quinta-feira, 1 de maio de 2008

O efeito orégano

Uma brincadeira com bonecos da linha Playmobil acabou inspirando, 30 anos depois, a criação de uma das mais promissoras séries recentes da ficção científica nacional. Em seu DNA, Hegemonia – O herdeiro de Basten, primeiro capítulo de uma série de seis livros, carrega ainda as experiências que seu autor teve ao testemunhar à repressão a movimentos grevistas em sua cidade natal, Volta Redonda, as contradições religiosas que envolviam a família e vizinhos, além de uma enorme variedade de filmes, livros e seriados de TV consumidos ao longo destas décadas. Na entrevista a seguir, concedida a partir do cyberpunk município fluminense de Macaé, onde ele trabalha como jornalista, o escritor compara a ótima recepção de sua última publicação com a do livro anterior, também de FC, Fáfia; dá informações exclusivas sobre o futuro da saga; e ainda explica sua interessante teoria denominada de “efeito orégano”. Com vocês, o xará do físico que comprovou o comportamento de onda dos elétrons, Clinton Davisson.

Apesar de trabalhar cotidianamente com a não-ficção, você já lançou dois livros de ficção científica. Além do Fáfia e do recente Hegemonia, já foram produzidos muitos outros textos literários, como contos ou roteiros?


Sim, na área de literatura, eu já havia escrito um romance aos 14 anos, em 1985, chamado Armadilha espacial. Tenho muitos contos, crônicas que publico no jornal e fiz muito jornalismo literário em Macaé. Já escrevi peças de teatro em Volta Redonda nos anos 80. Eu fazia parte de um grupo da prefeitura da cidade e a gente encenava as peças no meio da rua, na inauguração de praças, etc. Também sou músico, fui vocalista de algumas bandas em Juiz de Fora e compus várias músicas. Ultimamente tenho investido em roteiros e estou trabalhando com um projeto de uma produtora de São Paulo sobre um curta-metragem sobre viagem no tempo. Ao mesmo tempo, por mera coincidência, estou levantando fundos para outro curta, em Macaé, também sobre viagem no tempo.

Em um dos textos de apresentação de seu último livro, informa-se que a idéia por trás da saga já estava embrionariamente na sua imaginação desde os cinco anos de idade. Poderia fazer um resumo desses mais de 30 anos de planejamento, de como foi a evolução da trama até ela começar a incluir conceitos de teoria política, ciências exatas e sociais?

Pois é, começou antes mesmo de aprender a ler, com uma brincadeira de Playmobil com meu irmão. A gente brincava de super-herói, de Guerra nas estrelas, essas coisas. Só que, como ele era o irmão mais novo, eu, como todo bom tirano, não deixava que ele fosse o Han Solo, o Luke, nem o Darth Vader. Como ele também não queria ser a Princesa Leia (risos), eu inventava personagens para ele. Com o tempo, a gente acabou abandonando o Han Solo, o Luke e o Darth Vader, para ficar com os novos personagens. Um deles era o Ron, o protagonista deste primeiro livro. Com certeza Ron nasceu em 1979, como um velho durão, mas também paizão. Muito inspirado no personagem Jock Ewing na telessérie Dallas, também com uma pitada daqueles mestres de filmes de kung fu. Daí os cabelos brancos e o sobrenome Schowlen, que é um anagrama para Shaolin. Como vê, até por causa da minha idade na época, a evolução se deu através de uma linha do imaginário puramente infantil. Por exemplo, quando eu assisti à série Cosmos do Carl Sagan em 1980, eu tinha nove anos e escutei, pela primeira vez, falar da esfera Dyson. Então pensei: “Nossa, isso é muito maior do que a estrela da morte!”. A partir daí, a esfera Dyson entrou na brincadeira. Com o tempo, tudo que eu via, estudava, assistia, lia, escutava, era assimilado pelo universo disoniano. (A razão de ser esfera Dison, e não Dyson no livro, tem uma razão que eu não vou contar). Com o passar dos anos, a história foi amadurecendo e ganhando contornos mais complexos à medida que eu ia absorvendo coisas mais diversificadas. O lado infantil foi dando espaço a algo mais profundo. Mas a idéia de usar ciências sociais, como política, sociologia, teologia e antropologia, na história também veio bem cedo. Meu vizinho, por exemplo, era evangélico e veio uma vez me explicar que meus pais iriam para o inferno porque eram kardecistas e crioulos. Eu tinha sete anos e fui perguntar no centro kardecista sobre o assunto e aí me explicaram que quem ia para o inferno eram os macumbeiros (era como eles se referiam às religiões africanas). Chegou a um ponto em que fui falar com os tais macumbeiros e eles disseram que eram os católicos que iriam para o inferno. Essa discussão está presente neste primeiro livro. Até a questão da política também surgiu na infância, porque cresci em Volta Redonda de frente para a Companhia Siderúrgica Nacional - CSN. Lembro que, com menos de 10 anos de idade, eu assistia a verdadeiras guerras em frente à minha casa, por causa das greves. Em tempos de ditadura, greve na CSN tinha tiroteio, quebradeira, tudo. Meu contato com política começou assim, na prática antes dos livros. Talvez por isso, nunca me deixei iludir com ideologias. Jamais vou escrever um livro fazendo apologia ao capitalismo, anarquismo ou ao comunismo, o que é uma pena, porque dá dinheiro (risos). Desde muito cedo, eu aprendi que o ser humano chegou a um alto nível tecnológico no que se refere às ciências exatas, mas ainda está engatinhando em ciências sociais. E não entendo porque existem tão poucas obras explorando isso. E algumas o fazem de maneira assustadoramente ingênua, criando vilões capitalistas ou comunistas. Ora, pensar em política e nos problemas sociais é a grande pauta do século XXI. Eu hoje vivo em Macaé onde se tem tecnologia para se tirar petróleo de 3 mil metros de profundidade, mas falta água na cidade, temos problemas de saneamento básico, moradia e está na lista das mais violentas do Brasil e, consequentemente, do mundo. Macaé é cyberpunk! (risos)

