domingo, 14 de outubro de 2007

O sangue no olhar dos vampiros

De todo o vasto estoque de personagens que o gênero fantástico deixa à disposição de seus autores nenhum fascina tanto os brasileiros quanto os vampiros. Tais criaturas fazem parte da mitologia e do folclore de diversas culturas há tempos, mas ganharam fama literária em 1879 com o lançamento de Drácula, de Bram Stoker. Por aqui, já exploraram o tema pelo menos duas telenovelas de grande audiência - Vamp e O beijo do vampiro -, além de muitos outros exemplos na música, nos quadrinhos, em programas humorísticos... Mais afeito ao terror, o vampirismo é o mote por trás de uma série de livros que podem ser considerados verdadeiros best sellers nacionais nesta área, todos de autoria de André Vianco e lançados pela editora Novo Século. Contudo, a ficção científica também faz sua parte para a construção do mito em nossas terras, sempre buscando substituir elementos sobrenaturais por explicações laicas e técnicas. Fazem parte deste grupo, escritores como Fábio Fernandes, Gérson Lodi-Ribeiro e Flávio Medeiros Jr. que ou já têm ou ainda pretendem lançar obras protagonizadas por homens-morcego. Em 2006, um novato chamado Osíris Reis entrou para esta galeria com um verdadeiro projeto multimídia.

Ancorado pelo que pretende ser uma série de nada menos que oito livros, este projeto sem dúvida é um dos mais ambiciosos em andamento no país com relação à ficção científica e ao terror. Isso por qualquer ângulo que se procure olhá-lo. Nascido em Goiás, mas radicado na Capital Federal desde 2001, Osíris Reis coordena lá de Brasília os esforços em torno da adaptação de sua idéia para outras plataformas. No site http://www.trezemilenios.xpg.com.br o internauta pode ter uma noção do que se planeja: já estão disponíveis imagens 3-D baseadas nos personagens e em objetos presentes na série, um trailer com narração feita pelo próprio autor e músicas instrumentais, entre outros brindes. Como atualmente o goiano faz o curso de Audiovisual - Tv, Rádio e Cinema - da Universidade de Brasília, e já participou da produção de documentários e de curta-metragens locais, o auge do trabalho pretende ser um filme inspirado nas obras literárias. A julgar pelo que se pôde ver no primeiro livro, caso venha mesmo a ser feita, teremos a versão nacional e com caninos proeminentes de Calígula; pelo menos no que diz respeito a derramamento de sangue e a cenas de sexo explícito.

O livro em questão é Treze milênios - Gênese vermelha, o Volume I de toda essa inusitada saga vampírica, publicado em 2006 pela editora Corifeu. Tudo começa em um futuro logínquo, uma data tão distante que parece algo proposto por Isaac Asimov. Em 7523, a humanidade conquistou o espaço, já fez intercâmbios pacíficos com outras culturas, dominou os quarks e construiu uma utopia de prosperidade, uma democracia direta intermediada por computadores. Neste contexto idílico, vive o protagonista da história, um médico que tem o nome mais ambíguo da história de nossa FC: Adolf Schindler. O personagem se prepara para comandar uma missão de exploração espacial em companhia de uma tripulação formada por outros seis capitães de origens diversas, entre eles, Mani, índia descendente de brasileiros. Tudo se encaminhava para uma ambientação típica de uma space opera, como aquela aparentemente infinita coleção de livros da série alemã Perry Rodhan. Porém, uma experiência clandestina de manipulação do tempo, posta em prática por um daqueles tripulantes, dá um rumo diferente à trama e carrega com ela meia dúzia de cobaias involuntárias.

A princípio, o objetivo do capitão renegado Eurass Brown era fazer um breve passeio - sair do ano 7523 para chegar a 7393. Algo dá errado, e o que deveria ser uma esticada de menos de um século e meio se tornou uma jornada composta por aqueles 13 milênios que dão nome à série. Pior que isso, ao chegarem ao ano de 5477 a.C. os viajantes do tempo descobrem que suas estruturas foram modificadas radicalmente no experimento. Não há porque fazer suspense: Osíris Reis dotou seus sete personagens com as características que nos acostumamos a identificar nos vampiros. Desde a imortalidade e a capacidade de regenaração até a necessidade de beber sangue e a fraqueza letal aos raios solares, o escritor buscou fornecer explicações científicas para tudo, partindo de uma alteração cromossômica planejada pelo antagonista do livro.

