram removidos para o arquivo morto da minha memória (rsrs). Minha maior influência veio mesmo da TV e do cinema. Fui um entusiasta de Perdidos no espaço, Jornada nas estrelas, Túnel do tempo, Viagem ao fundo do mar, Star wars e quaisquer outros filmes ou séries nessa temática. Assim, posso dizer que minhas referências literárias vêm de uma imensa sopa de impressões obtidas com a leitura de livros dos mais diversos gêneros, a esmagadora maioria completamente esquecida por mim atualmente.

Foi feita muita pesquisa para compor a trama de Síndrome de Cérbero, tanto nos aspectos técnicos da viagem no tempo, envolvendo algumas teorias de física; quanto na construção psicológica do personagem principal, Leonard Cameron; ou ainda no cenário do livro, que se passa inteiramente em cidades de porte médio dos EUA?

Média. A construção psicológica do personagem não exigiu pesquisa nenhuma. Saiu tudo da minha cabeça. Os detalhes técnicos sobre a viagem no tempo mereceram uma pesquisa básica já que não mergulhei de cabeça no aspecto hard da ciência. Quanto ao cenário, tive que pesquisar o cotidiano e a geografia dos EUA, mas nada muito exaustivo.

Por falar na ambientação do livro, por que você optou por criar uma história que não tenha nenhum elemento, ou mesmo citação, ao Brasil ou à terra natal de seus pais, a Hungria? Em relação ao primeiro caso, foi para fugir do mito do Capitão Barbosa, como é apelidado o temor de que soe ridículo o uso de personagens e de temáticas brasileiras em um enredo de ficção científica?

Na ocasião eu não conhecia o mito do Capitão Barbosa, embora tivesse sido exatamente por isso que resolvi ambientar a história do livro num país estrangeiro. Não conseguia (nem consigo agora) imaginar um cientista chamado Benedito ou um “da Silva”. O cenário brasileiro contemporâneo me remete a outros argumentos ficcionais, todos eles realistas e mais condizentes com a literatura mainstream. Pobreza, crime e corrupção (vividas tão de perto e intensamente) são referências desestimulantes para quem quer escrever uma boa história de FC. Pelo menos pra mim.

Sua escolha por utilizar personagens e cenários americanos provocou alguma reação perceptível entre os leitores? Houve alguma crítica positiva ou negativa por ter feito tal opção?

Poucas reações. O Fábio Fernandes comentou que perdi uma excelente oportunidade em ambientá-lo no Brasil do golpe militar. Li alguns comentários sobre o fato em algumas comunidades do Orkut. Alguns puristas reclamando da “imbecilidade” de um brasileiro ambientar sua história noutro lugar, num país estrangeiro, como se isso fosse um crime de lesa-pátria. Tudo bobagem. Mas as reações negativas foram realmente pequenas. Graças a Deus os elogios suplantam em muito as críticas.

Síndrome de Cérbero pretende ter alguma forma de continuação, seja na forma de uma seqüência da história, seja com uma adaptação para outra mídia, ou você já explorou tudo o que tinha a dizer sobre aqueles personagens?

Na minha cabeça não há a menor chance de escrever uma continuação para Síndrome de Cérbero. Quanto a adaptações para outras mídias, acho-as pertinentes. Mas nem sei como poderia fazer isso. Gosto de pensar que o livro renderia um bom filme, mas sei que isso é fantasia e estamos falando de ficção científica (rsrs).

Seu livro foi publicado por uma empresa que é conhecida pelo lançamento de títulos ligados ao espiritismo – JR Editora – que nunca mostrou interesse anterior pela ficção especulativa. Como foram os bastidores dessa negociação e há possibilidade de a editora voltar a lançar outras obras do gênero, de suas ou de outros autores?

As coisas com a JR Editora aconteceram de forma completamente inusual. Estava batalhando uma editora há dois anos sem nenhum resultado positivo. Um amigo, escritor do gênero de auto-ajuda, me convidou para uma noite de autógrafos numa livraria Siciliano próxima de casa. Fui. Lá conheci o editor, para quem enderecei todas as minhas reclamações quanto à capa abominável do livro que se homenageava naquela noite. Propuseram-me então que apresentasse uma capa melhor, que desenvolvesse um projeto. Aceitei com a condição de que o editor me auxiliasse na procura de uma outra editora para Síndrome, já que ele estava fora da linha editorial da JR. Condição aceita, iniciei o trabalho a que me propus. Duas semanas depois, numa reunião onde apresentei as opções de capa, entreguei ao editor o original de Síndrome de Cérbero. Ele leu a sinopse e declarou interesse em publicá-lo. Coisa que acabou acontecendo um ano e meio depois. Tive muita sorte, na verdade. Quanto a possibilidade da JR Editora vir a publicar outras obras do gênero, desconheço. Mas acho que nada impede um bom argumento de ser aceito.

Apesar de se lançar como escritor já com um romance, você tem sido premiado por textos mais curtos que também tratam de temas de FC. Foi assim com “Ordem Crepuscular” e com “Filamentos iridescentes como numa chuva de néon”, respectivamente vencedores dos prêmios Ignácio de Loyola Brandão, no XI Concurso de Contos de Araraquara, e Braulio Tavares, em uma competição promovida no Orkut que em breve deverá dar origem a uma coletânea. Qual a importância desse tipo de incentivo para um autor iniciante?

Acho que para chegar ao ponto de um autor iniciante ser premiado num concurso de contos qualquer que se pretenda sério, é necessário que ele já tenha queimado uma série de etapas anteriores. Ter escrito bastante para evoluir tecnicamente, poder dizer que desenvolveu um estilo próprio. Ter sublimado aquilo a que chamamos de talento (desde que ele exista nessa pessoa) e tê-lo transformado em ferramenta constante e não apenas efêmera e ocasional. Depois de tudo isso, um prêmio num concurso de contos é apenas a ratificação de um trabalho árduo. O verdadeiro incentivo não está nos prêmios nem nos concursos. Ele está à nossa volta. Em nós mesmos. Naquilo em que acreditamos. Naquilo que queremos para nós e para as pessoas que amamos.

Há alguma diferença marcante entre seu processo de elaboração de um romance e o de um conto? Poderia descrever como é sua preparação no momento em que resolve criar alguma história?

