domingo, 3 de fevereiro de 2008

A permanência da palavra e a finitude humana

Por um exercício de masoquismo nostálgico, ele - que odeia máquinas de escrever - programou o computador de casa para imitar o mesmo som que ouvia da velha Olivetti do pai enquanto datilografava, há duas décadas, seu primeiro romance. Do final dos anos 80 para cá, houve mais mudanças na vida dele que a simples evolução tecnológica na hora de redigir seus textos. O gaúcho de Porto Alegre, morador da capital fluminense desde pouco antes da virada do milênio, se tornou um renomado roteirista de TV e um dos raros sucessos comerciais e de crítica da literatura fantástica nacional. Na entrevista a seguir, o escritor fala das motivações por trás de seu livro mais recente, Zigurate; de como, mesmo aprendendo no curso de Direito a não confiar cegamente nela, criou uma homenagem à perenidade da palavra escrita; dos planos para levar tal obra ao cinema; e ainda dá dicas para escritores novatos de FC. Com vocês, o advogado que não aprendeu a dar nó em gravata, Max Mallmann.

Podemos começar por uma breve retrospectiva da sua carreira de autor, tanto de textos literários quanto dos feitos para TV? Desde sua estréia, há quase 20 anos, já foram quantos textos escritos, mesmo entre os ainda não publicados, como contos, e roteiros de programas de televisão? Quantos prêmios decoram sua estante?


Cara, quase vinte anos. Isso me assusta. Quando encasquetei que iria ser escritor, eu rabiscava historinhas com caneta Bic nos cadernos da escola. O primeiro romance que publiquei foi metralhado a muito custo na Olivetti do meu pai, com muitos retoques em Liquid paper, que era uma tinta branca que a gente, nos tempos jurássicos, usava para corrigir erros de datilografia. Eu odiava Liquid paper, cujo fedor de querosene me dava náuseas, odiava a Olivetti do meu pai, e não só ela, odiava máquinas de escrever em geral, quase tanto quanto odiava escrever em cadernos espirais desbeiçados.

Começar a redigir no computador foi uma libertação. Mesmo assim, hoje tenho um programa que reproduz, no teclado do PC, o barulho de uma máquina de escrever. Deve ser uma espécie de nostalgia masoquista.

Enfim, perto da geração blogueira, sou um matusalém.

Tenho quatro romances publicados. E dois inéditos que jamais irei publicar. Sim, isso mesmo. Dois trabalhos da juventude, um com cento e tantas páginas e outro com mais de trezentas, que acho que não merecem ser lidos. Eles nem existem em versão digital. São datilografados. Estão perdidos em algum armário aqui de casa, sendo lentamente devorados pelas traças.

Dois ou três contos que escrevi foram publicados em coletâneas, mas nunca fui bom contista. Devo ter meia dúzia de contos inéditos que nem sei mais onde estão.

Escrevi alguns poemas, naquela idade em que é perdoável escrever poemas, entre os dezesseis e os vinte e poucos. São todos inéditos, felizmente. Inéditos e desaparecidos, a menos que algum daqueles cadernos antediluvianos tenha sobrevivido em alguma gaveta. Não serei eu que irá procurá-los.

Publiquei quatro romances, como já disse. Os dois primeiros lá em Porto Alegre, os dois mais recentes aqui no Rio, pela Editora Rocco.

Você falou em prêmios. Não são muitos. Meu primeiro livro, Confissão do minotauro, foi um dos ganhadores do prêmio “Nova literatura” do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul. Meu segundo trabalho, Mundo bizarro, foi selecionado pelo Fumproarte, da prefeitura de Porto Alegre, e ganhou o prêmio Açorianos de melhor romance publicado no Rio Grande do Sul em 1996. O terceiro, Síndrome de quimera, foi um dos dez finalistas do prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.

Como roteirista de TV, escrevi para Malhação por dois anos, trabalhei na equipe de uma novela das seis, Coração de estudante, fiz Carga pesada por um ano e, desde 2005, sou da equipe que escreve A grande família.

Sua formação acadêmica é o direito, mas você estreou como escritor muito jovem, com Confissão do minotauro sendo lançado quando mal tinha completado 20 anos. O que o levou a essa escolha na atividade profissional e como foi sua preparação para ela no início? Participou de muitas oficinas e cursos de literatura ou é mais autodidata mesmo?

