sábado, 2 de maio de 2009

Sobrevivência nas selvas

Quando anunciei em meu blog a publicação de um novo romance de Carlos Orsi disse que aquela seria uma ótima e uma má notícia para quem lê ficção científica no Brasil. Eu estava especulando ainda, pois havia acabado de receber o email do autor avisando que ele utilizara o Scribd para divulgar o e-book Nômade – Uma narrativa da grande viagem. Mas era uma especulação com base sólida, pois esse jornalista paulista, de Jundiaí, é o escritor de ficção fantástica nacional do qual mais li textos com a particularidade de que gostei de todos. Já havia resenhado um livro dele e o entrevistado, aqui mesmo, para o Overmundo e publiquei três contos de sua autoria naquele meu já citado blog entre os 60 textos disponíveis lá de várias vertentes da literatura de gênero: ficção científica, fantasia, horror, policial, detetive, história alternativa, ficção alternativa, contos filosóficos. Era grande a probabilidade de eu gostar deste novo romance, portanto.

E eu não me enganei. Li o e-book de 106 páginas no mesmo dia, naquela véspera de feriado. Já sabia que era uma história focada num tema clássico da FC: a idéia de uma nave geracional, ou seja, uma espaçonave preparada para atravessar uma distância tão longa que o percurso consumiria o espaço de gerações de seus tripulantes. Segundo os pesquisadores do gênero, o primeiro a pensar no assunto não foi um ficcionista, mas o ensaísta russo Konstantin Tsiolkovsky, em 1926. Nos mais de 80 anos que se passaram, muitos escritores aproveitaram o conceito, destaco Tau Zero do americano Poul Anderson, publicado na forma de livro em 1970, com a trágica história dos tripulantes de Leonora Christine. No caso do ebook nacional, a nave leva o mesmo nome da obra, Nômade, e a grande viagem leva pouco mais de 200 anos para percorrer a distância que vai levar sua tripulação da Terra a seu novo lar.

Uma outra diferença das duas obras, é que o livro americano é uma referência no estilo hard, o tipo de FC que segue mais minuciosamente ciência e tecnologia plausíveis, extrapolando dentro de limites mais, neste contexto, realistas. Apesar de Carlos Orsi ser reconhecidamente um dos três brasileiros de maior destaque neste mesmo estilo, para seu romance ele enfatizou uma outra abordagem, Nômade é uma legítima obra voltada para o público juvenil. E isso é ótimo, a FC às vezes sofre tanto com o estigma de ser uma literatura inferior que muitos autores tentam dar tamanha densidade a seus textos, evocar tal sorte de experimentalismos formais que o prazer da leitura, o arrebatamento do sense of wonder acaba sendo sacrificado. Para uma profunda discussão sobre a vocação juvenil do gênero, recomendo este blog feito a quatro mãos.

E o ebook nacional consegue o feito de sustentar o senso de maravilhamento sem deixar de lado a apuração técnica típica do autor, jornalista especializado em divulgação científica. Provando que escrever para adolescentes não é e nunca foi sinônimo de textos mal pesquisados e implausíveis, muito menos de tratados didáticos sem sabor, o jundiaiense encontrou um equilíbrio excelente para sua narrativa. Nem os detalhes relacionados a sobrevivência na selva, ambientes de gravidade zero ou sobre efeitos de ótica, nem o ritmo de aventura, ganchos narrativos entre os capítulos e a construção de personagens foram desprezados. O autor deu tanta atenção ao lado científico quanto ao juvenil de sua ficção e se saiu muito bem em ambos.

Apesar das poucas páginas, nós, leitores, passamos por uma impressionante variedade de ambientações neste breve romance. Tudo começa com uma selva aparentemente normal, onde se encontram os principais personagens do livro, um grupo de adolescentes com idade aproximada de 15 anos. Logo percebemos que aquele é um cenário artificial, construído no interior da tal nave com o objetivo de treinar a ala jovem da tripulação, em uma espécie de acampamento, para enfrentar qualquer eventualidade no novo planeta para onde são transportados. Não demora para uma série de incidentes, gradativamente mais perigosos, deixar claro que algo de errado acontece no mundo tecnológico que envolve aquele pequeno oásis artificial. O casal de protagonistas, Peleu e Helena, são escalados para tentar descobrir o que está havendo, o porquê de eles não conseguirem mais se comunicar com os adultos ou mesmo com Nestor, a inteligência artificial que comanda a nave Nômade.