Meu processo criativo é, de certa forma, entrópico. Não há, na maioria das vezes, uma elaboração antecipada. Quanto muito uma idéia básica. Eu me sento para escrever e deixo o texto fluir. É quase mediúnico. Síndrome de Cérbero recebeu de mim uma atenção rasteira quanto à linha geral de raciocínio que nortearia o trabalho. Resolvi o nome dos personagens, decidi que o filho tentaria salvar o pai sucessivas vezes de um assassinato e o resto foi acontecendo na medida em que escrevia. Eu era um escritor/leitor privilegiado. Conto ou romance, ambos sofrem o mesmo processo. Posso sentar, respirar fundo diante do editor de texto e começar a batucar o teclado. Colocar palavras a esmo, deixar que elas se sucedam e formem linhas, orações, páginas inteiras. Em 90% das vezes fico satisfeito com o trabalho. Ultimamente tenho permitido que a inspiração me atinja, em vez de simplesmente sentar e escrever. Deixo a mente aberta até que uma idéia surja e brilhe. Devo ter um anjo da guarda literato que me sopra as idéias, talvez até um anjo familiar já que meu tio-avô Zsigmond Moricz foi um dos escritores mais importantes da Hungria no século passado (rsrs).

Aproveitando da sua experiência profissional como publicitário, você poderia sugerir alguma estratégia para popularizar a ficção científica entre o público brasileiro? O que está faltando para atingir maiores mercados consumidores para o gênero?

Essa questão me lembra um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Ou a cobra Ouroboros. Não há jornalismo literário especializado no país, o que dizer então em relação à literatura de gênero. Por outro lado, não temos um gênero especializado no país, que dirá um jornalismo que o respeite. O que quero dizer é que faltam obras verdadeiramente respeitáveis, que chamem a atenção pela inequívoca qualidade. Trabalhos que, pela virtude técnica, poderiam lutar ombro a ombro com a literatura mainstream. Trabalhos que valorizem não apenas uma boa idéia, mas também o poder narrativo.

Indo direto ao ponto, precisamos primeiro produzir obras de inegável qualidade para depois reclamar a falta de atenção da mídia. Claro que campanhas publicitárias ajudariam, mas qual editora investiria num autor brasileiro de futuro ignorado? Já é uma luta conseguir uma que aceite nos publicar, convencê-las a nos bancar publicitariamente é quase uma alucinação. Não resta alternativa senão usar e abusar dos recursos que a internet nos fornece. Divulgar nossos trabalhos e nomes em blogs, comunidades, sites diversos, explorar ferramentas como o Youtube. E contar com a sorte. Ela às vezes dá as caras. Temos que estar atentos para agarrá-la nessa hora.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

O retorno do príncipe

Pode parecer bizarro para a maioria das pessoas dizer que uma das séries cinematográficas mais identificadas com a ficção científica não é classificada como tal pelos críticos mais puristas. Para boa parte dos especialistas, faltaria às duas trilogias de Guerra nas estrelas especifidades para inclui-las naquela classificação. Faltaria, basicamente, ciência, a busca pelo conhecimento para sustentar as proezas tecnológicas imaginadas nos anos 70. O argumento é que todo o cenário espacial pode ser substituído por equivalentes low tech sem causar prejuízo à epopéia dos Skywalker. Algo que a série de livros iniciada com Eragon – que até já foi adaptado para o cinema – de autoria do jovem Christopher Paolini, parece tentar provar, ao trocar os sabres de luz por espadas comuns, naves por dragões e ainda assim manter quase intocado o núcleo da saga jedi. Segundo esse ponto de vista, mesmo sendo sinônimo de FC para milhões de fãs, a obra mais famosa de George Lucas deveria ser etiquetada como fantasia tecnológica, e seria mais aparentada dos escritos de J.R.R Tolkien que dos textos de H.G. Wells. Sempre que a questão é levantada na presença, física ou virtual, de cultuadores de FC, mobiliza opiniões entusiasmadas. Desde o final de 2007, esse tão controverso gênero fronteiriço ganhou um novo representante literário para alimentar mais discussões: Hegemonia – O herdeiro de Basten, livro escrito por Clinton Davisson e lançado pela editora Arte e Cultura.

Apesar de o nome do autor não dar pistas – ele foi batizado em homenagem a um físico americano vencendor do prêmio Nobel –, trata-se, sim, de uma obra nacional. Davisson nasceu em Volta Redonda, formou-se em jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, de Minas Gerais, e voltou ao estado do Rio de Janeiro, mais exatamente à cidade de Macaé, onde trabalha como jornalista e cartunista. Ele já havia se aventurado na FC em 1999, ao lançar um livro que misturava futebol e futurismo, Fáfia – A copa do mundo de 2022, mesma proposta da coletânea Outras copas, outros mundos publicada um ano antes. Mas Hegemonia é uma aposta mais ambiciosa. A idéia básica acompanha o autor há mais de 30 anos, desde que tinha apenas cinco anos de idade, e, segundo informaçõe nos textos de apresentação da obra, a produção do texto consumiu sete anos: no ano 2000, uma versão prévia da trama ficou em terceiro lugar no concurso promovido por uma revista especializada no gênero, a Sci Fi News. Todo esse trabalho foi feito para estruturar o livro que se pretende o primeiro não de uma, mas de duas trilogias – e essa é apenas mais uma semelhança com aquela história ocorrida há muito tempo, em uma galáxia muito distante.

Já que estamos voltando no tempo, vamos dar uma recuada de meio milênio para entender o título da obra. A história começou com o filósfo italiano Nicolau Maquiavel, em 1513. Após ter servido como secretário de estado em uma experiência republicana em sua cidade natal, Florença, o pensador foi expulso da região quando os Médici retomaram o governo. No exílio, ele escreveu sua obra mais famosa, O príncipe, um texto marcado pelo pragmatismo que dá conselhos a um soberano hipotético sobre as reais condições por trás da conquista e da manutenção do poder. Mesmo país, quatro séculos depois, alguns dos conceitos maquiavélicos foram atualizados por outro filósofo, Antonio Gramsci, nascido na Sardenha. Fundador do Partido Comunista Italiano em 1921, apenas cinco anos mais tarde ele acabou sendo encarcerado pelo governo fascista que tomou conta da Itália. Na cadeia, foram produzidas suas teses mais conhecidas, postumamente reunidas nos Cadernos do cárcere, entre elas as que davam a receita para um novo ente alcançar o poder: o “moderno príncipe”. A diferença básica entre as idéias de um pensador e outro é que o florentino falava a uma pessoa física; já o sardo imaginava um organismo coletivo que deveria garantir as condições ideais de controle social, ou seja, da conquista da hegemonia. “A hegemonia é a capacidade de um grupo social de assumir a direção intelectual e moral sobre a sociedade, sua capacidade de construir em torno de seu projeto um novo sistema de alianças sociais, um novo bloco hitórico”, esse é um conceito gramsciano citado logo no início do livro nacional.

