quarta-feira, 28 de outubro de 2009

As mortes serão breves

Durante 170 anos Gao Jung esteve morto. Para desespero dele, tal período de hibernação involuntária, entre 2070 e 2240, deve ser sua experiência mais próxima daquilo que hoje em dia ainda chamamos de descanso eterno, pois, na nova realidade em que passou a viver, o rapaz está condenado a ser imortal. No máximo, ao ser abatido, Jung vai conseguir breves pausas nas missões que seus novos patrões lhe impuserem para, logo em seguida, ser despertado mais uma vez, com as memórias reimplantadas em um novo corpo, clonado e adaptado para melhor servir a interesses que não são os dele. “Se a morte é temporária, qual é o sentido da vida?” A pergunta é o mote por trás da minissérie Eterno Retorno, a primeira inclusão do universo ficcional do videogame on line Taikodom na área dos quadrinhos. História dividida em cinco capítulos e em dois volumes – o primeiro, lançado este mês nas livrarias, reúne os dois episódios iniciais; para novembro está programado o lançamento dos outros três no segundo e último álbum da série – a aventura assinada pelo roteirista Roctavio de Castro e pelo desenhista Eduardo Ferrara marca o primeiro aniversário da abertura do jogo ao público, fato que se deu no dia 27 de outubro de 2008. Além disso, é mais uma fronteira desbravada pelo projeto que conta com dois livros lançados, um romance e uma coletânea de contos, o primeiro deles já resenhado aqui.

Game, romance, contos e quadrinhos são diversas entradas para o mesmo universo, um futuro altamente tecnológico no qual a humanidade dominou o espaço – significado do termo Taikodom – mas perdeu o contato com o planeta Terra. A base do projeto é a capital catarinense, onde está localizada a Hoplon Infotainment, que desenvolve o jogo com uma equipe de aproximadamente 100 profissionais e logo deve exportá-lo, graças a uma parceria com uma empresa californiana, para mais de 30 países. Quanto ao universo ficcional expandido para além da tela dos computadores, ele é criado em conjunto com escritores e artistas de diversos estados – Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro – em outra parceria, com a editora Devir, que distribui os livros e revistas para todo o Brasil e logo deve fazer o mesmo em outros territórios. Eterno Retorno é um exemplo dessa interação à distância, uma vez que Roctavio de Castro mora há 12 anos em Florianópolis, de onde escreveu o texto da série, e Eduardo Ferrara mantém seu estúdio em São Paulo, e de lá desenhou e arte-finalizou a HQ, repassando as cores para os cuidados de sua equipe do Imaginos.

O roteiro se divide para acompanhar o protagonista em dois momentos, suas memórias de um passado terrestre no século XXI e o impacto da ressurreição dele no espaço em pleno século XXIII. O trabalho se vale da alteração dos focos narrativos e fartas elipses. Nos flashes de 2070, Gao Jung trabalha com uma parceira, bem íntima, para reaver objetos cobiçados por um grupo criminoso. Aos poucos, com vislumbres pingados ao longo das páginas, podemos perceber que as coisas se complicaram para a dupla e que o policial é acusado da morte da companheira, julgado, condenado e posto em hibernação. Depois do salto cronológico, ele é considerado útil para os interesses da casta que manda no Taikodom, os Spacers. Ao ser descongelado, ganha uma companhia indesejada. Sua mente passa a compartilhar pensamentos com uma inteligência artificial geniosa que orienta o terráqueo naquele novo mundo e faz o arquivamento de suas memórias para possibilitar o reimplante, caso o corpo do hospedeiro seja destruído. Vale comentar que essa consciência inorgânica, chamada OTTOBA7, ganha vida no Twitter com um perfil alimentado por seu criador no qual faz postagens sobre temas como o pós-humanismo e a singularidade tecnológica.

