Ele apresenta duas motivações estranhas para ter iniciado o curso de Artes Plásticas na Universidade de São Paulo: uma curta carreira de pintor de rodapés na Inglaterra e a proximidade que teve com os maiores museus da Europa enquanto esteve naquele continente. De volta ao Brasil, passou a se dedicar mesmo a outra forma de expressão, a literatura, tendo recentemente lançado seu segundo livro, Será um romance distópico de ficção científica, e ainda abriu uma editora que pretende se especializar neste nicho literário. Falando diretamente da capital paulista, o escritor e pintor comenta as diferenças entre esses dois mundos artísticos; descreve as vantagens da FC para se contar histórias que tenham a sociedade como protagonista; e filosofa sobre a função da estética. Com vocês, o filho espiritual de Friedrich Nietzsche e de Clarice Lispector, Ivan Hegenberg.
Você é um artista plástico por formação, mas tem se dedicado à literatura como forma de expressão. Poderia fazer um breve retrospecto de sua produção literária e nas artes plásticas?
Antes de entrar em Artes Plásticas, na USP, eu cursei um ano de Letras, já pensando em me tornar escritor. Logo vi que Letras prepara bons professores, mas não me ajudaria muito a escrever, e tranquei a faculdade para ficar nove meses vagando pela Europa. Não sei se foi minha experiência como pintor de rodapés em Londres ou a proximidade com os principais museus do mundo, mas quando voltei estava decidido a enveredar pelas artes plásticas. Eu sempre gostei de desenhar, e acho que há situações que se expressam melhor com cores do que com palavras. Mas não parei de escrever, a essa altura eu estava terminando os contos do primeiro livro. A grande incógnita circulou pouco mas teve uma boa aceitação por outros escritores. Foi fácil perceber que o ambiente literário, por mais que tenha seus problemas, está bem mais arejado do que o das artes plásticas – não é à toa que este ano teremos em São Paulo a primeira Bienal do Vazio. Acho que escapar um pouco do ambiente de artes plásticas e escrever o Será me deu ânimo para agüentar bobagens desse tipo. De uns tempos para cá, tenho escrito alguns artigos sobre arte contemporânea, tentando combater as idéias fixas que eu encontro nas exposições e na crítica.
Em seu primeiro romance, apesar de ele estar inserido em um nicho da ficção científica dos mais tradicionais, a distopia, é notável a influência que outros autores fora da literatura de gênero exerceram sobre você, sem falar da área da filosofia. Friedrich Nietzsche e Clarice Lispector são os mais notáveis, mas não devem ser os únicos. Que outros escritores, de FC ou não, estão entre seus preferidos e lhe servem como referência?
Na verdade, não me apego muito aos gêneros. Acho que o melhor da ficção científica – por exemplo, Bradbury, Huxley, Orwell, K. Dick – vai muito além dos clichês e atinge o patamar da alta literatura. Do mesmo modo, Márcia Denser e Henry Miller fazem muito mais do que literatura erótica, Rubem Fonseca não faz apenas romance policial, nem Edgar Allan Poe escreve terror para assustar criancinhas. O importante é que o livro seja bom. James Joyce é quase o oposto de Kafka, mas os dois são excelentes. Guimarães não tem nada a ver com Bukowski, mas os dois me interessam. Não dá pra fechar a lista, mas, de todos, considero Nietzsche uma espécie de pai espiritual, sendo Clarice minha mãe. Também tenho lido bastante Deleuze, que a meu ver coloca Nietzsche diante dos problemas de hoje.
Por que você escolheu um cenário típico de ficção científica para contar uma história tão atípica de ficção científica? Qual sua ligação com este gênero específico da literatura fantástica?
Nos meus primeiros contos eu falei muito do indivíduo, e dessa vez eu quis falar sobre a sociedade. Mas em vez de colocar meus personagens no mesmo mundo em que vivemos, preferi criar um outro ambiente, para olhar alguns problemas a uma distância estratégica. Decidi então jogar um monte de coisas em que eu estava pensando para o futuro. Um dos elementos atípicos do Será é o fato de termos um futuro estagnado, uma desaceleração na história do homem, apesar de ainda repleta de conflitos. Minha intenção era fazer com que os problemas fossem percebidos com o máximo de pureza, por isso não podia ser uma história no presente: eu não queria que as conseqüências fossem atribuídas a circunstâncias meramente conjunturais. Eu busquei nesses homens do futuro forças muito semelhantes às que agiam no homem primitivo, e que com o tempo só vão se sofisticando, mas não desaparecem.
