domingo, 3 de fevereiro de 2008

Moços do corpo dourado

O texto literário mais antigo do qual se tem conhecimento foi escrito por um autor anônimo em tábuas de argila utilizando caracteres que lembram o formato de cunhas. Trata-se de um poema épico dividido em 12 partes que narra os feitos heróicos de Gilgamesh, o rei semilendário de Uruk, na antiga Mesopotâmia, na época em que aquela região da Ásia era ocupada pelo povo sumério. Basicamente, conforme foi traduzida no século XIX, após passar milénios no esquecimento, a epopéia descreve como o soberano se embrenhou na aventura em busca de um dom que ele, apesar de ser filho de uma deusa e de um semideus, não herdou no nascimento: a vida eterna. Passados quase 5 mil anos do surgimento daquele marco da literatura, para ser mais exato foi em 2003, um livro nacional de ficção científica fez a transposição de tal mito para os tempos de hoje, com a vantagem extra de trocar os incômodos retângulos de argila pelo papel e de ter substituído quase todos os símbolos cuneiformes pelo nosso velho conhecido alfabeto latino.

O título da obra em questão faz referência a outra inovação típica dos sumérios - neste caso, arquitetônica - os zigurates, as primeiras construções a desafiar os limites terrenos se lançando aos céus e que, não por acaso, deram origem ao mito da Torre de Babel. Zigurate - Uma fábula babélica é o quarto e mais recente livro do gaúcho de Porto Alegre Max Mallmann, atualmente um residente da capital fluminense onde trabalha como roteirista da Rede Globo. Em termos literários, ele, que é formado em direito, estreou em 1989, aos 20 anos, com Confissões do minotauro; em seguida veio Mundo Bizarro; Síndrome de quimera, publicado no ano 2000 pela mesma editora Rocco de Zigurate, foi traduzido para o francês e chegou a ser finalista para o renomado prêmio Jabuti. Já no plano do audiovisual, escreveu sua própria telenovela, Coração de estudante, colaborou com a soap opera Malhação e, hoje em dia, faz parte da equipe de criação do seriado A grande família.

Ou seja, há quase 20 anos, ele vem se dedicando a vários temas, dos dramas adolescentes a comédias familiares, passando por trabalhos em literatura fantástica, com ênfase na fantasia. Vamos pegar o exemplo de Mundo Bizarro, publicado em 1996 com recursos da prefeitura da capital do Rio Grande do Sul, quando o escritor assinava com o nome Max Mallmann Souto-Pereira. O livro conta a história de um porto-alegrense que misteriosamente foi parar em outro planeta - ou seria outra dimensão? Ou ainda um universo paralelo? - habitado por um povo atrasado tecnologicamente que cultuava três mil deuses diferentes. Foi em Zigurate que ele se aventurou de modo mais explícito, e com maturidade autoral, no terreno da FC, mesmo sem abandonar outras vertentes literárias. Com isso, não só escreveu um dos melhores romances do gênero lançados nesta década, como ainda criou dois dos mais carismáticos e bem construídos personagens de nossa ficção científica em todos os tempos.

No livro do século XXI, quem repete a epopéia do rei sumério em uma longa viagem em busca da Vida é uma pesquisadora francesa chamada Sophie Brasier. Aos 30 anos, convivendo com o vírus HIV desde os 20, ela descobre que a mistura do coquetel anti-Aids com os genes ruins herdados do pai a condenou a uma morte certa por ataque cardíaco em uma questão de meses. Sem nenhum relacionamento amoroso há anos, sem amigos próximos, tendo como família apenas a mãe ausente e uma samambaia, a parisiense se agarra a única coisa que lhe restou na tentativa de evitar a insanidade: concluir sua tese de doutorado em antropologia denominada Interpolações dos mitos mesopotâmicos no texto bíblico. Para ajudar a explicar o título, vale lembrar um exemplo no caso já citado. Um dos pontos narrados no Poema de Gilgamesh diz respeito a uma grande inundação bastante semelhante àquela presente no trecho da Bíblia sobre a Arca de Noé. A diferença principal é que o protagonista da lenda suméria, Ziusudra, ao contrário do patriarca bíblico, recebeu de seu deus, Ea, a dádiva tão cobiçada pelo rei Gilgamesh, a imortalidade.