Já os dinâmicos desenhos da minissérie seguem uma proposta estética bem diferente dos gráficos do jogo, apesar de a identidade visual das várias naves espaciais estar bem preservada e os cenários hi tech apresentados serem muito convincentes. O visual dos personagens da HQ não foi trabalhado nos formatos tridimensionais de um game, mas como algo bem mais voltado para o estilo cartunesco, quase um meio termo entre o que se poderia esperar de uma obra para leitores adultos, como anunciado na capa, e gibis feitos para crianças. Com isso, mesmo em momentos de dramaticidade, o traço às vezes lembra bastante material mais voltado ao humor. A explicação pode estar nas influências reconhecidas pelo desenhista, que lista como tal os mangás e a produção italiana de quadrinhos Disney. De fato, a arte me lembrou bastante a da revista Donald Super, versão nacional que a editora Abril lançou por aqui em 2003 da PK italiana: uma publicação que mostrava o famoso pato vivendo aventuras de ação e FC. Mesmo bem sucedida no país europeu, a proposta não fez muito sucesso no Brasil.

O resultado desse esforço interestadual dos autores é a resposta para aquela pergunta filosófica que começa a ser esboçada no primeiro álbum. “Se a morte é temporária, qual é o sentido da vida?” Não apenas pelos rumos da história, mas por várias citações, algumas bem explícitas, outras menos, essa ideia e a da reiteração do conceito por trás do título da série estão espalhadas por toda a parte. Seja no trecho de um dos livros mais conhecidos de Friedrich Nietezsche escolhido para abrir o primeiro episódio; seja no título do segundo, “Sísifo”, remetendo ao mortal condenado pelos deuses gregos a repetir uma tarefa sem sentido eternamente; ou ainda no logotipo da revista que entrelaça as últimas letras das palavras eterno retorno para obter o símbolo matemático do infinito. No próximo mês, deveremos ver mais respostas para a pergunta que tanto atormenta Gao Jung.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Uma fábula sobre o medo

O ambiente é marcado por um clima instável, com enchentes, pequenas nevadas, ciclones e grandes variações na temperatura. No campo político, um novo governo pratica uma espécie de ditadura não assumida, mantendo a ordem através de altos impostos e de uma força policial fortemente armada que atua de maneira brutal. Nesse contexto, um grupo de jovens – escondendo seu rosto atrás de máscaras e atuando sob o mesmo nome – descontentes com a situação do ambiente à sua volta, planeja pequenos atos de desobediência civil. Ainda que atuando de forma pacífica, em um destes atos algo acontece de forma imprevista, causando a explosão de uma bomba. Enquanto tentam provar sua inocência e justificar suas ações, o fim parece estar cada vez mais próximo.


A descrição acima foi feita pelo próprio autor e se refere à sua cidade natal, Florianópolis, em um futuro próximo, no qual se passa seu projeto de história em quadrinhos. Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo é o nome deste projeto, de autoria de Pedro Franz, 26 anos. Programada como uma série em 12 capítulos, com tamanho variando entre 12 e 16 páginas cada um, a HQ havia sido publicamente anunciada no dia 12 de abril deste ano, quando o quadrinista inaugurou o blog Notas sobre o fim por onde ele pretende publicar o material na íntegra, deixando-o disponível para download gratuito em arquivos em .pdf. O primeiro deles, surgiu no início de julho e o segundo no final de setembro. Além disso, ele abriu um fórum para discutir a obra e suas influências com sua audiência: “O objetivo deste espaço é aprofundar uma investigação que relacione teoria e prática e funcionar como ferramenta de relação entre autor e público” escreveu no blog. “Além de utilizá-lo para apresentar o projeto – ou seja, a história em quadrinhos – pretendo postar textos sobre a produção da obra, imagens, esboços, novidades, autores que me influenciaram.”

