quinta-feira, 1 de maio de 2008

O retorno do príncipe

Pode parecer bizarro para a maioria das pessoas dizer que uma das séries cinematográficas mais identificadas com a ficção científica não é classificada como tal pelos críticos mais puristas. Para boa parte dos especialistas, faltaria às duas trilogias de Guerra nas estrelas especifidades para inclui-las naquela classificação. Faltaria, basicamente, ciência, a busca pelo conhecimento para sustentar as proezas tecnológicas imaginadas nos anos 70. O argumento é que todo o cenário espacial pode ser substituído por equivalentes low tech sem causar prejuízo à epopéia dos Skywalker. Algo que a série de livros iniciada com Eragon – que até já foi adaptado para o cinema – de autoria do jovem Christopher Paolini, parece tentar provar, ao trocar os sabres de luz por espadas comuns, naves por dragões e ainda assim manter quase intocado o núcleo da saga jedi. Segundo esse ponto de vista, mesmo sendo sinônimo de FC para milhões de fãs, a obra mais famosa de George Lucas deveria ser etiquetada como fantasia tecnológica, e seria mais aparentada dos escritos de J.R.R Tolkien que dos textos de H.G. Wells. Sempre que a questão é levantada na presença, física ou virtual, de cultuadores de FC, mobiliza opiniões entusiasmadas. Desde o final de 2007, esse tão controverso gênero fronteiriço ganhou um novo representante literário para alimentar mais discussões: Hegemonia – O herdeiro de Basten, livro escrito por Clinton Davisson e lançado pela editora Arte e Cultura.

Apesar de o nome do autor não dar pistas – ele foi batizado em homenagem a um físico americano vencendor do prêmio Nobel –, trata-se, sim, de uma obra nacional. Davisson nasceu em Volta Redonda, formou-se em jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora, de Minas Gerais, e voltou ao estado do Rio de Janeiro, mais exatamente à cidade de Macaé, onde trabalha como jornalista e cartunista. Ele já havia se aventurado na FC em 1999, ao lançar um livro que misturava futebol e futurismo, Fáfia – A copa do mundo de 2022, mesma proposta da coletânea Outras copas, outros mundos publicada um ano antes. Mas Hegemonia é uma aposta mais ambiciosa. A idéia básica acompanha o autor há mais de 30 anos, desde que tinha apenas cinco anos de idade, e, segundo informaçõe nos textos de apresentação da obra, a produção do texto consumiu sete anos: no ano 2000, uma versão prévia da trama ficou em terceiro lugar no concurso promovido por uma revista especializada no gênero, a Sci Fi News. Todo esse trabalho foi feito para estruturar o livro que se pretende o primeiro não de uma, mas de duas trilogias – e essa é apenas mais uma semelhança com aquela história ocorrida há muito tempo, em uma galáxia muito distante.

Já que estamos voltando no tempo, vamos dar uma recuada de meio milênio para entender o título da obra. A história começou com o filósfo italiano Nicolau Maquiavel, em 1513. Após ter servido como secretário de estado em uma experiência republicana em sua cidade natal, Florença, o pensador foi expulso da região quando os Médici retomaram o governo. No exílio, ele escreveu sua obra mais famosa, O príncipe, um texto marcado pelo pragmatismo que dá conselhos a um soberano hipotético sobre as reais condições por trás da conquista e da manutenção do poder. Mesmo país, quatro séculos depois, alguns dos conceitos maquiavélicos foram atualizados por outro filósofo, Antonio Gramsci, nascido na Sardenha. Fundador do Partido Comunista Italiano em 1921, apenas cinco anos mais tarde ele acabou sendo encarcerado pelo governo fascista que tomou conta da Itália. Na cadeia, foram produzidas suas teses mais conhecidas, postumamente reunidas nos Cadernos do cárcere, entre elas as que davam a receita para um novo ente alcançar o poder: o “moderno príncipe”. A diferença básica entre as idéias de um pensador e outro é que o florentino falava a uma pessoa física; já o sardo imaginava um organismo coletivo que deveria garantir as condições ideais de controle social, ou seja, da conquista da hegemonia. “A hegemonia é a capacidade de um grupo social de assumir a direção intelectual e moral sobre a sociedade, sua capacidade de construir em torno de seu projeto um novo sistema de alianças sociais, um novo bloco hitórico”, esse é um conceito gramsciano citado logo no início do livro nacional.