"Sophie não tinha teorias bombásticas, não queria provocar polêmica e nem revolucionar o mundo acadêmico", apontou Mallmann. "Queria apenas escrever uma tese clara, lógica, fria e legível. Como uma lápide, seu último trabalho intelectual antes de morrer". Com tamanha motivação, a antropóloga fez algumas descobertas que, caso pudessem mesmo ser comprovadas, iriam sim causar polêmicas e revoluções. E não apenas na academia. Aqui talvez seja prudente esclarecer um ponto: um leitor de hoje, que não conheça o livro do gaúcho, pode encontrar semelhanças entre a descrição da trama de Zigurate com o megasucesso O código da Vinci, mas a comparação não é de todo procedente. Por uma questão cronológica, a obra de Dan Brown nunca poderia ter sevido de inspiração, afinal, coincidentemente, ela também foi lançada em 2003, nos EUA, e só viria a estourar como sucesso a partir no ano seguinte, culminando com a adaptação cinematográfica de 2006. Além disso, não é patriotada dizer que o material nacional é estilisticamente bem superior ao daquele livro mais famoso - e, em outra coincidência, que também é o quarto lançado pelo escritor americano. Se for para arriscar alguma influência do gaúcho, é mais certo apostar em uma dupla de escritores e quadrinistas britânicos. Pela temática, Alan Moore, com a série de HQ Promethea, lançada em 1999, e, pela construção de personagens, Neil Gaiman, principalmente por Morte, irmã mais velha de Sandman, criaturas cult dos anos 80.

Voltando a Zigurate. O ponto de partida para a investigação científica foi a carta que Sophie descobriu em uma biblioteca francesa, contendo a reprodução do texto de uma Bíblia escrita no século XII. Era uma versão apócrifa e aparentemente herética do primeiro livro que compõe as escrituras sagradas. Nesse Gênesis alternativo, escrito em latim clássico ao longo de 14 versículos, estava contada a origem de um casal anterior a Adão e Eva, os misteriosos Lugal e Nin que vieram ao mundo no sexto dia da criação. Eles sim teriam sido feitos à imagem e semelhança de Deus, tanto que foram agraciados com a vida eterna. Parte disso se explica pelo material utilizado na confecção dos seres primogênitos, pois eles foram esculpidos em ouro, único metal capaz de refletir "com seu brilho imperecível" a glória e a imagem divinas. Porém, eles acabaram por afrontar o Criador e, como vaticina o capítulo 2, versículo 5 do texto, acabaram punidos:

"O Senhor Deus, arrependido de sua criação, depôs Lugal e Nin do trono do mundo recém-feito. E Deus lhes disse: 'Imortais vos fizemos. Imortais vós sereis. Mas vossa semente será estéril. Não deixareis filhos nem herdeiros. Vagareis sem destino pela terra até o final dos tempos, e nenhuma memória restará de vossa existência, pois este mundo já não mais vos pertence'".

Arrependido da experiência pioneira, Deus resolveu tentar novamente, agora com algumas salvaguardas. Trocou a nobreza perene do ouro pela simplicidade fugaz do barro na hora de moldar Adão. Foi assim que o novo homem e, por consequência, a mulher que recebeu sua costela se tornaram um par "debilis et imbecillus, fragilis et mortalis", ou seja, "débil e quebradiço, frágil e mortal". Apesar do ceticismo do orientador da pós-graduação, dos protestos da mãe e da gravidade de sua doença, Sophie Brasier mergulhou de tal forma na pesquisa que, ao longo dos meses, acabou econtrando referências em uma infinidade de fontes históricas. Os nomes Lugal e Nin, de origem suméria, surgiam, por exemplo, compondo a nomenclatura de deuses e de reis em textos acádios, babilônicos e assírios, além dos citados pais de Gilgamesh: a deusa Ninsun e o rei divino Lugalbanda.

