domingo, 3 de fevereiro de 2008

Rio de Janeiro de todos os tempos possíveis

O polivalente prefixo “meta” é de fundamental importância para se comentar um dos mais engenhosos textos de ficção científica já lançados no Brasil. Aquela partícula de origem grega ganha múltiplos sentidos a depender do seu uso na formação das palavras. Pode ser o de “posição posterior”, como em metacarpo ou em metatarso; “mudança” ou “alternância”, a exemplo de metafonia e metagênese; “transcendência”, caso clássico de metafísica; ou ainda “reflexão sobre si”, empregado em metalinguagem. Escrito pelo jornalista Jorge Moreira Nunes em 1999 e lançado em 2007 pela editora Differential, Macacos e outros fragmentos ao acaso propõe um complexo jogo a seus leitores, com partes sobrepostas formando um todo maior que sua simples somatória, desdobramentos inusitados e múltiplas camadas de compreensão se alternando ao longo de 126 páginas. Para entrar no terreno das metáforas, cada um pode escolher a de sua preferência: bonecas russas, dobraduras japonesas ou mesmo uma simples cebola da terra para tentar descrever os efeitos presentes neste metalivro.

Para início de conversa, o título já faz uma provocação com o próprio autor. Ele é baseado em um famoso exercício de probabilidade. “Escreveram em algum lugar que se um hipotético e longevo macaco martelasse num teclado de máquina de escrever aleatoriamente por alguns milhões de anos acabaria um dia escrevendo a Ilíada”, comentou Nunes. Com tal idéia na cabeça, antes mesmo de começar o livro, ele criou um projeto colaborativo, no final da década de 90, que antecipou outras iniciativas semelhantes, como a Wikipédia ou, no caso nacional, o Overmundo. No endereço www.macacos.net o escritor deu a arrancada a um experimento literário totalmente virtual, uma lista de palavras escrita em um interminável fluxo de consciência por colaboradores anônimos, um verdadeiro macaco coletivo. Novamente nas palavras do criador: “O que fariam alguns milhões de seres humanos escrevendo uma mesma obra, acrescentando cada um suas impressões aparentemente confusas e caóticas do mundo, mas genuinamente representativas de um subjacente inconsciente comum?”

Uma pequena parte da resposta se encontra enxertada no livro, em quatro capítulos, apresentando uma torrente de palavras em livre associação de idéias, uma extrapolação beatnik elevada à enésima potência. Apesar de nela se incluirem expressões, trocadilhos e frases feitas em inglês, francês, latim, italiano, tupi - sem falar nos neologismos inclassificáveis - o conjunto da obra é, ao mesmo tempo, intraduzível para outras culturas e coerente a um brasileiro. Curioso notar o fato de que, em determinados momentos, expressões se repetem como se a lista fosse se fagocitar em uma espiral, mas, de forma aparentemente expontânea, ela acaba encontrando outros caminhos, outras associações, e segue em frente. Transcendendo os limites do livro, a obra aberta continua sendo escrita pelo coletivo de macacos colaboradores; segundo a contagem apresentada em um texto na contracapa do livro, a corrente contava com 62 mil palavras, escritas por centenas de usuários cadastrados naquele site, quando o livro de estréia de Nunes foi lançado, em maio de 2007.

Mas os capítulos do projeto Macacos não são a única atração da obra. Há ainda os anunciados outros fragmentos ao acaso. Eles são formados por contos curtos escritos em diversos estilos pelo autor e em diferentes oportunidades. São cinco capítulos dedicados a eles. “Terraço”, um texto que estava inédito, narra de modo naturalista uma desventura na cidade do Rio de Janeiro, mistura sarcástica de sexo e violência na metrópole contemporânea. “Maelström”, publicado anteriormente no fanzine dedicado à literatura fantástica Megalon, é seu exato oposto, um conto de caráter metafísico bastante complexo e simbolista. “Presente de mãe”, outro que estava inédito, apesar de ter participado de um concurso de FC, trata de tema bastante caro ao gênero em suas feições pulp: o do viajante ocidental que parte para terras misteriosas, no caso a Índia, e traz de volta a seu lar conhecimentos secretos; o diferencial aqui está no uso que o narrador faz de tais conhecimentos em um estádio de futebol carioca.