Para mim, as questões principais do livro não se remetem nem ao presente nem ao futuro, acredito que sejam eternas, mas uma das coisas que mais me divertiu no processo de escrita foi compor a ambientação. O oxigênio retirado da água, o sangue como moeda de troca, as ações do Comando Água, a telepatia rolando solta, os experimentos científicos radicais, etc. Acho que é esse o grande barato da ficção científica: a imaginação se mostra capaz de recriar o universo inteiro, não só uma situação isolada. E ainda assim, o link com a realidade permanece, tanto que os franceses chamavam a literatura FC de “romances de antecipação”.
Um dos capítulos que mais chamam a atenção em seu livro é “O Supremo Esteta”, no qual você especula sobre uma nova religião que passa a ser predominante naquele cenário, um ideário mítico que sobrepõe conceitos estéticos a questões morais. Desde o lançamento do livro, já houve alguma reação dos leitores às idéias contidas naquele trecho da obra?
Sim. Já chegaram a me perguntar como faz para se converter. É bom deixar claro que é uma ficção, portanto “Será” deve ser entendido como “Poderia ser”. Acho que se eu fosse realmente esperto, fundaria uma religião, em vez de levar tão miseravelmente essa vida de escritor. Quantas seitas esquizofrênicas, uma mais bizarra que a outra, lucram com a ingenuidade alheia? Acho que se eu fosse mais cara-de-pau, o esteticismo-maior poderia mesmo vingar como religião, mas prefiro mantê-lo na ficção.
Além da leitura puramente estética, que outras intenções nortearam aquele capítulo?
Eu mesmo não entendo muito bem o que eu quis dizer com “O Supremo Esteta”. Se eu soubesse com muita precisão tudo o que quero transmitir, eu nem me daria ao trabalho de escrever ficção. Aliás, aí é que está a força da estética: o fato de ela não poder se reduzir a nenhuma lógica identificável, por mais que alguns acadêmicos acreditem que sim. Acho que mais de cem anos depois, Nietzsche ainda não foi compreendido, caso contrário todo intelectual evitaria leituras moralistas de uma obra de arte, e infelizmente não chegamos a esse estágio de esclarecimento. Está mais do que confirmado que a moral só serve para escravizar o povo, pois nem a promessa católica de danação da alma por toda a eternidade impediu que os senhores abusassem dos servos. Sendo assim, como pensar que o moralismo das ideologias seria capaz de conter nossos instintos destrutivos? O homem está em perpétua mutação, mas se tem algum traço constante é a oscilação entre a vontade de criar e a de destruir. A estética é o campo ideal para exercitarmos as duas coisas ao mesmo tempo, mas essa ânsia deveria ser satisfeita livremente, sem o condicionamento de qualquer doutrina. Os autores que me fazem bem, que me aliviam das neuroses, são os que assumem uma visão trágica da existência. Ou seja, os que entendem que não existe bem nem mal, que a vida não faz sentido algum, que só tem felicidade quem suporta também o sofrimento e que nossos sentimentos e convicções costumam ser ambíguos. Vão nessa linha as traduções dos bons observadores da natureza humana. Na minha vida fui obrigado a me confrontar com tudo isso, que pode assustar mas também liberta, porque nos permite criar a vida conforme o paladar, sem dogmas, bela e inexplicável como uma obra de arte.
Os personagens do livro fazem constantes referências a um período histórico em que não viveram, que muitos deles chamam de “no tempo do capitalismo”. Curiosamente, apesar de muito do cenário proposto lembrar conceitos igualitários do socialismo, e mesmo com parte da trama se desenrolando em cidades como Pequim, não existe nenhuma comparação entre aquela realidade e as várias experiências socialistas reais que existem ou existiram em nosso mundo. Há alguma razão para essa ausência de referencial?