Sempre digo que adoro aprender, mas detesto que me ensinem. Prefiro correr aos livros a perguntar a alguém. É meu velho conflito com a autoridade, que me faz desconfiar dos professores. Apesar dessa neurose, sou obrigado a reconhecer que não sou autodidata. Mesmo fugindo dos mestres, acabei tendo bons interlocutores, com quem aprendi bastante. Mas nunca tive um aprendizado formal na literatura, salvo um semestre que fiz no curso de Letras da UFRGS. Não gostei. Meus colegas se dividiam entre os que estavam dando um tempo até passar em outro vestibular e os que haviam desistido de fazer outro vestibular. Quanto aos professores... Eram bons, admito. Infelizmente, como já mencionei, adoro aprender, mas detesto que me ensinem. Desisti.

Sou bacharel em Direito (ainda me assusta escrever isso, mesmo depois de tantos anos) formado pela UFRGS. Tenho o diploma, sou inscrito na Ordem dos Advogados, porém jamais exerci a profissão. Meu maior orgulho é ter concluído o curso sem jamais ter aprendido a dar o nó na gravata. A única matéria que me despertava algum interesse era o Direito Romano. Acho que o Direito me ensinou a não confiar nas palavras. O texto, mesmo que seja o texto da lei, jamais existe pos si só. Depende sempre da interpretação.

Seus primeiros dois livros saíram por pequenos projetos editoriais e com modalidades de incentivo cultural. Qual foi a importância desses apoios para um autor iniciante, ainda mais um que tratava de temas pouco ortodoxos como ficção científica e fantasia?

Qual a importância? Foi fundamental. Concorri com muita gente e fui selecionado pelo Instituto Estadual do Livro. Depois, concorri com mais outros tantos e fui selecionado pelo Fumproarte. Isso me fez acreditar que eu não estava tão errado em querer ser escritor. E foi assim que me tornei profissional. Hoje, francamente, acho que esses dois primeiros romances eram bem ruinzinhos, mas, de qualquer jeito, eles me abriram muitas portas.

Aliás, devo dizer que nunca sofri preconceito por escrever ficção científica e fantasia. Talvez nem exista esse preconceito. Ou, se existe, não é exatamente contra o gênero. É contra o pastiche. A cópia da cópia da cópia nunca é bem vinda. O que eu faço pode até não ser bom, mas também não é pastiche.

A outra metade de sua obra literária já saiu por uma das grandes editoras do país, a Rocco. Ter o livro lançado com o selo de uma empresa de porte é o grande objetivo dos escritores de FC nacionais, que vivem, em sua maioria, uma realidade de autopublicação dos títulos ou de participação em coletâneas. Você poderia contar um pouco sobre sua experiência até chegar a essa editora e, se possível, dar algumas dicas aos interessados em tentar repetir o feito?

Quando vim morar no Rio, em 1999, eu tinha dois romances publicados, tinha ganho concursos e tinha recebido críticas favoráveis na imprensa do Rio Grande do Sul. Achei que podia arriscar um contato com uma editora grande.

A primeira, e única, que procurei foi a Rocco, que é a mais aberta a novos autores. Telefonei, marquei uma hora e fui lá, com o meu currículo e o Síndrome de quimera debaixo do braço. Três meses depois, assinei o contrato de publicação. Síndrome de quimera foi lançado em 2000.

Fácil? Vamos fazer as contas. Em 1987, terminei de escrever Confissão do minotauro. Em 1989, a Confissão saiu pelo IEL do Rio Grande do Sul. Meu primeiro contrato com a Rocco foi assinado em 1999. Dez anos.

Minha lição aos novatos? Dêem um passo depois do outro. E não tenham pressa.

Podia ser pior. Jogadores de futebol estão acabados antes dos quarenta. Escritores são mais longevos. O rótulo de “jovem escritor” gruda na pele até aí pelos cinqüenta e cinco, pelo menos.

Sobre Zigurate: ele parece ser o livro em que você mais levou a sério as possibilidades de se trabalhar dentro do gênero da FC. De onde veio a idéia inicial e quanto tempo você levou entre a pesquisa dos vários tópicos desenvolvidos nele e na produção do texto em si?

A idéia vinha voejando pela minha cabeça desde 2000. Eu queria escrever um romance que falasse da permanência da palavra escrita em contraposição à finitude humana. Queria falar de morte e imortalidade. E queria, por nenhum motivo lógico, só por fetiche, uma personagem que fosse uma pesquisadora francesa.

A base de Zigurate é a epopéia de Gilgamesh, o texto literário mais antigo de que se tem notícia. Comecei a reunir material e a pesquisar só em 2002, e concluí o romance em 2003. Tentei, na medida das minhas forças, costurar realidade e ficção de forma que ficasse difícil distinguir uma da outra.