O escritor fluminense criou sua obra entre esses dois pólos, o dos soberanos de fato e o de uma estrutura coletiva, ambos buscando manter a direção intelectual e moral de suas sociedades. O ente coletivo, o “novo príncipe”, é representado por nada menos que um planeta inteiro, Dison, um mundo cercado por uma concha que o torna inexpugnável. Seus habitantes se denominam simplesmente de a Hegemonia e, de fato, assumem o controle de toda uma galáxia. O poderio bélico e cultural dos disonianos é fortíssimo, porém é possível perceber que se trata de um império atravessando o período de decadência, com vários de seus cidadãos se alienando da vida real em busca fugas na realidade virtual, por exemplo. Apesar de toda a influência que possui, a Hegemonia atual parece ser apenas uma sombra do que foi a geração que fundou tal império em tempos antigos; uma casta de seres que, literalmente, tinha o poder de criar mundos. Não apenas Dison como os outros quatro planetas do sistema solar em que se passa a história foram construídos por esses misteriosos fundadores. Isso inclui Elôh, o mundo do protagonista do livro, Ron Ger Schowlen, um príncipe na tradição maquiavélica do termo.

Ron, o herdeiro do subtítulo do livro, passou dez anos naquela capital do império se preparando para se tornar um verdadeiro cidadão de Dison. Uma grande frustação o afasta desses planos e o faz voltar àquele planeta periférico, mais especificamente ao reino de Basten, governado por seu irmão bem mais velho, Shodan. A história do livro é narrada pelos pensamentos do príncipe, gravados em um equipamento acoplado a uma poderosa armadura de combate que é o equipamento padrão entre os disonianos, a derma. Desde o início percebemos que isso não é sinônimo de uma versão isenta dos fatos, já que o rapaz tem a possibilidade de editar a gravação de tais memórias, cortando trechos indesejados, por exemplo. Mesmo assim, o registro pessoal, e um tanto improvisado, se torna a base para historiadores de um futuro distante analisarem os fatos que estariam por provocar uma verdadeira revolução no sistema da Hegemonia.

De início, os registros dão conta do tédio do herdeiro na volta ao lar – uma cidade gelada habitada por humanóides, assim como ele próprio, totalmente albinos – e de uma confusa e mal resolvida relação com o seu casal de irmãos. A situação muda quando surge em Basten um grupo de gelfos, pequenos seres marsupiais, pedindo auxílio para defender sua distante vila do cerco de dragões. Sim, dragões, do tipo que voam, cospem fogo e ainda por cima falam – existe até mesmo um dicionário do dialeto das criaturas nos apêndices do livro. A partir daí, Hegemonia torna-se uma história clássica de jornada e de como ela vai modificar o protagonista, jogando por terra vários de suas idéias pré-concebidas. Como a tecnologia dos planetas periféricos é muito inferior à de Dison, as enormes distâncias do planeto Elôh são vencidas lentamente, com o auxílio de enormes, mas comparativamente rudimentares, barcos e carros de combate. Ron tem assim a oportunidade de analisar com ceticismo científico a bizarra geografia de seu mundo natal e os costumes dos vários seres que o habitam, desde guerreiros anfíbios até burocráticos insetóides. Essa lenta construção de cenário e de personagens é o melhor do livro. A narrativa de Davisson deixa o leitor tão envolvido nos diferentes aspectos sociais, religiosos e culturais daqueles povos a ponto de mal se perceber que é apenas na metade da obra, mais precisamente na página 129, em que ocorre a primeira cena de ação da história. É quando Ron Ger faz uso das lâminas de prótons, armamento embutido nos antebraços de sua armadura, um cruzamento entre os sabres de luz dos cavaleiros jedis e as garras de adamantium do mutante Wolverine.

Deste ponto em diante, acaba a fase picaresca e o modo aventureiro passa a ser dominante. O embate entre os gelfos, auxiliados pelos guerreiros comandados por Ron e Shodan, contra a raça dos beligerantes dragões é sangrenta e acarreta várias baixas de ambos os lados do front. Na maior parte das vezes, esta segunda metade do livro consegue manter qualidade semelhante à primeira, pois as descrições dos armamentos e as estratégias adotadas são vívidas o suficiente para manter o interesse. É só na última missão, algo anunciado como sendo uma tarefa muito mais difícil que todas as desventuras anteriores, em que o ritmo cai. Em pouco mais de 20 páginas, está tudo solucionado, com um desfecho um tanto deus ex machina que pode deixar um sabor anticlimático. Ainda mais se o trecho comprimido entre as páginas 247 e 259 for comparado com o cuidado com que o escritor vinha conduzindo a trama até aquele momento.

Como não poderia deixar de ocorrer numa publicação de forte inspiração maquiavélico-gramsciana, antes de chegar ao fim dos combates, vamos perceber que há muito de manipulação e dissimulação no conflito. O melhor é que o autor não força a mão em didatismo ou pedantismo ao se utilizar de tais conceitos. Clinton Davisson consegue em Hegemonia o raro feito de produzir uma obra que, ao mesmo, tempo diverte o leitor, com uma história honesta e eficiente, e ainda explora temas profundos, que, infelizmente, não costumam ser matéria-prima para o entretenimento de massa. E ele prova que só não o é por falta de vontade de outros criadores, o casamento pode ser feito, sim, de maneira muito mais simples que sonha nossa vã filosofia. Não é preciso, e talvez nem mesmo seja desejável, que o leitor seja um especialista em ciências políticas ou um físico teórico para se divertir com a linguagem simples e com todas as subtramas do livro. É bem verdade que de um cartunista seria de se esperar uma dose maior de humor no texto, o que aproximaria o livro nacional de obras como as séries Discworld e O guia do mochileiro da galáxia, respectivamente de Terry Pratchett e de Douglas Adams. Talvez, passado o peso da estréia da saga com Hegemonia – O herdeiro de Bastem, o autor se solte mais nos próximos cinco volumes previstos.

