sábado, 3 de maio de 2008

Complexo de Chronos

Milênios antes de o engenho humano tê-lo tornado possível, nosso velho sonho de voar como os pássaros ganhou a forma de uma lenda, na Grécia antiga. Histórias como a de Ícaro anteciparam e mobilizaram a vontade de um número incontável de pessoas ao longo das eras, servindo ora como fonte de inspiração ora como alerta. De certa maneira, a ficção científica pode ser considerada sucessora dessa linhagem de narrativas mitológicas, com o diferencial de ter substituido a intervenção dos deuses por uma dose – em alguns casos, ligeira pitada – de empreendedorismo humano e de conhecimento aplicado. Um exemplo prático desse moderno cânone mitológico foi o primeiro livro de um dos desbravadores do gênero literário: A máquina do tempo, de H. G. Wells. O escritor inglês fundou um novo mito quando fez seu Ícaro anônimo desafiar não os céus mas aquilo que chamou de quarta dimensão, em uma viagem ao futuro. A idéia por trás da obra de 1895 permanece como referência a gerações de escritores do mundo inteiro e, no Brasil, curiosamente, tem servido como porta de entrada para debutantes da FC. O Universo Intempol é um caso exemplar, pois surgiu no conto de estréia de seu criador, Octavio Aragão, e logo se tornou a oportunidade para lançar vários iniciantes, como Jorge Nunes. Fora daquele ambiente, time travel também vem sendo o mote dos romances de outros viajantes. Assim foi com Osíris Reis e o capítulo inicial de sua saga, Treze milênios, e é assim com o objeto de atenção deste texto, o primeiro romance do paulistano filho de húngaros Tibor Moricz.

O título do livro, lançado na primeira metade de 2007, já remete àquela idéia da ancestralidade das antigas mitologias na árvore genealógica da ficção científica: Síndrome de Cérbero. Esse é o nome do cão monstruoso que vigia a saída de Hades, a terra dos mortos, nas lendas gregas, um ser que enfrentou o herói Orfeu e o semideus Héracles – ou, Hércules, para os latinos. Na capa da obra, em uma pintura de William Blake – curiosamente não creditada em parte alguma da publicação – a criatura aparece na forma mais conhecida, com as três cabeças prontas para destroçar quem tentasse fugir do destino pós-vida. A explicação para se evocar a besta-fera só vai chegar ao leitor na página 280, quando faltam pouco mais de 50 para o fim do texto. O protagonista da obra, narrador da trama, queixa-se de seus azares: “Por que eu? Estou mergulhado nessa sopa de impressões até o pescoço. Vivo às portas do inferno, enlouquecido pela inconstância e pela dúvida. Nem dentro nem fora. Sinto-me como Cérbero. Não serei eu a viver deslocado da realidade? Uma pessoa à margem da história? Afastado da verdade, uma sombra?”. Só que não é ao reino de Hades que esse Cérbero involuntário está subordinado. Pode-se dizer que o destino dele se perdeu nos domínios de Chronos, aquele que, na mitologia grega, personifica o tempo, um ente que já existia antes mesmo de surgirem os primeiros titãs, deuses ou humanos.

Vamos ao enredo para tentar entender o porquê daquele desabafo shakespeareano feito pelo protagonista quase ao fim da jornada. Antes de mais nada, o nome do personagem em questão é Leonard Cameron e não, ele não é brasileiro. A história contada em Síndrome de Cérbero, apesar de começar em uma data de forte simbologia para o Brasil – em “algum dia de abril de 1964”, coincidindo, portanto, com o primeiro sinal da última ditadura que vivemos neste país – se passa inteiramente nos Estados Unidos. O início ocorre, mais precisamente, no dia 18 de abril de 1964, em uma pequena cidade do estado de Massachussets, chamada Greenville. Durante um piquenique em família, quando ele contava com dez anos de idade, um acontecimento marca o fim da infância de Leonard. O rapaz presencia o assassinato do pai, Robert Cameron, um político progressista com boas chances de se tornar senador, morto com um tiro na testa desferido por um criminoso nunca descoberto. Além de político em ascensão, Robert era o ídolo máximo do filho. Testemunhar o crime marca de tal forma o garoto que o mundo dele começa a perder o sentido na mesma hora. Ao longo de toda a narrativa, de modo obsessivo, a mente dele sempre divaga e retorna ao mesmo ponto, àquela primeira década de vida feliz ao lado da figura paterna.