Muitos leitores vêm me dizer que foram pesquisar no Google datas, nomes de pessoas ou de lugares, acontecimentos históricos citados no livro. E encontraram quase tudo...

Os protagonistas de seu livro são dois personagens tão carismáticos e com tanta riqueza de detalhes em seu passado que vale a pergunta: você já pensou em fazer uma continuação da história? Seja a partir do ponto em que o livrou parou ou mesmo alguma aventura anterior da dupla?

Pensei, sim. Mas não a sério. Por enquanto, não tenho nada de novo a dizer sobre o universo de Zigurate. Um dia, talvez, quem sabe?

De qualquer modo, é bom ver que deixei em alguns leitores essa sensação de “quero mais”.

E quanto a adaptações? Trabalhando com roteiros de TV há tanto tempo, paralelamente à atividade de escritor de FC&F, já pensou em transformar algum de seus livros em um projeto audiovisual, seja como série, especial ou mesmo filme? Já chegou a discutir a possibilidade de adaptar Zigurate ou Síndrome de quimera com alguém da direção da Globo?

Sempre vi como atividades diferentes a escrita de roteiros e a escrita literária. Para mim, a diferença é análoga à que existe entre a escultura e a pintura. São duas especialidades distintas dentro de uma mesma arte.

Assim, tenho o “modo roteirista” e o “modo escritor”.

Mas, veja só, Zigurate está a caminho de virar filme. Um produtor comprou os direitos e já existe um roteiro pronto. Fazer cinema é um processo lento, então acho que daqui há uns dois ou três anos talvez possamos ver Zigurate nas telas.

E além dos seus livros, na sua opinião que outras obras da ficção científica nacional poderiam render boas adaptações para o cinema ou para a TV? Há espaço para esse tipo de proposta atualmente? E essa seria uma maneira viável de despertar o interesse do brasileiro para produções nacionais do gênero?

Acredito que haja espaço para muita coisa. A TV brasileira investe cada vez mais em novos seriados. E o cinema nacional também está se diversificando.

Temos muitos trabalhos nacionais que poderiam render boas adaptações para TV ou cinema. Só para citar alguns, assim, de estalo: o projeto Intempol, capitaneado pelo Octavio Aragão, o álbum O Instituto, da dupla Osmarco Valadão e Manoel Magalhães, os contos do Carlos Orsi Martinho, o romance Quintessência do Flávio Medeiros, a história brasileira alternativa do Gerson Lodi-Ribeiro e vários outros.

Agora, sinceramente, não sei responder se há uma maneira viável de despertar o interesse do leitor brasileiro pela literatura fantástica brasileira.

Meu conselho a quem escreve literatura é: não escreva pensando no público. O público é uma abstração. Escreva para você mesmo, e seja um crítico selvagem do seu próprio trabalho.

Quais são suas maiores influências, nacionais e internacionais, aquelas que são marcantes em seus trabalhos? E quanto a novos autores, dentro do gênero fantástico, há alguma novidade que tenha lhe chamado a atenção?

Minhas influências? Ah, muita gente. Sou muito “influenciável”. Vamos ver... Monteiro Lobato, Machado de Assis, Erico Verissimo, Jorge Luiz Borges, Luis Fernando Verissimo, Mario Quintana. Muitos mais. E, não posso deixar de mencionar, Carl Barks, meu primeiro mestre.

Quanto a novos autores, tem muita gente boa. Alguns já publicados em livro, como o Flávio Medeiros, e outros que, por enquanto, só publicaram na internet, como a Ana Cristina Rodrigues, que é um dos nomes mais promissores da nova geração.

Você já tem algo planejado para o futuro, algum novo projeto de livro ou de trabalho na televisão que possa comentar?

Na TV, continuarei, na temporada de 2008, na equipe que escreve o seriado A grande família. Tenho muito orgulho desse trabalho e me sinto privilegiado por trabalhar numa excelente equipe de roteiristas (somos nove profissionais escrevendo o programa), e por escrever para um elenco de primeira linha.

No cinema, há esse projeto da adaptação do Zigurate. Julio Uchoa, o produtor, queria que eu mesmo escrevesse o roteiro, mas eu disse a ele que só sabia contar a história de um jeito: o jeito do livro. Assim, o principal responsável pela adaptação foi o roteirista Sylvio Gonçalves (que, além de ser meu amigo, também é autor de ficção científica). Claro que eu colaborei, e não só eu. Também fazem parte da equipe os roteiristas Adriana Lunardi e Bruno Garotti.

Na literatura, venho trabalhando desde 2005 num romance novo, que será lançado em 2008, pela Rocco. É uma história que se passa no século I, em Roma...

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