Mas há outros detalhes ainda mais urgentes para se resolver nos próximos capítulos. A edição do primeiro livro certamente merece elogios, a capa, por exemplo, de autoria do ilustrador, quadrinista e escritor Osmarco Valladão, deve ser a mais bonita já produzida para uma obra nacional de FC. Vai ser muito bom ver outros trabalhos dele estampando as demais edições da série. Porém, na parte de revisão de texto, a Editora Arte e Cultura precisa melhorar bastante. Ao longo do texto há vários lapsos que poderiam ser evitados, como hífens ausentes, como em “bem vindo” na página 38, ou sobrando, “anti-matéria”, página 248; e expressões truncadas e redundantes, a exemplo de “teorias variadas variando”, da página 205, ou “a resposta para a pergunta (...) não foi respondida”, na página 249. Substituir a fonte do texto também poderia ser uma boa idéia, a utilizada neste livro é bastante carregada, parece que todas as páginas foram escritas em negrito, o que, às vezes, torna a leitura um tanto desagradável.

Nos apêndices do livro, além daquele já comentado dicionário da língua dos dragões existe um interessante glossário para ajudar o leitor a entender vários dos termos exóticos empregados ao longo do texto. A questão é que se pode notar algumas ausências nos verbetes. Um deles é referente à raça de uma das personagens mais interessantes do livro, a falastrona capitã Marla Trillina: não aparece naqueles textos detalhes sobre os merfolks, seres anfíbios de grande importância para os eventos narrados neste primeiro volume. Por outro lado, há entradas que dizem respeito a acontecimentos que só serão vistos com o desenrolar da dupla trilogia. Curiosamente, isso torna parte do texto perigosa para quem não gosta de ter contato com spoilers. Caso você se enquadre neste grupo, faria bem em evitar os termos “Brubraker”, “Brian Brubraker” e “Drallak”. Considere-se avisado.

E é só com o desenrolar da saga que poderemos avaliar se o autor vai dar conta de desenvolver todas as pontas deixadas soltas no capítulo inicial. Ainda há muito o que se responder, como a origem de alguns nomes de personagens, de deuses, de regiões, de conceitos teóricos e até de objetos que são muito próximos a nós para surgirem, sem explicação, em um universo aparentemente tão distante e futurista. Será nesses livros também que veremos se o escritor fluminense vencerá o desafio de cruzar a fronteira dos gêneros da FC e da fantasia, da ciência e da magia, e assim fazer justiça às palavras do veterano escritor Jorge Luiz Calife, que assina o prefácio da obra: “Clinton Davisson consegue uma união perfeita entre a ficção científica hard e a espada e magia. Se fosse a obra de um autor norte-americano ou europeu, Hegemonia – O herdeiro de Bastem já seria uma realização notável. Aqui entre nós, enfrentando as dificuldades que todo autor brasileiro enfrenta, esta obra é quase um milagre a ser celebrado”. A se conferir.

Serviço: O livro custa R$ 42,90 nas livrarias Cultura e Saraiva, tanto nas respectivas lojas de todo o Brasil, quanto on-line. Mas a livraria Antígona on-line ( www.antigonalivraria.com.br )está com preço promocional a R$ 30.

Um trailer do livro pode ser visto em

http://www.youtube.com/watch?v=cZUKEkn9avg

O efeito orégano

Uma brincadeira com bonecos da linha Playmobil acabou inspirando, 30 anos depois, a criação de uma das mais promissoras séries recentes da ficção científica nacional. Em seu DNA, Hegemonia – O herdeiro de Basten, primeiro capítulo de uma série de seis livros, carrega ainda as experiências que seu autor teve ao testemunhar à repressão a movimentos grevistas em sua cidade natal, Volta Redonda, as contradições religiosas que envolviam a família e vizinhos, além de uma enorme variedade de filmes, livros e seriados de TV consumidos ao longo destas décadas. Na entrevista a seguir, concedida a partir do cyberpunk município fluminense de Macaé, onde ele trabalha como jornalista, o escritor compara a ótima recepção de sua última publicação com a do livro anterior, também de FC, Fáfia; dá informações exclusivas sobre o futuro da saga; e ainda explica sua interessante teoria denominada de “efeito orégano”. Com vocês, o xará do físico que comprovou o comportamento de onda dos elétrons, Clinton Davisson.

Apesar de trabalhar cotidianamente com a não-ficção, você já lançou dois livros de ficção científica. Além do Fáfia e do recente Hegemonia, já foram produzidos muitos outros textos literários, como contos ou roteiros?


Sim, na área de literatura, eu já havia escrito um romance aos 14 anos, em 1985, chamado Armadilha espacial. Tenho muitos contos, crônicas que publico no jornal e fiz muito jornalismo literário em Macaé. Já escrevi peças de teatro em Volta Redonda nos anos 80. Eu fazia parte de um grupo da prefeitura da cidade e a gente encenava as peças no meio da rua, na inauguração de praças, etc. Também sou músico, fui vocalista de algumas bandas em Juiz de Fora e compus várias músicas. Ultimamente tenho investido em roteiros e estou trabalhando com um projeto de uma produtora de São Paulo sobre um curta-metragem sobre viagem no tempo. Ao mesmo tempo, por mera coincidência, estou levantando fundos para outro curta, em Macaé, também sobre viagem no tempo.

Em um dos textos de apresentação de seu último livro, informa-se que a idéia por trás da saga já estava embrionariamente na sua imaginação desde os cinco anos de idade. Poderia fazer um resumo desses mais de 30 anos de planejamento, de como foi a evolução da trama até ela começar a incluir conceitos de teoria política, ciências exatas e sociais?