A série atual não é a primeira experiência de Franz com os quadrinhos. Entre 2002 e 2003 ele produziu duas edições de um zine chamado Café com Leite, mas como me disse em uma conversa num bar da cidade onde se passa sua história atual, não era algo sério ou pretensioso. Naquela mesma época, também foi convidado a participar de uma mostra de quadrinhos ligada ao Salão de Humor de Piracicaba, mas com proposta diferente daquela ligada ao título do famoso evento do interior de São Paulo: os trabalhos expostos não eram humorísticos. Então veio uma pausa nessa breve relação com o meio. Em um intervalo de meia década, ele morou por dois anos na capital da Argentina; recobrou o interesse pelas historietas; descobriu publicações daquele país, como a Fierro; e quando retornou ao Brasil e a seu curso acadêmico, na UFSC, apresentou como trabalho de conclusão do curso de design uma monografia ligada ao tema. “A quarta dimensão do trabalho de Breccia” acabou sendo agraciado, agora em 2009, com o troféu HQ Mix – mais importante prêmio dedicado ao quadrinho nacional. Nesse TCC, Franz procurou fazer a ponte entre HQs, design e arte ao analisar a obra do uruguaio Alberto Breccia (1919-93), o artista que mais admira neste meio. Outros autores que ele cita como possíveis influências são o argentino José Muñoz e o japonês Taiyo Matsumoto.

Com esse retorno, Franz começou a processar as ideias que dariam origem à Promessas... vamos abreviar aqui o título quilométrico. Aliás, o gosto por longos títulos parece ser uma característica do autor, que também cursou Artes Plásticas, pois um outro projeto de HQ, paralelo, leva o nome de Uma casa construída com cascas de ovos. Apesar de ter mais páginas concluídas que o atual, o próprio quadrinista reconhece que esse ainda vai demorar mais a aparecer. “Mas é um trabalho bonito, eu acho.” Retornemos às promessas e ao fim do mundo. Vamos falar das páginas, as originais, que o autor trouxe para mostrar naquele bar, na rua que leva o nome do pintor Victor Meirelles (1832-1903), antes do anúncio do prêmio HQ Mix deste ano. A primeira surpresa possível, em se tratando de alguém que escolheu o meio digital para divulgar sua obra, é o método de trabalho do autor. Franz optou por utilizar a forma mais tradicional para produzir sua HQ: nanquim, pincel e papel.

As folhas A2 que ele exibe sobre a mesa na noite mais gelada do ano em Florianópolis foram ilustradas exatamente como fariam os quadrinistas que o inspiraram, em um mundo anterior ao das webcomics. Franz esboça a lápis e depois cobre os desenhos com a tinta negra, criando contrastes, dando a ilusão de volume, áreas de luz e sombras. Ele prevê na arte os espaços para os balões, com a fala dos personagens, e mesmo o letreiramento é feito à mão, e inserido mais tarde quando entram em ação os softwares. O InDesign ajuda no momento da diagramação. Já o Photoshop corrige a perda de contraste que às vezes ocorre com o escaneamento das imagens e é usado para aplicar o cinza, tomando o lugar das antigas retículas, material que não é tão fácil para ser encontrado pelos quadrinistas do século XXI quanto era pelos profissionais do século anterior. O processo é lento, como não poderia deixar de ser. Já houve momentos em que ele, que procura trabalhar na série todos os dias, passou duas horas dedicado a um único quadrinho.

Tudo é feito do modo mais tradicional possível até porque Promessas... foi pensada, planejada e está sendo executada como uma obra a ser impressa, publicada de modo clássico. “A Internet surge por necessidade”, ele comenta, apesar de que, com o tempo, essa mídia tenha revelado novas possibilidades a serem exploradas. Até por sugestão de um editor com quem conversou, o catarinense concordou que o melhor modo de tornar seu trabalho conhecido era a divulgação pela rede. Se existe algum lugar em que um autor iniciante pode contar com uma edição impressa de seu primeiro trabalho de fôlego, com aproximadamente 200 páginas, este não é o Brasil. Então, o catarinense escolheu esta forma para divulgar e distribuir por partes sua série, tendo a consciência de que vivemos uma nova realidade, com licença livre, ou seja, adotando o esquema copyleft. Já há um site que, no lugar de fazer um link ao blog de Franz, criou novo arquivo e deixou disponível o primeiro capítulo em seu próprio domínio, uma espécie de pirataria consentida. “Tu perde o controle daquilo”, reconhece. “Quero que pirateiem muito mais, que imprimam, xeroquem”.