O escritor fluminense criou sua obra entre esses dois pólos, o dos soberanos de fato e o de uma estrutura coletiva, ambos buscando manter a direção intelectual e moral de suas sociedades. O ente coletivo, o “novo príncipe”, é representado por nada menos que um planeta inteiro, Dison, um mundo cercado por uma concha que o torna inexpugnável. Seus habitantes se denominam simplesmente de a Hegemonia e, de fato, assumem o controle de toda uma galáxia. O poderio bélico e cultural dos disonianos é fortíssimo, porém é possível perceber que se trata de um império atravessando o período de decadência, com vários de seus cidadãos se alienando da vida real em busca fugas na realidade virtual, por exemplo. Apesar de toda a influência que possui, a Hegemonia atual parece ser apenas uma sombra do que foi a geração que fundou tal império em tempos antigos; uma casta de seres que, literalmente, tinha o poder de criar mundos. Não apenas Dison como os outros quatro planetas do sistema solar em que se passa a história foram construídos por esses misteriosos fundadores. Isso inclui Elôh, o mundo do protagonista do livro, Ron Ger Schowlen, um príncipe na tradição maquiavélica do termo.

Ron, o herdeiro do subtítulo do livro, passou dez anos naquela capital do império se preparando para se tornar um verdadeiro cidadão de Dison. Uma grande frustação o afasta desses planos e o faz voltar àquele planeta periférico, mais especificamente ao reino de Basten, governado por seu irmão bem mais velho, Shodan. A história do livro é narrada pelos pensamentos do príncipe, gravados em um equipamento acoplado a uma poderosa armadura de combate que é o equipamento padrão entre os disonianos, a derma. Desde o início percebemos que isso não é sinônimo de uma versão isenta dos fatos, já que o rapaz tem a possibilidade de editar a gravação de tais memórias, cortando trechos indesejados, por exemplo. Mesmo assim, o registro pessoal, e um tanto improvisado, se torna a base para historiadores de um futuro distante analisarem os fatos que estariam por provocar uma verdadeira revolução no sistema da Hegemonia.

De início, os registros dão conta do tédio do herdeiro na volta ao lar – uma cidade gelada habitada por humanóides, assim como ele próprio, totalmente albinos – e de uma confusa e mal resolvida relação com o seu casal de irmãos. A situação muda quando surge em Basten um grupo de gelfos, pequenos seres marsupiais, pedindo auxílio para defender sua distante vila do cerco de dragões. Sim, dragões, do tipo que voam, cospem fogo e ainda por cima falam – existe até mesmo um dicionário do dialeto das criaturas nos apêndices do livro. A partir daí, Hegemonia torna-se uma história clássica de jornada e de como ela vai modificar o protagonista, jogando por terra vários de suas idéias pré-concebidas. Como a tecnologia dos planetas periféricos é muito inferior à de Dison, as enormes distâncias do planeto Elôh são vencidas lentamente, com o auxílio de enormes, mas comparativamente rudimentares, barcos e carros de combate. Ron tem assim a oportunidade de analisar com ceticismo científico a bizarra geografia de seu mundo natal e os costumes dos vários seres que o habitam, desde guerreiros anfíbios até burocráticos insetóides. Essa lenta construção de cenário e de personagens é o melhor do livro. A narrativa de Davisson deixa o leitor tão envolvido nos diferentes aspectos sociais, religiosos e culturais daqueles povos a ponto de mal se perceber que é apenas na metade da obra, mais precisamente na página 129, em que ocorre a primeira cena de ação da história. É quando Ron Ger faz uso das lâminas de prótons, armamento embutido nos antebraços de sua armadura, um cruzamento entre os sabres de luz dos cavaleiros jedis e as garras de adamantium do mutante Wolverine.

Deste ponto em diante, acaba a fase picaresca e o modo aventureiro passa a ser dominante. O embate entre os gelfos, auxiliados pelos guerreiros comandados por Ron e Shodan, contra a raça dos beligerantes dragões é sangrenta e acarreta várias baixas de ambos os lados do front. Na maior parte das vezes, esta segunda metade do livro consegue manter qualidade semelhante à primeira, pois as descrições dos armamentos e as estratégias adotadas são vívidas o suficiente para manter o interesse. É só na última missão, algo anunciado como sendo uma tarefa muito mais difícil que todas as desventuras anteriores, em que o ritmo cai. Em pouco mais de 20 páginas, está tudo solucionado, com um desfecho um tanto deus ex machina que pode deixar um sabor anticlimático. Ainda mais se o trecho comprimido entre as páginas 247 e 259 for comparado com o cuidado com que o escritor vinha conduzindo a trama até aquele momento.