Pois é, começou antes mesmo de aprender a ler, com uma brincadeira de Playmobil com meu irmão. A gente brincava de super-herói, de Guerra nas estrelas, essas coisas. Só que, como ele era o irmão mais novo, eu, como todo bom tirano, não deixava que ele fosse o Han Solo, o Luke, nem o Darth Vader. Como ele também não queria ser a Princesa Leia (risos), eu inventava personagens para ele. Com o tempo, a gente acabou abandonando o Han Solo, o Luke e o Darth Vader, para ficar com os novos personagens. Um deles era o Ron, o protagonista deste primeiro livro. Com certeza Ron nasceu em 1979, como um velho durão, mas também paizão. Muito inspirado no personagem Jock Ewing na telessérie Dallas, também com uma pitada daqueles mestres de filmes de kung fu. Daí os cabelos brancos e o sobrenome Schowlen, que é um anagrama para Shaolin. Como vê, até por causa da minha idade na época, a evolução se deu através de uma linha do imaginário puramente infantil. Por exemplo, quando eu assisti à série Cosmos do Carl Sagan em 1980, eu tinha nove anos e escutei, pela primeira vez, falar da esfera Dyson. Então pensei: “Nossa, isso é muito maior do que a estrela da morte!”. A partir daí, a esfera Dyson entrou na brincadeira. Com o tempo, tudo que eu via, estudava, assistia, lia, escutava, era assimilado pelo universo disoniano. (A razão de ser esfera Dison, e não Dyson no livro, tem uma razão que eu não vou contar). Com o passar dos anos, a história foi amadurecendo e ganhando contornos mais complexos à medida que eu ia absorvendo coisas mais diversificadas. O lado infantil foi dando espaço a algo mais profundo. Mas a idéia de usar ciências sociais, como política, sociologia, teologia e antropologia, na história também veio bem cedo. Meu vizinho, por exemplo, era evangélico e veio uma vez me explicar que meus pais iriam para o inferno porque eram kardecistas e crioulos. Eu tinha sete anos e fui perguntar no centro kardecista sobre o assunto e aí me explicaram que quem ia para o inferno eram os macumbeiros (era como eles se referiam às religiões africanas). Chegou a um ponto em que fui falar com os tais macumbeiros e eles disseram que eram os católicos que iriam para o inferno. Essa discussão está presente neste primeiro livro. Até a questão da política também surgiu na infância, porque cresci em Volta Redonda de frente para a Companhia Siderúrgica Nacional - CSN. Lembro que, com menos de 10 anos de idade, eu assistia a verdadeiras guerras em frente à minha casa, por causa das greves. Em tempos de ditadura, greve na CSN tinha tiroteio, quebradeira, tudo. Meu contato com política começou assim, na prática antes dos livros. Talvez por isso, nunca me deixei iludir com ideologias. Jamais vou escrever um livro fazendo apologia ao capitalismo, anarquismo ou ao comunismo, o que é uma pena, porque dá dinheiro (risos). Desde muito cedo, eu aprendi que o ser humano chegou a um alto nível tecnológico no que se refere às ciências exatas, mas ainda está engatinhando em ciências sociais. E não entendo porque existem tão poucas obras explorando isso. E algumas o fazem de maneira assustadoramente ingênua, criando vilões capitalistas ou comunistas. Ora, pensar em política e nos problemas sociais é a grande pauta do século XXI. Eu hoje vivo em Macaé onde se tem tecnologia para se tirar petróleo de 3 mil metros de profundidade, mas falta água na cidade, temos problemas de saneamento básico, moradia e está na lista das mais violentas do Brasil e, consequentemente, do mundo. Macaé é cyberpunk! (risos)

Em 2000, logo após a publicação de seu livro de estréia, uma versão preliminar de Hegemonia venceu um concurso promovido por uma revista especializada em FC. Qual foi a importância de tal incentivo para a concretização do projeto?

Bom, eu contava as histórias também desde que tinha uns 10 anos para alguns amigos da escola. Mas foi só depois do prêmio que eu percebi que este universo tinha um potencial forte. O conto foi escrito às pressas, cheio de escorregões e, ainda assim, conseguiu se destacar em um concurso em nível nacional. Não me iludi pensando que era um escritor maravilhoso, acho que tenho um longo caminho pela frente, mas eu tive a confirmação de que esse universo tinha potencial para mexer com as outras pessoas e não era apenas uma loucura particular minha e do meu irmão. A partir daí, passei a mostrar trechos e histórias para outras pessoas com mais confiança.

É possível comparar a aceitação de seus dois livros? Como foi o impacto inicial de Fáfia, em 1999, e o de Hegemonia agora? O que mudou entre um ponto e outro em relação à sua experiência como escritor?

A aceitação do Fáfia tem dois lados extremos. De um lado, eu estava numa faculdade federal, e, lá dentro, o Fáfia foi recebido com entusiasmo por alunos e professores. Por quê? Porque é um livro extremamente pessoal que tem um lado metalingüístico forte e perceberam isso lá dentro. Do outro extremo, a casca dele, mistura futebol, ficção científica e muito humor. Era muito leve, muito Sessão da Tarde. Então o aspecto comercial não funcionou. Algumas pessoas vieram me falar que ficção científica brasileira tinha que ser séria, não podia brincar porque carecia de credibilidade. Mas, talvez por isso, tenha tão pouco humor em Hegemonia. Só depois que o Jorge Calife fez uma resenha elogiando o Fáfia há uns três anos, que perdi um pouco o rótulo de “maluco que escreveu um livro doido”. Agora, a reação com o Hegemonia está sendo ótima. É um livro pessoal também? Sim, mas tive o cuidado de embalar em uma casca mais palatável e o tema é muito mais denso. O livro vem ganhando uns fãs entusiasmados, gente querendo logo a continuação, perguntando se não tem camisa para vender, até pessoas dizendo que tem que virar filme. Mas teve também o que eu chamo de “efeito orégano”. Eu explico: uma vez eu trabalhei como cozinheiro em uma cantina de colégio que não tinha fama muito boa. Logo no primeiro dia, fiz pizza e coloquei o orégano dentro da pizza, como via fazer nas melhores pizzarias. Mas a vida é uma caixinha de surpresas, não é que vieram vários alunos reclamar, dizendo que a pizza estava sem orégano? Eu então abria a pizza do cara e pegava com a mão o orégano e mostrava. Com o Hegemonia percebi essa desconfiança. Eu coloquei muitos detalhes sutis e deixei muitas pontas soltas para responder durante a trilogia, porque não tem graça entregar o ouro logo de cara. Mas então teve vários amigos, bem intencionados até, me chamando no canto e dizendo: “Cuidado, você esqueceu de colocar essa explicação no livro!”. Eu pergunto: Por que o J.J. Abrams pode deixar toda a primeira temporada de Lost sem responder “O que a Katie fez?” e eu não posso? Mas existe isso no Brasil, às vezes você tem que abrir o livro e mostrar o orégano para mostrar que sabe cozinhar.

Você tem o rumo de todos os próximos cinco livros traçados em sua mente, ou mesmo esboçados no papel – ou na tela do computador? Sabe em detalhes como vai ser a conclusão de sua dupla trilogia ou ainda há trechos em aberto?