Leonard Cameron tem uma chance de realmente voltar fisicamente àquele período do tempo, muitos anos depois do atentado. Em fevereiro de 2004, já com 50 anos, leva uma existência banal, sem amigos, sem amantes, sem parentes. Depois de se formar de modo não muito brilhante em física pela Universidade de Yale, conseguiu emprego em uma instalação particular de pesquisa no estado de Connecticut. Como superintendente de Operações da Fundação Leicester, surge a oportunidade de acompanhar e de favorecer com relatórios positivos – algo que representa verbas mais generosas e maior liberdade de ação – certo experimento de um dos cientistas da instituição, Barnard Caldwell. Trata-se de um equipamento que, aparentemente, permite deslocamentos no tempo com o vetor oposto ao da máquina imaginada por Wells no século XIX, sempre para o passado. Uma rápida explicação para o funcionamento do maquinário é dada na página 29. “Para facilitar, a descoberta final foi a seguinte: o tempo não é linear. Ele se comporta como uma corda com suaves ondulações. Barnard chamou cada ondulação de arco”, simplifica Leonard e complementa a seguir: “Imagine uma reta imaginária cortando essa corda no meio. Teremos vários arcos, cada qual com uma extensão de tempo definida. Cada extensão de tempo exatamente igual a 28h17m06s. Ou seja, qualquer coisa que volte ao passado, ocupará um dos arcos na corda de tempo de milhões de anos de nosso planeta”.

Com isso, foram abertas as portas para o atormentado Cérbero desafiar a lógica paradoxal de Chronos em sucessivas viagens com o objetivo de salvar Robert Cameron e mudar o próprio destino. Os efeitos colaterais não demoram a surgir. Alguns são puramente fisiológicos e, relativamente, fáceis de se contornar: após cada deslocamento, a cobaia humana perde grande quantidade de líquidos corporais, sofre de sensibilidade à luz e fica bastante desorientada. Outras implicações são mais complicadas de se descrever e bem mais graves. Além de emprestar certo ar sobrenatural a várias passagens do livro – mesmo que existam explicações racionais, ligadas à física de partículas – elas conseguem tornar a existência de Leonard cada vez mais miserável. Porém, por mais bem conduzidas que sejam as jornadas físicas ao passado, as mesmas que fazem a alegria dos fãs de FC, o grande curinga do livro está nas reminiscências do protagonista. A todo momento, mesmo em meio à mais fantástica experiência científica já realizada, a consciência do homem sempre volta a divagar por aquele período de seus primeiros 10 anos de vida, juntando peças e dando pistas falsas sobre acontecimentos dos quais os leitores acompanham desdobramentos cada vez mais complicados.

O autor se revela muito competente neste jogo de idas e vindas na narrativa e no tempo. Talvez o melhor exemplo esteja na abertura, no prólogo que antecede os curtos capítulos da obra. Naquelas 30 primeiras páginas, os momentos em que o narrador descreve pequenos detalhes de sua infância são carregados de impressões táteis, olfativas, gustativas, visuais e auditivas: a travessura com uma bicicleta, a última pescaria com o pai, os primeiros momentos do piquenique trágico, a posição do vento, a altura da grama. O contraste fica evidente com o desdém insensível, inodoro, insípido, translúcido e taciturno com que são comentados os eventos após a morte de Robert: a adolescência solitária, a primeira transa, a vida universitária, o emprego aborrecido e mesmo a dinâmica por trás da viagem no tempo. Ao longo das páginas, há outros bons exemplos desse controle narrativo seguro e eficiente que ajudou a dar forma a um dos mais bem construídos personagens da ficção científica nacional, dono de uma série de camadas de vida interior e de mudanças de humor que o tornam excepcionalmente crível.