“Saviana” é o único dos textos que já havia sido publicado em livro antes, pois foi uma das duas colaborações de Nunes na coletânea Intempol, lançada no ano 2000 pela editora Ano-Luz. Aquela obra, que reuniu o trabalho de oito escritores, representou, cronológica e profissionalmente falando, a estréia do jornalista em terreno literário. O conto faz parte do universo compartilhado de uma polícia internacional do tempo criado por Octavio Aragão. O leitor eventual pode entender a trama, mesmo sem conhecer todos os detalhes da Intempol - versão abrasileirada da Patrulha do Tempo, do veterano Poul Anderson, cujas diferenças principais estão nos métodos dos seus agentes, bem menos sutis que os de Manse Everard, protagonista da série americana. “Saviana” dá uma boa amostra disso, com sua história se desenrolando no Tahiti no ano de 1893. Por último, fechando o arco de contos reunidos em Macacos, um outro que também saiu originalmente em Megalon, “Ouroboros”, com sua visão transcendental de um Rio de Janeiro mil anos no futuro.

Descrevendo de tal forma, ao falar dos quatro capítulos formados pelo fluxo de pensamento livre do projeto Macacos e da apresentação de meia dezena de contos diversos, o livro em questão aparentemente estaria mais bem classificado se fosse chamado de coletânea. Acontece que, já na capa - de autoria do artista gráfico e também autor de textos de FC Osmarco Valladão -, Macacos e outros fragmentos ao acaso se autodenomina romance. E, de fato, são os outros seis capítulos do livro que, ao unificarem e darem um contexto aos demais fragmentos aparentemente aleatórios, permitem tal classificação, o de um romance que contém uma antologia de textos curtos. O exercício de metalinguagem proposto por Jorge Moreira Nunes se completa nesta meia dúzia de intervenções que surge com o título em comum de “La Granada”.

“O La Granada ficava estrategicamente localizado na esquina de uma rua transversal de Copacabana, bem no caminho da praia”. É assim que o autor descreve o espaço no qual se passa formalmente o roteiro de seu romance, um boteco tipicamente carioca. O tempo, seria as semanas finais do ano de 1999, a época que ficou simbolicamente marcada como sendo a virada do milênio, a despeito de, matematicamente falando, isso só ter ocorrido no ano seguinte. Aquele foi o tempo e o espaço em que a obra foi de fato produzida e no qual chegou a ser premiada antes do lançamento: durante a Bienal do Livro de 1999, o original do texto, que então ainda levava o nome de O jogo dos bichos, recebeu a Bolsa para novos escritores, incentivo concedido pela Fundação Biblioteca Nacional para material literário em fase de conclusão.

Ocorre que o autor, dez dias depois de recebida a honraria, se mudou do Rio de Janeiro para Coconut Creek, no estado americano da Flórida, o que adiou a tal conclusão por nada menos que oito anos e meio. Originalmente o escritor foi aos EUA trabalhar em um jornal local para brasileiros – hoje em dia, ele se tornou proprietário de outra publicação, concorrente daquela primeira, o AcheiUSA. Mas se o projeto tardou, acabou saindo assim que o autor conseguiu uma brecha na agenda, mesmo tendo que coordenar tudo à distãncia, sem participar de nenhum lançamento do primeiro livro solo aqui na terra natal. A edição acabou sendo feita às pressas, com um resultado que não chega a ser um primor em termos de revisão, de diagramação ou de escolha da tipologia, muito antes pelo contrário. A maior ironia neste quesito é que o livro, que fora premiado pela BN em sua fase inicial, como foi dito, acabou sendo impresso sem o devido registro formal. O motivo? Os funcionários da Biblioteca Nacional estavam em greve durante a preparação dos exemplares...