Eu costumo dizer que Hegemonia não é uma história e sim uma doença crônica que eu carrego. Eu sei como tudo termina, tenho até biografia de todos os personagens, o desafio para mim não é a história em si, mas como contá-la. Mas claro que há vários trechos em aberto, caso contrário, tiraria a graça de escrever. A personagem Marla Trillina, por exemplo, nasceu só em 2004 e não estava presente no conto original. E sim, tenho uma pilha de cadernos com rabiscos, alguns com mais de 20 anos, a maioria sobreviventes das minhas tentativas frustradas de começar a escrever a história. No computador eu tenho a cronologia de tudo o que vai acontecer. O meu problema sempre foi não saber por onde iniciar a saga, então eu tive essa idéia: ao invés de começar pelo começo, por uma questão de princípios, eu fiz uma prequel (risos). A primeira trilogia está sendo um prelúdio da história original.

Por falar em duas trilogias, é inevitável a comparação entre sua epopéia e a dos filmes de Guerra nas estrelas. Até o lançamento do primeiro livro leva a isso, já que ele foi apresentado ao público durante um evento dedicado aos fãs da série, a Jedicon, que ocorreu em São Paulo no final de 2007. Os filmes de George Lucas são mesmo sua principal referência no gênero? Que outras obras, cinematográficas, televisivas ou literárias, servem de inspiração para seu trabalho?

Eu falo que George Lucas é meu Flamengo. Aquela paixão de criança que não vai morrer. Eu sou daquela categoria de fãs de Guerras nas estrelas que ama a saga mesmo sabendo de todos os defeitos e também dos muitos acertos de George Lucas. Fui um dos “fundadores” do Jedicon e tive a honra de ser o apresentador do primeiro evento em 1999 em São Paulo. Mas acho que há muito tempo deixei Star wars para escanteio como referência principal. De modo algum menosprezando a série, porque, mesmo a nova trilogia, que tanto gostamos de criticar, tem coisas que acho geniais, que poucos perceberam, como a ascensão de Palpatine ao poder, escancarando as falhas na democracia ou a grande sacada de mostrar Anakin tendo que escolher entre dois lados que mentem e tentam manipulá-lo. Como se ele fosse um eleitor tentando descobrir qual dos partidos é o menos pior. Mas acho que minhas maiores referências hoje são literárias. Comecei a ler bem garoto, todos os dias eu ia pegar livros na biblioteca da cidade. Pegava um do Julio Verne, lia em um dia e entregava no outro para pegar o H.G. Wells, depois do Tolkien, do Alexandre Dumas e assim por diante. Me identifico com o Tolkien pelas biografias que li; temos maluquices semelhantes, manias parecidas como criar mundos, línguas, costumes de seres que você nem sabe se vai usar para alguma coisa. Mas acho que o Frank Herbert é uma influência maior, porque ele provou que se podia fazer ficção científica inteligente e eficiente usando elementos de sociologia e política. Fora dessa esfera de ficção científica, tenho como referência o Dostoievski, adoro a maneira como ele cria personagens maravilhosos. O Herman Melville, o Borges, o Guimarães Rosa, a Clarice Lispector, o Machado de Assis, o Douglas Adams. Dos vivos, sou fã da britânica Sue Townsend, pouco conhecida no Brasil, o Stephen King que é uma espécie de Spielberg da literatura, só vão aceitá-lo como genial depois que morrer porque faz um sucesso exagerado. E, principalmente, o Carlos Heitor Cony, que conheci pessoalmente numa aventura entre Rio e Juiz de Fora e que, para mim, é o maior escritor brasileiro vivo. Seu livro de estréia, O ventre, sobre a bizarra história sobre o relacionamento entre dois irmãos e a paixão de ambos pela mesma mulher, narrado em primeira pessoa, é para mim, a maior influência direta a este primeiro Hegemonia.

Como foi o contato inicial com a editora que publicou Hegemonia – O herdeiro de Basten? A vendagem deste primeiro capítulo de sua saga já lhe garantiu o contrato para os próximos lançamentos?

Fiquei sabendo através de uma lista da discussão que a Arte & Cultura estava pretendendo lançar um livro de ficção científica e estava aceitando originais. Mandei três capítulos e fui aprovado uma semana depois. A partir daí, foi uma suadeira para terminar em oito meses o que eu não conseguia concluir há sete anos. Sobre a continuação, sim, as vendas estão boas e eu tenho a sorte de ter, no meu editor, um verdadeiro fã que acredita no sucesso do livro já faz planos para lançar no exterior, fazer HQ e até videogame. Só acho que, por isso mesmo, eu tenho que suar muito, a exemplo do que o André Vianco, por exemplo, fez: correr mesmo atrás do leitor, ir a eventos, livrarias, para que a continuação seja publicada como bom negócio para a editora e não como um risco. Mas, ao que tudo indica, devo publicar a continuação em 2009. A propósito, deixa eu dar um furo de reportagem para você, o segundo livro já tem nome: Hegemonia – Os anéis de fogo. Quem leu o primeiro, já sabe que anéis são esses...

Além de jornalista, você é cartunista. O universo que você criou é muito visual, com naves gigantescas, planetas exóticos e aliens multiformes. Já pensou em adaptar a história para os quadrinhos?

Na verdade, nos quadrinhos que eu faço, Os invasores, há uma participação dos frânios, a raça de insetos da Hegemonia em uma versão bem humorada. Assim como no livro, eles são divididos em duas sub-raças, as mabéias, as baratinhas marrons e os slystacs, verdes. A inspiração veio do tempo em que eu trabalhei na Petrobras onde há essa diferença de classes, os concursados, de crachá verde e os terceirizados, de crachá marrom. Mas, como eu disse, já existe esse projeto da editora de levar o primeiro livro para os quadrinhos. Tive várias conversas sobre o assunto com o Osmarco Valladão, criador da capa do livro, mas queríamos fazer algo com a qualidade comparável a da capa. Para isso, precisaria de, pelo menos, um ano trabalhando intensamente e exclusivamente. Não sei se isso é viável no Brasil.

Seu nome é o mesmo do de um físico americano ganhador do prêmio Nobel nos anos 30. Partindo do pressuposto que isso não é uma coincidência, qual foi a importância desta ciência na sua formação intelectual e qual a sua intimidade com o assunto, já que neste seu livro surgem vários conceitos teóricos próprios da física, como as propriedades de estruturas giga e nanométricas ou ainda a conversão de matéria em energia?

