sábado, 3 de maio de 2008

Acidental feito pedra no caminho

Romancista estreante e contista premiado, como leitor ele se define atípico e como escritor de ficção científica diz que o gênero surgiu em sua vida feito uma topada numa pedra. O primeiro romance dele, Síndrome de Cérbero - no qual um homem de meia idade viaja 40 anos ao passado para tentar salvar o idolatrado pai de ser assassinado - é uma amostra de seus objetivos literários: um autor que pretende utilizar ferramentas do gênero para tratar das angústias humanas, dos dilemas do indivíduo. Na entrevista a seguir, o paulistano comenta os motivos para ter situado o livro em um cenário estrangeiro, descreve um pouco do método quase mediúnico de escrita e aproveita a experiência como publicitário para analisar as estratégias possíveis para se popularizar a FC no Brasil. Com vocês, o sobrinho-neto do escritor e dramaturgo húngaro Zsigmond Moricz (1879-1942), Tibor Moricz.

Você lançou seu primeiro livro com praticamente a mesma idade do protagonista da obra, às vésperas de completar 50 anos. Mas, nos textos de apresentação de Síndrome de Cérbero, é dito que você escreve desde a adolescência. Há muitos outros textos seus, quer sejam ou não de ficção científica ou de literatura fantástica em geral, já elaborados e aguardando publicação?


Devo ter escrito ao longo da minha vida centenas de contos. Todos eles perdidos nas mudanças que realizei ou devorados pelas baratas. Tenho dois romances prontos. Mas a editora cometeu um exagero quando disse que eles estavam no prelo. Na verdade não tenho nenhuma intenção de publicá-los. Um deles é uma fantasia medieval que cheguei a reescrever quatro vezes procurando aprimorá-lo; o outro, um livro de aventura e sobrenatural que, embora seja relativamente bom, está longe de me agradar inteiramente. E quando não me sinto seguro com algum escrito, não o torno público. Jamais. Há um terceiro, mas este foi escrito recentemente, tem o título de Fome e se encontra nas mãos de alguns editores conhecidos. Acredito muito na sua publicação. O conto que abre o livro está disponível na internet e já foi lido por muitos. Chama-se “O caçador”.

Depois de tanto tempo escrevendo antes de se lançar às livrarias, por que você escolheu a FC como tema do romance de estréia? De onde veio seu interesse pelo gênero e que autores você costuma ler e lhe servem de referência?

Uma vez eu disse que a FC aconteceu na minha vida da mesma maneira que uma pedra acontece na vida de algum passante distraído. Foi uma topada acidental. Ocorreu de elaborar uma história cuja temática central era de viagem no tempo. Resisti muito a aceitá-lo como ficção científica porque meu objetivo era – e sempre será – o homem. O indivíduo. Suas incertezas, seus medos, suas imperfeições. Utilizei a poderosa máquina de Barnard Caldwell apenas para dar uma base segura ao argumento principal que era o amor de um filho pelo pai. Com o passar do tempo fui me ajeitando dentro desse novo contexto e comecei a aceitar o fato de ter escrito uma obra de ficção científica. Justamente por ter sido um evento acidental não posso dizer que fui influenciado por esse ou aquele autor do gênero. Sou um leitor diferente. Em muitos aspectos, atípico. Desde a pré-adolescência venho lendo quase tudo o que me cai nas mãos. Muito mais literatura mainstream que de gênero, embora tenha lido Isaac Asimov, Arthur Clarke, Ray Bradbury, Robert Silverberg e outros. Considero-me atípico porque não lembro os livros que li, a não ser uma meia dúzia que por essa ou aquela razão me marcaram. Nesses, incluo Sexus, Nexus e Plexus de Arthur Miller, A insustentável leveza do ser de Milan Kundera, Complexo de Portnoy de Philip Roth, Fome de Knut Hamsun, Os sete minutos de Irving Wallace e outros mais recentes que ainda não foram removidos para o arquivo morto da minha memória (rsrs). Minha maior influência veio mesmo da TV e do cinema. Fui um entusiasta de Perdidos no espaço, Jornada nas estrelas, Túnel do tempo, Viagem ao fundo do mar, Star wars e quaisquer outros filmes ou séries nessa temática. Assim, posso dizer que minhas referências literárias vêm de uma imensa sopa de impressões obtidas com a leitura de livros dos mais diversos gêneros, a esmagadora maioria completamente esquecida por mim atualmente.