De qualquer forma, o continuum básico do enredo, da metanarrativa, por assim dizer, do romance é aquele: um bar na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro no último mês e meio do ano da graça de 1999. Naquele lugar, todas as semanas, uma espécie de alter ego do autor se encontra com um colega chamado Vlad para beber, ler trechos do livro O Rio de Janeiro do meu tempo, do historiador e memorialista Luis Edmundo (nascido no século XIX), jogar xadrez às cegas - sem tabuleiro, nem súmulas, apenas ditando as jogadas um para o outro - e se submeter a uma impiedosa sessão de crítica literária. Os textos que o narrador apresenta a seu algoz são, adivinhe, aqueles mesmos que fazem parte do restante da estrutura do livro, incluindo aí os trechos do projeto Macacos. Cada conto é dissecado e analisado de forma impiedosa por Vlad, em uma experiência curiosa de autocrítica ou autoflagelação por parte do escritor. Ego e superego se confrontam em uma partida de xadrez metafórica.

O curioso embate é uma das brincadeiras metalinguísticas preparadas pelo escritor estreante. Afinal, as críticas podem ser acompanhadas pelos leitores entre uma página e outra, logo após a apresentação do texto a ser bombardeado. Da mesma forma que esses leitores em potencial são convidados a imaginar o desenrolar das peças do xadrez mental que protagonista e antagonista movimentam - para isso, extraí mais prazer do livro quem entende a linguagem cifrada do jogo, aqueles que sabem que P3CD se traduz como o peão avançando para a terceira casa do cavalo da dama, por exemplo.

Vlad demonstra ser um analista minucioso da obra do personagem Jorge Moreira Nunes, apontando inconsistências, expondo citações. Claro que nem tudo é dito, ainda sobra bastente material para despertar o interesse dos outros críticos. Para exemplificar, peguemos “Maelström”, um dos contos mais detalhadamente radiografados pelo metacrítico: ele comenta as semelhanças do texto com a obra de Umberto Eco, de Jorge Luís Borges, de Marguerite Yourcenar. Mas deixa de lado o fato de que, já no título, ele faz referência a um conto de Edgar Allan Poe, autor que aparenta ser uma influência forte de Nunes, sem falar em um romance famoso de Jules Verne. Há espaço para outros críticos e outros leitores exercitarem seu lado “Vlad”, como se vê.

Mesmo o mais desatento dos leitores pode adivinhar que a conclusão de todas as pontas daquele mecanismo literário vai se dar durante o reveillon anunciado. Como em uma autêntica partida de xadrez, muitos dos lances são previsíveis, algumas peças são entregues para serem capturadas pelo oponente, como isca. Mesmo assim, o autor conservou lances para os momentos finais, algo como o roque, quando a torre muda de lugar com o rei, o que serve tanto para a defesa quanto para uma estratégia de ataque do jogador. Os desdobramentos do romance também guardam esse tipo de surpresa, um detalhe mencionado dezenas de páginas antes pode voltar a ter um novo significado na hora certa. E, apesar das severas críticas que tanto o alter ego quanto o superego do autor fazem ao gênero em determinado momento - uma das raras concordâncias daquelas personalidades antagônicas - o livro, ao final, se revela uma obra de ficção científica de fato e de direito.

Uma questão que pode ficar em aberto é se a distância entre a produção e o lançamento do livro, de quase dez anos, não envelheceu o texto, fazendo-o perder boa parte do impacto que teria caso saísse mesmo na virada de 1999 para 2000. É algo difícil de se avaliar, mas felizmente as várias camadas de significados ainda estão lá, mesmo com o passar do tempo. Além disso, ao longo de todo o livro, versões de diferentes épocas da capital do Rio de Janeiro se alternam. Desde o prólogo, em que o autor exercita uma de suas maiores qualidades, a habilidade descritiva dos ambientes: ele narra, em uma página e meia, o panorama da cidade que começa em tempos pré-humanidade e avança até uma menção um tanto sutil a um evento ocorrido em 1555. Passa ainda pelas breves citações ao Rio de Janeiro novecentista de Luis Edmundo, chega à realidade contemporânea de “Terraço” e de “Presente de mãe” e ainda especula o futuro distante de “Ouroboros”. Neste Rio de Janeiro de todos os tempos possíveis, Macacos e outros fragmentos ao acaso segue sua trajetória metalinguística, metafísica, metacrítica entre outras aplicações daquele polivalente prefixo.

Serviço: uma última surpresa do livro é o fato de ele ser distribuído gratuitamente a todos os interessados. Cariocas só precisam passar na sede da editora e requisitar um exemplar, leitores de outros estados podem fazer o pedido por carta, telefone e e-mail e só pagam as despesas de postagem.

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