Meu pai é formado em física e dá aulas até hoje em Juiz de Fora. Daí veio esse nome esquisito que eu rejeitei desde pequeno, tanto que “criei” um apelido para mim. Todo mundo da família e os amigos próximos me chamam de “Tato”. Quando eu jogava futebol, estava escrito “Tato” nas minhas costas e não Clinton Davisson que, para mim, é quase um nome artístico. Mas eu herdei do meu pai a paixão pela física e astronomia. Ele tem, até hoje, uma pilha de enciclopédias de ciências; antes de aprender a ler, eu folheava aquelas fotos de foguetes, planetas e achava o máximo. Meu pai também adora ficção científica, só que muito mais para o lado de Star trek. Da minha mãe herdei o amor pela literatura, ela me fez ler o meu primeiro autor nacional, o Luiz Fernando Veríssimo, que é fera. Aliás, sempre me incomodou essa separação entre literatura e ficção científica. Vejo certos autores que se esmeram em conceitos científicos e esquecem de criar personagens que vão além de um cientista que está ali para vomitar conceitos. Se meu pai e minha mãe puderam se casar, a ficção científica também pode casar com a literatura, não é? (risos)

Fora a conclusão da saga da Hegemonia, você tem planos para trabalhar com a FC em outros projetos?

Em ficção científica tenho apenas estes curtas que devem ficar prontos até o fim do ano e o meu projeto de mestrado que envolve ficção científica no cinema dos anos 80. Depois da terceira parte do Hegemonia, vou dar um tempo na FC e engatar um romance que venho rascunhando há um tempo que se chama O moinho de vento sobre a juventude dos anos 80, um projeto bem pessoal e que não vai ter nada de ciência, ou sobrenatural. Os primeiros rascunhos ficaram parecendo uma versão abrasileirada do The body do Stephen King, que deu origem ao filme Conta comigo, por isso achei que precisava amadurecer um pouco antes de retomar. A longo prazo, tenho um projeto de romance histórico sobre a Guerra do Paraguai, também com nada de ficção científica.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Não verás mundo nenhum

A pintura é simples e direta, feito um quadro primitivista. Pinceladas fortes, rápidas e irregulares registraram, sempre em marrom, a silhueta de estruturas cilíndricas que podem ser conjuntos habitacionais padronizados, chaminés industriais ou torres de comunicação. A impressão geral é de tédio e de imutabilidade. O espectro da cor única é, no conjunto, desagradável. Começa com tons claros, semelhantes aos da terra seca e sem vida; passa por uma tonalidade pouco mais escura, que lembra a cor de excrementos; com algo de vermelho, parece ser o marrom de uma casca de ferida em processo de cicatrização; tendendo ao preto, aparenta ser a crosta de matéria em putrefação. O quadro, pintado por Ivan Hegenberg, artista plástico formado pela USP, acabou servindo de capa para o romance de estréia dele próprio, lançado no final de 2007: Será, uma estranha e niilista ficção científica nacional.

Distopias são um dos temas mais recorrentes na tradição da FC mundial e renderam algumas das melhores obras do gênero em diversas mídias. Historicamente, a palavra parece ter sido empregada pela primeira vez, com seu sentido literal de lugar mau - e em oposição à utopia, o lugar nenhum-, pelo filósofo e economista inglês John Stuart Mill, em um discurso no Parlamento Britânico, no ano de 1868. Estamos às vésperas do aniversário de 140 anos de sua criação, portanto. Quando o mundo das artes se apropriou do termo, em reação aos sonhos de futuros idealizados, tecnologicamente avançados e socialmente justos, começaram a ser produzidos livros como 1984, de George Orwell; quadrinhos do nível de V de vingança, de Alan Moore e David Lloyd; e um sem-número de filmes que se passam em tempos pós-apocalípticos como a trilogia Matrix dos irmãos Wachowski. Todas obras marcadas pelo autoritarismo dos governantes, humanos ou não, ou por grandes catástrofes globais, sejam causadas pelo homem, sejam naturais. O paulistano, com seu segundo livro - o primeiro foi uma coletânea de contos, A grande incógnita, publicada em 2005 pela editora Annablume -, pode ser incluído nesta lista de autores desesperançados com os dias que virão.

No início de Será - para ser exato, em seus dois primeiros capítulos, “História do mundo” e “Água” - o cenário geral é traçado. Apesar do longo histórico internacional deste subgênero, tais trechos da obra do iniciante lembram mesmo a mais famosa e bem sucedida distopia já produzida no Brasil, escrita por um veterano conterrâneo dele, em 1981. Não verás país nenhum, livro mais conhecido de Ignácio de Loyola Brandão, antecipou há mais de 25 anos muitas das preocupações ambientais que vivemos nesta primeira década do século XXI. Será também mostra a tentativa de sobrevivência de personagens que vivem as consequências do abuso dos recursos naturais do planeta.

A maior diferença é que, na obra da década de 80, a narrativa ficava circunscrita ao Brasil, mais que isso, a São Paulo, e tinha um protagonista claro, Souza; no livro lançado em 2007, a abrangência é mundial e há uma profusão de personagens sem uma hierarquia clara entre eles na ordem das coisas. Datas não são definidas com muita precisão ao longo do texto, mas uma brincadeira quase oculta nas últimas páginas faz supor que estejamos por volta do ano de 2348. A população mundial praticamente triplicou em relação à de nossos dias, são 15 bilhões de pessoas disputando o mesmo espaço. Se número já assusta, ele poderia ser ainda maior, se não houvesse ocorrido cerca de 6 bilhões de mortes por doenças virais, um século antes dos eventos narrados no livro.

Para respirar, a solução foi retirar oxigênio diretamente dos oceanos, o que faz um dos personagens se perguntar se é o consumo desse “ar para peixes” que os faz se sentirem tão “desadaptados”. É uma boa questão, pois o clima de apatia é dominante neste futuro amarronzado, em que as necessidades mínimas de todas as pessoas, de moradia à alimentação, são atendidas em pé de igualdade. Se no livro de Brandão havia um poder por trás de tudo, o Esquema, aqui há o Sistema, uma forma de democracia direta mediada por softwares. Tudo é motivo para consultas plebiscitárias à população adulta para que os sistemas de inteligência artificial - que são sempre citados, mas não exercem uma presença física nas páginas do livro - tomem as providências executivas.