Foi feita muita pesquisa para compor a trama de Síndrome de Cérbero, tanto nos aspectos técnicos da viagem no tempo, envolvendo algumas teorias de física; quanto na construção psicológica do personagem principal, Leonard Cameron; ou ainda no cenário do livro, que se passa inteiramente em cidades de porte médio dos EUA?

Média. A construção psicológica do personagem não exigiu pesquisa nenhuma. Saiu tudo da minha cabeça. Os detalhes técnicos sobre a viagem no tempo mereceram uma pesquisa básica já que não mergulhei de cabeça no aspecto hard da ciência. Quanto ao cenário, tive que pesquisar o cotidiano e a geografia dos EUA, mas nada muito exaustivo.

Por falar na ambientação do livro, por que você optou por criar uma história que não tenha nenhum elemento, ou mesmo citação, ao Brasil ou à terra natal de seus pais, a Hungria? Em relação ao primeiro caso, foi para fugir do mito do Capitão Barbosa, como é apelidado o temor de que soe ridículo o uso de personagens e de temáticas brasileiras em um enredo de ficção científica?

Na ocasião eu não conhecia o mito do Capitão Barbosa, embora tivesse sido exatamente por isso que resolvi ambientar a história do livro num país estrangeiro. Não conseguia (nem consigo agora) imaginar um cientista chamado Benedito ou um “da Silva”. O cenário brasileiro contemporâneo me remete a outros argumentos ficcionais, todos eles realistas e mais condizentes com a literatura mainstream. Pobreza, crime e corrupção (vividas tão de perto e intensamente) são referências desestimulantes para quem quer escrever uma boa história de FC. Pelo menos pra mim.

Sua escolha por utilizar personagens e cenários americanos provocou alguma reação perceptível entre os leitores? Houve alguma crítica positiva ou negativa por ter feito tal opção?

Poucas reações. O Fábio Fernandes comentou que perdi uma excelente oportunidade em ambientá-lo no Brasil do golpe militar. Li alguns comentários sobre o fato em algumas comunidades do Orkut. Alguns puristas reclamando da “imbecilidade” de um brasileiro ambientar sua história noutro lugar, num país estrangeiro, como se isso fosse um crime de lesa-pátria. Tudo bobagem. Mas as reações negativas foram realmente pequenas. Graças a Deus os elogios suplantam em muito as críticas.

Síndrome de Cérbero pretende ter alguma forma de continuação, seja na forma de uma seqüência da história, seja com uma adaptação para outra mídia, ou você já explorou tudo o que tinha a dizer sobre aqueles personagens?

Na minha cabeça não há a menor chance de escrever uma continuação para Síndrome de Cérbero. Quanto a adaptações para outras mídias, acho-as pertinentes. Mas nem sei como poderia fazer isso. Gosto de pensar que o livro renderia um bom filme, mas sei que isso é fantasia e estamos falando de ficção científica (rsrs).

Seu livro foi publicado por uma empresa que é conhecida pelo lançamento de títulos ligados ao espiritismo – JR Editora – que nunca mostrou interesse anterior pela ficção especulativa. Como foram os bastidores dessa negociação e há possibilidade de a editora voltar a lançar outras obras do gênero, de suas ou de outros autores?

As coisas com a JR Editora aconteceram de forma completamente inusual. Estava batalhando uma editora há dois anos sem nenhum resultado positivo. Um amigo, escritor do gênero de auto-ajuda, me convidou para uma noite de autógrafos numa livraria Siciliano próxima de casa. Fui. Lá conheci o editor, para quem enderecei todas as minhas reclamações quanto à capa abominável do livro que se homenageava naquela noite. Propuseram-me então que apresentasse uma capa melhor, que desenvolvesse um projeto. Aceitei com a condição de que o editor me auxiliasse na procura de uma outra editora para Síndrome, já que ele estava fora da linha editorial da JR. Condição aceita, iniciei o trabalho a que me propus. Duas semanas depois, numa reunião onde apresentei as opções de capa, entreguei ao editor o original de Síndrome de Cérbero. Ele leu a sinopse e declarou interesse em publicá-lo. Coisa que acabou acontecendo um ano e meio depois. Tive muita sorte, na verdade. Quanto a possibilidade da JR Editora vir a publicar outras obras do gênero, desconheço. Mas acho que nada impede um bom argumento de ser aceito.