Boa pergunta. Eu não senti necessidade de falar diretamente sobre os países que vivem hoje o socialismo real porque seu processo histórico parece estar no fim, e portanto não alterariam muito os eventos que desembocariam na derrocada do capitalismo. Não considero a China um país socialista: está claro que vive uma lógica capitalista ainda mais selvagem que a nossa, com a agravante de estar sob uma ditadura. Por essa reviravolta Marx não esperava, e rasteiras da realidade desse tipo são ótimos motivos para os artistas não facilitarem uma captura muito materialista. Acho que se eu falasse muito do socialismo real, as interpretações tenderiam para a macropolítica, que eu considero ultrapassada e redutora. Eu deliberadamente evitei deixar o sistema social falar mais do que as personagens, exatamente porque creio que nosso campo de batalha está na subjetividade, e não nas grandes ideologias ou nos modelos econômicos. Arte não tem capacidade para mudar o mundo e faria muito melhor se tentasse mudar as pessoas.
Você pensa em retornar algum dia a esse mesmo universo ficcional ou já explorou tudo o que tinha vontade dele?
Sim. Escrevi um conto, “Vladja”, sobre um personagem coadjuvante de Será, que vai sair em uma coletânea da Record. O conto me satisfez tanto que eu já planejo um livro só com histórias curtas retomando o universo do Será.
O seu livro de estréia, A grande incógnita, foi publicado por uma pequena editora, a Annablume. Seu segundo livro já saiu por uma editora da qual você é um dos sócios, a Ragnarok. Pode fazer uma análise desses dois extremos tão distintos como forma de publicação?
A Annablume não é assim tão pequena, ela tem porte equivalente ao de uma Hedra, mas como trabalham mais com não-ficção, ainda estão construindo sua tradição na literatura. Estão no começo, mas acho que é uma das poucas editoras sérias do Brasil, que carece de gente com visão. Para o Será eu já queria uma editora um pouco maior, achei que o livro merecia divulgação, que ele podia desencadear discussões fortes, e despachei originais para todas as grandes. Foi uma decepção enorme, que diz muito sobre nosso mercado editorial: obtive ao menos duas respostas em que consideraram o livro muito bom, e mesmo elogiando não se arriscaram a investir. A lógica é essa mesma, acho que falta visão e falta coragem por conta dos editores. Eu escrevi para o Nelson de Oliveira desabafando, e ele me convidou para montarmos a Ragnarok. Tem sido um prazer trabalhar com o Nelson, que é um bom amigo e uma das figuras que mais respeito da nossa literatura. Outra coisa bacana é que ao montar uma editora independente você aprende muito sobre todas as etapas do processo.
Quais são os planos de sua editora para novos lançamentos? A Ragnarok pretende se especializar na área da literatura fantástica? Ela faz avaliação dos originais de outros escritores do gênero?
A Ragnarok já nasceu especializada em ficção científica e fantasia. Não é exatamente uma empresa, está mais para um clube, já que não bancamos as despesas do processo, mas também não estamos interessados em lucrar com o autor. A idéia é orientar sobre a capa, a gráfica, a diagramação e a divulgação, para que o livro, mesmo saindo em esquema independente, não faça feio diante de um produto das editoras profissionais.
Nos nossos planos está um livro de crônicas do André Carneiro, deliciosas de se ler, e um romance do Nelson, que ainda está sendo escrito. A gente faz avaliação de originais, com o tempo vamos mostrar algumas surpresas. Pode ser um pouco piegas citar Renato Russo, mas de fato o futuro não é mais como era antigamente, estamos em um momento em que a ficção científica tem de tudo para se renovar.
E você como escritor, já tem outros projetos planejados para o futuro próximo? Pretende voltar a trabalhar com temas da FC?
Recentemente, ganhei uma bolsa do governo de São Paulo para concluir meu próximo romance, Puro enquanto, que talvez seja meu livro mais ambicioso. Passei dez anos anotando meus sonhos pela manhã, e os costurei na história de um publicitário que entra em coma. Em certo momento, ele percebe que está sonhando e quer despertar, mas “despertar” ganha outros sentidos. A linguagem é pouco usual, com texto e imagens em constante diálogo. Também quero escrever para teatro e cinema. Quanto à ficção científica, só não quero escrever nada que me pareça inferior ao Será, mas assim que eu tiver um material consistente, lanço uma coletânea de contos.
domingo, 17 de fevereiro de 2008
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