Novamente a exemplo de Não verás país nenhum, a água potável se tornou um artigo raro. Se no primeiro livro, eram os civiltares que exerciam um controle coercitivo da população, em Será existe uma milícia chamada Comando Água para fazer o serviço sujo. Aparentemente, os programas governantes imaginados pelo brasileiro seguem a famosa legislação proposta por Isaac Asimov que os proíbe de matar pessoas. Isso não os impede de tentar fazer passar uma lei para promover a esterilização em massa da humanidade e ainda permitir que os agentes do tal comando executem todos aqueles considerados inaptos para continuar a viver.

Sim, essa é a impressão gerada pelas primeiras 40 das 240 páginas totais de Será, com o dilema de Ganton e William, dois velhos amigos separados pelas escolhas que fizeram. Um a de servir indiretamente ao Sistema, matando sem culpa os indivíduos mais fracos, os que de certa forma desistiram de resistir, para garantir a existência da coletividade. O outro, um integrante da Sobrevivência Unida, tem como norte moral a certeza de que a humanidade deveria sucumbir junta, de que “morrer com suprema beleza é bem mais digno do que matar com avidez”. Mas a aparência é falsa, pois no restante do livro - a cada capítulo primeiro; a cada página em certos momentos; a cada páragrafo em certos casos -, as sensações, os climas, os estilos, os ritmos vão se alterando, se confundindo, se mesclando, apesar de seguirem aquele esboço inicial. É como se o leitor fosse convidado a acompanhar a feitura de um quadro momento a momento: a confusão de pinceladas e raspagens aparentemente caóticas que acabam dando origem a uma pintura figurativa, ainda que expressionista.

Para exemplificar tal alternância estilística, podemos seguir o sumário dos capítulos. “Dia qualquer”, o terceiro, tem um quê de absurdo à Kafka; já a personagem principal de “Passagem”, o seguinte, a garota Seda, lembra as crianças superdotadas de Orson Scott Card, autor de livros de FC como o Jogo do Esterminador. É no quinto, “Zeitgeist”, que a coisa se complica ainda mais. Hegenberg se utiliza de outra modificação que introduziu em seu mundo ficcional - através de métodos não explicados, a humanidade desenvolveu e difundiu um certo nível de telepatia - para de fato passar aos leitores o espírito da época daquele cenário. Helmut, um homem centenário, se utiliza de seus dons para bancar o voyeur telepático. O resultado é uma colagem de curtas sequências de pessoas vivendo suas vidas, praticando sexo casual, casamentos sendo desfeitos, resumos de sonhos, trechos de aulas, conversa de mãe pra filho... Uma autêntica cacofonia em meia centena de páginas.

Possivelmente, uma pista das intenções do autor pode ser encontrada no sexto capítulo, “O Supremo Esteta”. Logo de início, aquelas páginas se destacam por apresentar uma editoração diferenciada, com as letras em negrito. O motivo por trás de tal recurso só fica claro ao final do curto capítulo, que se revela uma montagem intertextual pós-moderna do escritor. Além da forma, o que “O Suprem Esteta” tem a oferecer em termos de conteúdo é uma especulação sobre a principal visão religiosa do futuro de Será, o Esteticismo-maior. Dois terços da população do planeta parecem ter substituído do panteão universal os deuses com uma visão moralista de mundo, com a divisão entre certo e errado, bom e mau, por uma noção baseada na estética acima de tudo, tanto nas relações naturais, quanto nas ações humanas.

Não parece tanto que o objetivo do novo romancista seja o de propriamente lançar as bases de uma nova religião. Mas aparenta ser uma declaração de princípios de uma autor em relação à sua forma de expressão e, quem sabe?, com a vida. O fato é que, apesar de tantas outras leituras possíveis, é difícil ler aquelas páginas, ou mesmo evocar em termos literários a expressão supremo esteta, e não pensar em um dos maiores defensores da arte pela arte. Em um dos prefácios mais conhecidos de todos os tempos, aquele que Oscar Wilde redigiu para O retrato de Dorian Gray, ficou resgistrado:

“A vida moral do homem forma parte do argumento e do material do artista. Mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um instrumento imperfeito. Nenhum artista pretende provar o que quer que seja. A própria verdade não pode ser provada.

Artista algum tem preferências éticas. Uma preferência moral, em um artista, é imperdoável maneirismo de estilo

Não há artista doentio. O artista pode exprimir tudo”.

Essas palavras escritas no século XIX poderiam bem resumir o manifesto do Esteticismo-maior se for feita uma leitura puramente estética da obra, levando-se em conta que o artista é o deus de seu mundo criativo. Escolhas estéticas em detrimentos dos julgamentos morais parecem ser um dos pontos fortes de Será. Nas páginas seguintes, na segunda metade do livro, o efeito permanece e até se amplia. A sucessão interminável de personagens e de situações parece seguir tais critérios, segundo a vontade do criador, sem se submeter a um roteiro linear, um destino traçado e coerente. Em “Explorações”, um dos melhores capítulos do livro, por exemplo, a narrativa se divide em três momentos para contar simultaneamente a visita de um filósofo ao show de um comediante, os bastidores de um filme pornográfico e, em uma rara concessão a temas mais típicos da FC, um empreendimento científico ousado: um grupo de pesquisadores é encolhido a nível microscópico para desbravar o interior de uma célula.

O livro lançado pela editora Ragnarok, da qual Ivan Hegenberg é um dos sócios, é em boa parte a fusão dos autores que mais reconhecidamente o influenciaram, uma criatura com o esqueleto de Friedrich Nietzsche e as carnes de Clarice Lispector. A obra acaba servindo para coletar uma série de relexões filosóficas do escritor a respeito de diversos aspectos da vida. Em alguns casos, as falas e pensamentos dos personagens chegam a soar algo ingênuo, como nas críticas constantes feitas ao capitalismo - que fariam o já citado John Stuart Mill dar boas risadas liberais. Porém, em certos pontos, o livro consegue um efeito bastante interessante, ainda mais levando-se em conta que ele foi escrito por um autor tão jovem - o paulistano nasceu em 1980. Quase sempre o resultado é bastante incômodo, o que faz voltar a lembrar daquele prefácio de Wilde: "Não existe livro moral nem imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo”. E Será, com sua narrativa sobre tédio e imutabilidade, sobre a terra seca e sem vida, sobre feridas que podem cicatrizar e outras que já apodreceram, é um livro bem escrito.

Serviço: O livro custa R$ 30 e se encontra à venda pelos sites da Livraria Cultura (www.livrariacultura.com), Devir (www.devir.net.com) e em outros endereços listados no blog do autor: www.ivanhegenberg.blogspost.com