Teoricamente, o que os novos imortais precisariam para retornar à normalidade de suas vidas seria tentar não interferir na vida da humanidade, e com isso evitar alterações no futuro. Tudo isso e mais uma espera de 13 mil anos. Na prática, os planos dos membros do grupo entram em choque. Se o sempre ético Adolf Schindler pretende manter o ideal não-intervencionista, para preservar a utopia que virá, Eurass Brown não tem a menor intenção de se conter, e quer implantar um império na pré-história mesmo. A trama neste primeiro livro ocupa aproximadamente meio século, no qual a postura dos vampiros - dos sete pioneiros do século LXXVI e dos vários outros que eles criam entre os humanos locais - se alterna entre esses pólos. Os resultados são as já mencionadas sequências de derramamento de sangue e de cenas de sexo explícito: o escritor iniciante oferece a seus leitores algumas das descrições mais detalhistas e chocantes que a FC brasileira já produziu em ambos os quesitos. Torturas, desmembramentos, estupros e orgias com praticamente todas as tendências sexuais imagináveis formam um cardápio que daria orgulho a Vlad Tepes, o sanguinolento príncipe da Valáquia que inspirou Bram Stoker a criar seu livro mais famoso. Seguramente, não é algo recomendável para todo o tipo de leitores.

Gênese vermelha dá pistas de que seu autor pretende algo mais que contar a história secreta sobre a origem do mito do vampirismo. Detalhes, alguns mais sutis, outros nem tanto, dão a perceber que a influência dos sete vampiros vai se estender para outras mitologias, provavelmente percorrendo, ao longo da série, uma listagem do imaginário humano em todas as partes do mundo. Um detalhe tão ou mais ambicioso do projeto quanto as várias mídias em que ele pretende se lançar. Vai exigir bastante fôlego de seu idealizador, um esforço de pesquisa e uma habilidade narrativa enormes para dar coerência a tal saga. Pela amostra inicial, o escritor de 27 anos que propõe essa jornada conta com pontos positivos e negativos para acompanhá-lo pelo caminho.

Osíris Reis tem uma formação bem pouco usual que lhe dá boa vantagem para tratar das especulações que acumula pelas páginas do livro. Antes de começar o curso de Audiovisual, ele frequentou três semestres de Medicina, ainda na Universidade Federal de Goiás, e outros três de Mecatrônica, já na UnB. Tal currículo ajuda a explicar alguns bons momentos do seu livro de estréia, quando ele descreve minúcias técnicas sobre como foi possível a viagem no tempo, ou ainda quais são as extensões das alterações orgânicas dos primeiros vampiros. Neste último ponto, especificamente no trecho em que Adolf Schinler tem uma visão da nova composição celular dele e de seus colegas, o escritor foi especialmente feliz. O brasileiro consegue extrair daquela situação em nível molecular, algo semelhante ao que o americano Arthur C. Clark fez em planos bem mais amplos.

Vamos comparar, primeiro algumas linhas de Treze milênios - Gênese vermelha:

"Agora, Adolf estava microscópico. Até que se aproximou de um neurônio imenso. Uma célula cerebral sofisticadíssima, semelhante a uma estrela. Raízes brotavam dos raios dessa estrela, que o capitão sabia se chamarem de dendritos, com função de captar informações. Chamava a atenção um dos raios dessa figura, estendendo-se o suficiente para assemelhar-se a uma cauda. Era o axônio que, conforme Adolf aprendera na infância, passava adiante as informações que o neurônio recebera. Perto daquilo, Schindler era uma mosca na sopa. Mas ele não se assustava com isso. Não dizia nada. Apenas observava as ondas de eletricidade estática, brilhantes, que corriam na membrana, na pele do neurônio. Ondas de luz que davam ao cérebro a capacidade de pensar, correndo dos pequenos dendritos para os longos axônios. Mas Adolf continuava curioso e diminiuía. E foi a curiosidade que o levou a mergulhar no fluxo de informações".

Agora, uma amostra de 2001 - Uma odisséia no espaço, em tradução lusitana:

"Através do telescópio, altamente potente, podiam verificar que o asteróide era muito irregular, e rodava lentamente. Ás vezes, parecia-se com uma esfera achatada, e outras, com um tijolo grosseiramente talhado; o seu período de rotação era de pouco mais de dois minutos. Mostrava manchas de luz e sombra distribuídas, aparentemente ao acaso, pela sua superfície, e cintilava frequentemente, qual janela distante, quando planos ou afloramentos de algum material cristalino refulgiam ao sol.