Ele calcula que nas primeiras semanas de exposição do primeiro capítulo, uma média de 20 pessoas baixou o arquivo diariamente. Esta acabou se revelando uma possibilidade de democratizar o acesso à obra, ainda que a leitura no computador não seja a ideal. Afinal, ao contrário de outras mídias, como a música, em que, em última análise, não há perda na transposição para um meio digital, os quadrinhos clássicos ainda contam como um bastião do paradigma de Walter Benjamim: as páginas ainda conservam uma certa “aura” e assim vai ser, até o momento em que se encontre o modo de garantir a reprodutilibilidade técnica perfeita na tela de um leitor eletrônico portátil. Até lá, o papel e as HQs ainda vão manter seu casamento secular. Para facilitar essa materialização futura, Promessas... foi composta em preto e branco e sua dúzia de capítulos podem ser agrupados em três álbuns.

Uma amostra do que os leitores podem esperar já está disponível na rede. Pedro Franz diz que pensou em um conceito-chave para elaborar esta sua obra: o “medo”. Isso está presente desde o primeiro post naquele seu blog, quando ele esboçou o que viria a ser a série:

Autotomia é o nome dado à capacidade que alguns animais possuem de se auto-mutilar em situações de perigo como estratégia de sobrevivência. Deixar algo morrer para preservar a vida. Diante da necessidade de enfrentar um perigo, lutar ou fugir, funciona como um mecanismo de defesa para se sobreviver. Partindo destes conceitos, Promessas de amor a desconhecidos enquanto espero o fim do mundo é uma fábula sobre o “medo” funcionando como crítica à moral burguesa e à intolerância contada em formato de Peter Pan pós-moderno.


Assim como a Internet surgiu para facilitar e difundir – e está servindo para promover um rico debate sobre os quadrinhos contemporâneos na seção de comentários do blog – a ambientação futurista veio para dar mais liberdade ao autor. A característica típica de ficção científica é para permitir ao artista falar do presente usando o subterfúgio de se referir ao futuro. Ele mesmo escreveu que, em um primeiro momento, pensou em criar cenários mais elaborados, com pontes destruídas, a Ilha isolada, novas formas de governo e de autoritarismo naquele ambiente ficcional. Mas preferiu apenas potencializar o que já vê nos dias de hoje de modo a analisar as ações e reações provocadas por aquele sentimento – o medo – como ele é capaz de mover as pessoas e o que pode gerar em resposta. Um modo, com algum afastamento brechtiano, de estudar temas como terrorismo, pirataria, repressão política e policial em um cenário ao mesmo tempo conhecido e estranho, particular e universal.

Ainda é cedo para falar sobre Promessas... como uma obra integral e se ela vai ser capaz de amarrar todos os instigantes pontos que se propõe a abordar. Os primeiros capítulos, que estão disponíveis para todos lerem e julgarem, abrem com uma abordagem bem intimista, como um painel das impressões coletivas dos diversos personagens, vários pontos de vista compondo um plano geral. A arte me lembrou, de fato, o trabalho de um dos quadrinistas relacionados pelo autor, Taiyo Matsumoto: o mangá underground Preto e Branco, publicado no Brasil pela Conrad. Mas me lembrou bem mais, na construção dos personagens, o brasileiro Lourenço Mutarelli que, pelo menos conscientemente, não faz parte daquela lista já citada por Franz. Quanto aos conceitos, em um primeiro momento me fez pensar mais em material anglo-saxão que em obras latino-americanas: como DMZ – também conhecida como ZDM, de zona desmilitarizada, no Brasil – do americano Brian Wood, e Invisíveis, a série mais autoral do britânico Grant Morrison. Vou aguardar os próximos 10 capítulos da obra deste já premiado autor para ver como se desenvolve este futuro alternativo e distópico de Florianópolis.