Mas não parou por aí. Aparecem pistas nos relatos dos homens do exército de Napoleão que invadiram o Egito e nas listas de condenados à guilhotina durante o período de terror da Revolução Francesa, assim como entre as mulheres julgadas como bruxas pela Inquisição espanhola. Ainda na Espanha, surgem relatos de um Lugal entre os combatentes da Guerra Civil, do mesmo modo que entre os soldados soviéticos que tomaram Berlim no colapso da II Guerra Mundial. Há uma Nin na redação do Pravda durante a Revolução Russa e surge uma foto dela em uma reportagem da Vogue tirada na Inglaterra há 40 anos. Voltando a comparar com o O código da Vinci, até mesmo uma pintura antiga fornece pistas da existência real daqueles misteriosos seres que, a depender da inspiração poética de quem os descreve, têm a pele de um "amarelo solar", "amarelo mostarda", "cor de uísque", "matiz ambarino", "anêmica", "cor de mijo" ou de "gema de ovo frito".

Depois de praticamente um ano, contrariando os diagnósticos em relação à sua expectativa de vida, a doutoranda resolve deixar a especulação teórica de lado e parte para a pesquisa de campo. Sua empreitada a leva até à Escócia para tentar ao menos provar a veracidade de parte dos seus achados. Enquanto isso, alheia ao interesse acadêmico que lhe envolve, a outra metade da trama se desenrola em um cenário bem mais conhecido dos brasileiros: a cidade do Rio de Janeiro. Por lá, o ritmo da história é outro, substituindo neurônios europeus por adrenalina das Américas. Chovem bala e sangue numa mistura de corrupção política com violência dos morros cariocas. Mas o tratamento dispensado à narrativa também é diferente, Mallmann substituiu o realismo com que tratou o ambiente acadêmico francês por um tom mais de fábula mesmo, como sugere o subtítulo. Por isso, não é o caso de se esperar uma descrição cruenta da realidade urbana nos moldes de um "Feliz ano novo" de Rubem Fonseca; seria mais adequado comparar o lado brasileiro da história com algum roteiro de Quentin Tarantino, algo como um Amor à queima roupa carnavalizado. Isso ajudou a deixar o texto ameno e bem-humorado, mas também acabou abrindo portas para alguns personagens mais rasos, quase caricatos. Talvez Zigurate tivesse a ganhar com a ausência de alguns deles.

Analisando o livro como um todo, em poucas páginas, com um ritmo alucinante e a urgência de um moribundo que se agarra à sua última chance de salvação, Mallmann produz um apaixonante tour pela História, da mais remota antiguidade aos dias atuais. Serve como prova de que a ficção científica pode usar como tema de extrapolação todas as formas de conhecimento organizado, como a antropologia e a filologia, e não apenas ciências exatas - apesar de, quase ao final das 223 páginas da obra, surgir uma muito interessante possibilidade envolvendo física teórica avançada. O grau de detalhismo e a veracidade com que o autor constrói o cenário e seus protagonistas tornam quase irresistível ao leitor algumas pesquisas pelas inúmeras referências textuais. A cada resposta do Google, este novo oráculo onisciente e onipresente, mais impressionante se demonstra a costura do texto e a erudição pop do escritor. Aguça a curiosidade e deixa no ar a pergunta: o que mais poderia ser feito se algumas lacunas fossem preenchidas? Ao fim, Zigurate - Uma fábula babélica não é apenas uma recriação em vários níveis da saga de Gilgamesh pela busca da existência eterna. O livro também é uma apaixonada e muito bem engendrada homenagem à palavra escrita, com as diferentes tecnologias que, ao longo dos tempos, lhe garantiram a existência e, de quebra, também fizeram com que a história e a cultura se tornassem possíveis. Não importando se tais tecnologias sejam laptops, endereços eletrônicos, o lápis ou tábuas de argila gravadas com caracteres cuneiformes.

2 comentários:

Fernando S. Trevisan disse...

Outro excelente texto, Romeu. Suas resenhas são inspiradoras e desalentadoras ao mesmo tempo :)

Tenho Zigurate por aqui e fiquei com ainda mais vontade de ler! Ah, essa pilha de livros que não acaba nunca...

PS: essa vai para o Overmundo também, né?

Abs!

Fernando S. Trevisan disse...

Ops! Agora que eu vi que já está lá... falha minha :(

[ ]'s!