Contudo, se o destaque fica para o lado psicológico de Leonard, a parte mais dinâmica também é uma atração e tanto. Por força das circunstâncias, no vaivém cronológico, ele é forçado a entrar em ação a todo instante, a se meter em lutas corporais, perseguições, fugas e afins, apesar de ser uma pessoa reconhecidamente fora de forma depois de meio século de ócio improdutivo. A sequência em que ele invade uma propriedade murada é especialmente digna de atenção e, provavelmente, carrega algo de auto-ironia, uma vez que a criatura é apenas cinco anos mais velha que seu criador, nascido em 1959. Tibor Moricz se mostra um ótimo escritor nessas pequenas partes que formam o seu romance de estréia. Não é de se estranhar que ele, um publicitário na metade profissional de sua vida, tem recebido prêmios por narrativas mais curtas. Dois de seus contos de temática FC já levaram honrarias que prestam homenagem a autores consagrados do gênero. No XI Concurso de Contos de Araraquara – Prêmio Ignácio de Loyola Brandão, “Ordem Crepuscular” – história de ambientação espacial à Jornada nas estrelas – foi uma das vencedoras. Da mesma forma, um exercício de estilo também sobre questões temporais, “Filamentos iridescentes como numa chuva de néon”, ganhou o I Prêmio Braulio Tavares, promovido pela maior comunidade em língua portuguesa dedicada à ficção científica do Orkut.

No conjunto de capítulos que formam o romance de 332 páginas, o autor também se sai bem, já que mantém um domínio da trama que, em mãos menos habilidosas, poderia fazer daqueles arcos e cordas temporais um verdadeiro nó cego. Pelo menos na maior parte do tempo. Quase ao final da obra, quando chega o momento de aparar as pontas dos paradoxos cronais e da parte policial, algo acaba sobrando. Apesar de um personagem prometer que “nada ficará sem justificação”, pelo menos uma pergunta se mantém sem resposta e dá a impressão de que este mesmo personagem, pelas regras do jogo, sabe mais do que deveria. É como um gol de mão em nosso time aos 44 do segundo tempo. A rigor, poderia ser uma deixa e tanto para um próximo livro e o enredo de Síndrome de Cérbero se prestaria perfeitamente a uma obra derivada, contada sob um outro ponto de vista, resultando em algo ao mesmo tempo complementar e com vida própria. Material assim já foi feito na literatura de FC pelo americano Orson Scott Card, em sua saga de Ender; ou ainda, para ficar no subgênero da viagem no tempo, em certos momentos da trilogia cinematográfica De volta para o futuro. Resta saber se esta é mesmo a intenção do autor e, claro, se o mercado nacional estaria maduro o suficiente para esse tipo de franquia.

Fora isso, escaparam alguns deslizes no texto que não resistiriam a uma revisão mais rigorosa. A maioria dos casos é de redundâncias, como aquele “imagine uma reta imaginária” do trecho citado páragrafos atrás. Mas há mais, há olhos que olham, pilhas de coisas empilhadas, elos que fazem ligação, pessoas certas de suas certezas, quem encara algo de frente e sobe em cima de algum objeto. Nada que comprometa o prazer de se ler uma boa trama bem contada, todavia são detalhes que poderiam ser resolvidos facilmente na edição. Mas a editora responsável pelo lançamento – JR, mais conhecida por trabalhar com publicações espíritas – também tem seus méritos por publicar uma obra muito bem acabada, com diagramação e tipologia agradáveis. Ficam registradas a ausência do crédito da pintura de capa e uma sugestão para aumentar a gramatura das páginas: em um livro repleto de paradoxos e de pistas espalhadas pelo texto, virar e revirar as folhas é uma necessidade constante. Quando elas são muito finas, como neste caso, acidentes tendem a acontecer...

Tibor Moricz, apesar de ter se lançado tardiamente ao mercado – nos textos de apoio do livro, informa-se que ele escreve desde a adolescência, mas vinha resistindo a publicar seu material –, mostrou-se uma ótima contribuição à FC nacional e ainda promete outras obras para breve. A mistura de viagem no tempo, aventura policial e romance psicológico tornam Síndrome de Cérbero um dos livros de literatura fantástica mais interessantes lançados nesta última, e produtiva, década no país. Quanto aos apaixonados por aquela neomitologia fundada por H. G. Wells, há pouco mais de 110 anos, esses ganharam uma nova obra para influenciar mais sonhos que envolvam desafios aos limites impostos por Chronos. Sonhos que vão continuar enquanto ciência e tecnologia não os tornarem realidade, como elas fizeram com nosso desejo de voar. A vantagem é que isso até pode demorar outros tantos milênios, a exemplo dos que separaram a lenda de Ícaro da invenção do avião; afinal, no caso das viagens no tempo, alguns milênios a mais ou a menos não representam nada no fim.

Serviço: O livro pode ser comprado virtualmente na Saraiva, Cultura, Fnac e Cia dos Livros. O preço normal é R$ 38 reais, mas ele está em promoção por R$ 24,50 no www.submarino.com.br

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