Como não poderia deixar de ocorrer numa publicação de forte inspiração maquiavélico-gramsciana, antes de chegar ao fim dos combates, vamos perceber que há muito de manipulação e dissimulação no conflito. O melhor é que o autor não força a mão em didatismo ou pedantismo ao se utilizar de tais conceitos. Clinton Davisson consegue em Hegemonia o raro feito de produzir uma obra que, ao mesmo, tempo diverte o leitor, com uma história honesta e eficiente, e ainda explora temas profundos, que, infelizmente, não costumam ser matéria-prima para o entretenimento de massa. E ele prova que só não o é por falta de vontade de outros criadores, o casamento pode ser feito, sim, de maneira muito mais simples que sonha nossa vã filosofia. Não é preciso, e talvez nem mesmo seja desejável, que o leitor seja um especialista em ciências políticas ou um físico teórico para se divertir com a linguagem simples e com todas as subtramas do livro. É bem verdade que de um cartunista seria de se esperar uma dose maior de humor no texto, o que aproximaria o livro nacional de obras como as séries Discworld e O guia do mochileiro da galáxia, respectivamente de Terry Pratchett e de Douglas Adams. Talvez, passado o peso da estréia da saga com Hegemonia – O herdeiro de Bastem, o autor se solte mais nos próximos cinco volumes previstos.

Mas há outros detalhes ainda mais urgentes para se resolver nos próximos capítulos. A edição do primeiro livro certamente merece elogios, a capa, por exemplo, de autoria do ilustrador, quadrinista e escritor Osmarco Valladão, deve ser a mais bonita já produzida para uma obra nacional de FC. Vai ser muito bom ver outros trabalhos dele estampando as demais edições da série. Porém, na parte de revisão de texto, a Editora Arte e Cultura precisa melhorar bastante. Ao longo do texto há vários lapsos que poderiam ser evitados, como hífens ausentes, como em “bem vindo” na página 38, ou sobrando, “anti-matéria”, página 248; e expressões truncadas e redundantes, a exemplo de “teorias variadas variando”, da página 205, ou “a resposta para a pergunta (...) não foi respondida”, na página 249. Substituir a fonte do texto também poderia ser uma boa idéia, a utilizada neste livro é bastante carregada, parece que todas as páginas foram escritas em negrito, o que, às vezes, torna a leitura um tanto desagradável.

Nos apêndices do livro, além daquele já comentado dicionário da língua dos dragões existe um interessante glossário para ajudar o leitor a entender vários dos termos exóticos empregados ao longo do texto. A questão é que se pode notar algumas ausências nos verbetes. Um deles é referente à raça de uma das personagens mais interessantes do livro, a falastrona capitã Marla Trillina: não aparece naqueles textos detalhes sobre os merfolks, seres anfíbios de grande importância para os eventos narrados neste primeiro volume. Por outro lado, há entradas que dizem respeito a acontecimentos que só serão vistos com o desenrolar da dupla trilogia. Curiosamente, isso torna parte do texto perigosa para quem não gosta de ter contato com spoilers. Caso você se enquadre neste grupo, faria bem em evitar os termos “Brubraker”, “Brian Brubraker” e “Drallak”. Considere-se avisado.

E é só com o desenrolar da saga que poderemos avaliar se o autor vai dar conta de desenvolver todas as pontas deixadas soltas no capítulo inicial. Ainda há muito o que se responder, como a origem de alguns nomes de personagens, de deuses, de regiões, de conceitos teóricos e até de objetos que são muito próximos a nós para surgirem, sem explicação, em um universo aparentemente tão distante e futurista. Será nesses livros também que veremos se o escritor fluminense vencerá o desafio de cruzar a fronteira dos gêneros da FC e da fantasia, da ciência e da magia, e assim fazer justiça às palavras do veterano escritor Jorge Luiz Calife, que assina o prefácio da obra: “Clinton Davisson consegue uma união perfeita entre a ficção científica hard e a espada e magia. Se fosse a obra de um autor norte-americano ou europeu, Hegemonia – O herdeiro de Bastem já seria uma realização notável. Aqui entre nós, enfrentando as dificuldades que todo autor brasileiro enfrenta, esta obra é quase um milagre a ser celebrado”. A se conferir.

Serviço: O livro custa R$ 42,90 nas livrarias Cultura e Saraiva, tanto nas respectivas lojas de todo o Brasil, quanto on-line. Mas a livraria Antígona on-line ( www.antigonalivraria.com.br )está com preço promocional a R$ 30.

Um trailer do livro pode ser visto em

http://www.youtube.com/watch?v=cZUKEkn9avg

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