A trama de Orsi segue esse caminho clássico, com os dois jovens enfrentando várias dificuldades; demonstrando que o conhecimento de um, completa o do outro; e o consequente amadurecimento que essa jornada provoca em ambos. Assim como a própria temática da nave geracional, o escritor trabalha com elementos bastante conhecidos ao longo das páginas, mas mesmo assim consegue tirar o melhor da história que está contando. Talvez ele pudesse ter elaborado um tanto mais o clímax do livro, que tem uma resolução simples e não tão satisfatória ou plausível quanto todo o restante do desenvolvimento da aventura, mesmo assim, é um belo livro. Faz pensar nas possibilidades que teria se chegasse a um grande público que começa a descobrir o gosto pela leitura e outras formas de adaptar seu roteiro para mídias como quadrinhos, jogos ou animações.

Então, dito tudo isso, se o livro é tão bom ou ainda melhor que o esperado, por que haveria um lado mau na notícia de sua publicação, ainda mais da forma que se deu, de graça, à disposição de todos os interessados? Parte da resposta está na pergunta. Mas a resposta inteira está no posfácio que o próprio autor escreveu “Nota à edição free ebook – ou, por que este livro está aqui”. No pósfácio-nota-desabafo, Carlos Orsi faz uma narrativa tão cheia de desventuras quanto a outra, a da parte fictícia do livro. Mesmo sem citar nomes das pessoas e empresas envolvidas (e eu opto aqui por não especular, até para evitar a fulanização de um debate que deve mesmo ser mais abrangente), ele demonstra que a sobrevivência na selva ou no espaço pode ser mais simples que no mercado editorial brasileiro. Reproduzo o texto abaixo, na íntegra, desejando que algum dia esta realidade pouco hospitaleira mude.

Nota à edição free ebook – ou, por que este livro está aqui

Nômade tem uma história engraçada: o livro nasceu de uma encomenda estilo “contrato de risco” de uma importante editora do ramo de livros juvenis. Basicamente, perguntaram-me se eu topava escrever um romance para jovens sem compromisso, submeter a eles e, se gostassem, o livro saía.

Resumindo: escrevi. Submeti. Gostaram mais ou menos. Reescrevi. Gostaram pra valer. Não saiu.

Por quê? Não faço a menor idéia. O que sei é que passei a maior parte da presente década esperando que alguém na tal editora batesse o martelo, me apresentasse um contrato, fizesse alguma coisa. Depois de tanto tempo, até uma rejeição, tipo, “desculpe, mas o funcionário que deu aprovação inicial a seu livro foi diagnosticado com esquizofrenia, jamais publicaríamos um lixo desses”, teria sido bem-vinda.

Mas, bolas, para quê tratar escritores com cortesia e consideração, não é mesmo? Eles se vendem por aí, como diz o provérbio americano, por dez centavos a dúzia.

Então, o que pretendo ao lançar Nômade como um livro eletrônico grátis? Eu poderia responder dizendo que faço isso para exorcizar o fetiche do papel, que este livro representa meu grito de liberdade em relação às velhas mídias ultrapassadas que dependem de tinta e árvores mortas para subsistir.

Mas estaria mentindo.

Meu objetivo secreto, com este livro, é fazer tanto sucesso, mas tanto sucesso, que seja lá quem for o gênio que bloqueou a publicação lá naquela editora termine seus dias em desonra, opróbio e ostracismo, passando frio e fome e vendendo DVDs piratas na Praça da Sé.

Como conseguir o objetivo secreto é um pouco difícil, reconheço, meu objetivo expresso é, simplesmente, completar o parto iniciado tantos anos atrás. Cada escritor tem seu jeito, suponho, mas eu sou um maníaco da publicação: saber que tenho um texto acabado na gaveta é algo que me dói quase tanto quanto ter uma batata quente nas mãos.

Nestes quase 18 anos como escritor profissional (recebi meu primeiro cheque por uma obra de ficção em 1992) uma coisa que aprendi é que sou um péssimo vendedor: não adianta eu bancar uma tiragem e pôr a banquinha na rua, o livro vai encalhar, independentemente de seus méritos. A incapacidade psicológica de pedir dinheiro aos outros é um dos fantasmas que assombram minha vida.

Então, por que não simplesmente soltar o livro no mundo? Prece ser a solução lógica.

Outra coisa que aprendi nestes 18 anos é que os textos têm um jeito de achar seus próprios caminhos. Dia desses, dando uma busca por meus próprios títulos no Google (narcisista! narcisista!) achei o blog de uma menina que cita minha primeira coletânea de contos, Medo, Mistério e Morte, como um de seus livros favoritos. Essa moça provavelmente nem tinha nascido quando os primeiros contos daquele livro foram escritos.

Então, aqui está Nômade. Talvez um dia ele venha a ser o livro favorito de alguém que não nasceu ainda.

Não é um castelo na França, uma vaga na Academia ou um fim de semana na Ilha de Caras, mas acho que dá para o gasto.

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