Passava por eles a quase quarenta e cinco quilómetros por segundo; para o observar de perto, dispunham apenas de alguns frenéticos minutos. As máquinas fotográficas automáticas tiraram dezenas de fotografias, os ecos do radar de navegação cuidadosamente gravados para uma futura análise, e o tempo chegou à recta para apenas uma sonda de impacto".

Além dessas boas passagens, o autor de Goiânia demonstra segurança em várias outras áreas. Ele constrói um quadro bem vívido do futuro imaginado, propõe uma nova e interessante maneira de demarcar períodos históricos, avança com sucesso no grau de complexidade da trama - o que começa perigosamete como uma historinha de amor à primeira vista, evolui de modo interessante com o passar do tempo para situações bem mais inustitadas. Todavia, há também muita coisa para melhorar até chegar ao segundo livro da saga Treze milênios.

Tais pontos negativos podem ser divididos entre casos graves e outros nem tanto. O pior deles é a construção do lado emocional dos personagens, mais notadamente do protagonista germânico. O autor evitou criar um herói idealizado demais, sem dúvidas nem autocrítica. Poderia ser algo interessante, mas pesou demais a mão, o resultado foi um sujeito choraminguento que vive mergulhado em autopiedade, perdendo o controle das lágrimas e dos soluços. Isso ocorre com outros personagens, mas chega ao limite do bom senso com Adolf Schindler. Leitores que já reclamam dos excessos de sentimentalismo dos vampiros de Anne Rice, deverão se apavorar com o capitão deslocado do tempo. É algo a ser muito trabalhado por Osíris Reis se ele pretende mesmo manter a atenção do público por mais sete livros.

Um caso menos grave, é o uso da linguagem por parte dos humanos primitivos. O autor demonstra se preocupar com relação ao fato de aquelas pessoas serem tão culturalmente atrasadas = não apenas em contraste com os estrangeiros que nasceram mais de 10 mil anos no futuro, mas também em comparação ao leitor. Porém, o vocabulário dos sujeitos pré-históricos é rico demais para soar de forma realista, como parece ser a preocupação do escritor. Quem leu o capítulo inicial do livro de estréia do inglês Alan Moore, A voz do fogo, faz uma idéia do quanto é complicado tentar emular a fala e os pensamentos de nossos ancestrais. Mas esse é um desafio que não deveria ter sido deixado de lado.

No meio do caminho, há vários outros entraves que tornam a leitura cansativa. Certos recursos adotados fazem o texto soar muito artificial, alguns deles devido à obsessão do autor por não repetir palavras. Isso acaba gerando construções como "irmão de fulano" ou "primo de beltrano" a todo momento para substituir o nome de ciclano. Com o tempo, o efeito é bem mais irritante do que seria simplesmente ler o nome dos personagens repetidamente. No mesmo sentido, seria ótimo se o autor relaxasse em outras questões igualmente formais. Para exemplificar, o uso das mesóclises é constante em todo o texto. Seria radicalismo pedir para que não se use essa construção pronominal por ela soar pernóstica aos brasileiros, mas, pelo menos nos diálogos, poder-se-ia evitá-la sem empobrecer a prosa. Por último, novamente para aumentar a agilidade do texto, uma edição mais criteriosa eliminaria excessos e tornaria o livro bem mais magro. Não seria necessário apelar para a objetividade e secura de um Dalton Trevisan - dito o Vampiro de Curitiba, aliás -, só que, no mínimo, as constantes recapitulações da história deveriam ser podadas. Esse tipo de refresco para a memória do leitor é muito útil quando usado nos folhetins, mas em um romance, ele é mais que dispensável.

Enfim, 13 mil anos, oito livros e sabe-se lá quantos outros projetos paralelos são uma longa odisséia. Há tempo e espaço para se fortalecer os pontos positivos e se solucionar os negativos. Somente ao final dela saberemos se Osíris Reis estava ou não à altura do desafio que ele mesmo se propôs. Também saberemos se a tradição em relação ao vampirismo, essa preferência nacional em termos de literatura fantástica, ganhou de fato um novo representante de peso com a saga de Treze milênios.

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