Apesar de se lançar como escritor já com um romance, você tem sido premiado por textos mais curtos que também tratam de temas de FC. Foi assim com “Ordem Crepuscular” e com “Filamentos iridescentes como numa chuva de néon”, respectivamente vencedores dos prêmios Ignácio de Loyola Brandão, no XI Concurso de Contos de Araraquara, e Braulio Tavares, em uma competição promovida no Orkut que em breve deverá dar origem a uma coletânea. Qual a importância desse tipo de incentivo para um autor iniciante?

Acho que para chegar ao ponto de um autor iniciante ser premiado num concurso de contos qualquer que se pretenda sério, é necessário que ele já tenha queimado uma série de etapas anteriores. Ter escrito bastante para evoluir tecnicamente, poder dizer que desenvolveu um estilo próprio. Ter sublimado aquilo a que chamamos de talento (desde que ele exista nessa pessoa) e tê-lo transformado em ferramenta constante e não apenas efêmera e ocasional. Depois de tudo isso, um prêmio num concurso de contos é apenas a ratificação de um trabalho árduo. O verdadeiro incentivo não está nos prêmios nem nos concursos. Ele está à nossa volta. Em nós mesmos. Naquilo em que acreditamos. Naquilo que queremos para nós e para as pessoas que amamos.

Há alguma diferença marcante entre seu processo de elaboração de um romance e o de um conto? Poderia descrever como é sua preparação no momento em que resolve criar alguma história?

Meu processo criativo é, de certa forma, entrópico. Não há, na maioria das vezes, uma elaboração antecipada. Quanto muito uma idéia básica. Eu me sento para escrever e deixo o texto fluir. É quase mediúnico. Síndrome de Cérbero recebeu de mim uma atenção rasteira quanto à linha geral de raciocínio que nortearia o trabalho. Resolvi o nome dos personagens, decidi que o filho tentaria salvar o pai sucessivas vezes de um assassinato e o resto foi acontecendo na medida em que escrevia. Eu era um escritor/leitor privilegiado. Conto ou romance, ambos sofrem o mesmo processo. Posso sentar, respirar fundo diante do editor de texto e começar a batucar o teclado. Colocar palavras a esmo, deixar que elas se sucedam e formem linhas, orações, páginas inteiras. Em 90% das vezes fico satisfeito com o trabalho. Ultimamente tenho permitido que a inspiração me atinja, em vez de simplesmente sentar e escrever. Deixo a mente aberta até que uma idéia surja e brilhe. Devo ter um anjo da guarda literato que me sopra as idéias, talvez até um anjo familiar já que meu tio-avô Zsigmond Moricz foi um dos escritores mais importantes da Hungria no século passado (rsrs).

Aproveitando da sua experiência profissional como publicitário, você poderia sugerir alguma estratégia para popularizar a ficção científica entre o público brasileiro? O que está faltando para atingir maiores mercados consumidores para o gênero?

Essa questão me lembra um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Ou a cobra Ouroboros. Não há jornalismo literário especializado no país, o que dizer então em relação à literatura de gênero. Por outro lado, não temos um gênero especializado no país, que dirá um jornalismo que o respeite. O que quero dizer é que faltam obras verdadeiramente respeitáveis, que chamem a atenção pela inequívoca qualidade. Trabalhos que, pela virtude técnica, poderiam lutar ombro a ombro com a literatura mainstream. Trabalhos que valorizem não apenas uma boa idéia, mas também o poder narrativo.

Indo direto ao ponto, precisamos primeiro produzir obras de inegável qualidade para depois reclamar a falta de atenção da mídia. Claro que campanhas publicitárias ajudariam, mas qual editora investiria num autor brasileiro de futuro ignorado? Já é uma luta conseguir uma que aceite nos publicar, convencê-las a nos bancar publicitariamente é quase uma alucinação. Não resta alternativa senão usar e abusar dos recursos que a internet nos fornece. Divulgar nossos trabalhos e nomes em blogs, comunidades, sites diversos, explorar ferramentas como o Youtube. E contar com a sorte. Ela às vezes dá as caras. Temos que estar atentos para agarrá-la nessa hora.

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