Em 2000, logo após a publicação de seu livro de estréia, uma versão preliminar de Hegemonia venceu um concurso promovido por uma revista especializada em FC. Qual foi a importância de tal incentivo para a concretização do projeto?

Bom, eu contava as histórias também desde que tinha uns 10 anos para alguns amigos da escola. Mas foi só depois do prêmio que eu percebi que este universo tinha um potencial forte. O conto foi escrito às pressas, cheio de escorregões e, ainda assim, conseguiu se destacar em um concurso em nível nacional. Não me iludi pensando que era um escritor maravilhoso, acho que tenho um longo caminho pela frente, mas eu tive a confirmação de que esse universo tinha potencial para mexer com as outras pessoas e não era apenas uma loucura particular minha e do meu irmão. A partir daí, passei a mostrar trechos e histórias para outras pessoas com mais confiança.

É possível comparar a aceitação de seus dois livros? Como foi o impacto inicial de Fáfia, em 1999, e o de Hegemonia agora? O que mudou entre um ponto e outro em relação à sua experiência como escritor?

A aceitação do Fáfia tem dois lados extremos. De um lado, eu estava numa faculdade federal, e, lá dentro, o Fáfia foi recebido com entusiasmo por alunos e professores. Por quê? Porque é um livro extremamente pessoal que tem um lado metalingüístico forte e perceberam isso lá dentro. Do outro extremo, a casca dele, mistura futebol, ficção científica e muito humor. Era muito leve, muito Sessão da Tarde. Então o aspecto comercial não funcionou. Algumas pessoas vieram me falar que ficção científica brasileira tinha que ser séria, não podia brincar porque carecia de credibilidade. Mas, talvez por isso, tenha tão pouco humor em Hegemonia. Só depois que o Jorge Calife fez uma resenha elogiando o Fáfia há uns três anos, que perdi um pouco o rótulo de “maluco que escreveu um livro doido”. Agora, a reação com o Hegemonia está sendo ótima. É um livro pessoal também? Sim, mas tive o cuidado de embalar em uma casca mais palatável e o tema é muito mais denso. O livro vem ganhando uns fãs entusiasmados, gente querendo logo a continuação, perguntando se não tem camisa para vender, até pessoas dizendo que tem que virar filme. Mas teve também o que eu chamo de “efeito orégano”. Eu explico: uma vez eu trabalhei como cozinheiro em uma cantina de colégio que não tinha fama muito boa. Logo no primeiro dia, fiz pizza e coloquei o orégano dentro da pizza, como via fazer nas melhores pizzarias. Mas a vida é uma caixinha de surpresas, não é que vieram vários alunos reclamar, dizendo que a pizza estava sem orégano? Eu então abria a pizza do cara e pegava com a mão o orégano e mostrava. Com o Hegemonia percebi essa desconfiança. Eu coloquei muitos detalhes sutis e deixei muitas pontas soltas para responder durante a trilogia, porque não tem graça entregar o ouro logo de cara. Mas então teve vários amigos, bem intencionados até, me chamando no canto e dizendo: “Cuidado, você esqueceu de colocar essa explicação no livro!”. Eu pergunto: Por que o J.J. Abrams pode deixar toda a primeira temporada de Lost sem responder “O que a Katie fez?” e eu não posso? Mas existe isso no Brasil, às vezes você tem que abrir o livro e mostrar o orégano para mostrar que sabe cozinhar.

Você tem o rumo de todos os próximos cinco livros traçados em sua mente, ou mesmo esboçados no papel – ou na tela do computador? Sabe em detalhes como vai ser a conclusão de sua dupla trilogia ou ainda há trechos em aberto?

Eu costumo dizer que Hegemonia não é uma história e sim uma doença crônica que eu carrego. Eu sei como tudo termina, tenho até biografia de todos os personagens, o desafio para mim não é a história em si, mas como contá-la. Mas claro que há vários trechos em aberto, caso contrário, tiraria a graça de escrever. A personagem Marla Trillina, por exemplo, nasceu só em 2004 e não estava presente no conto original. E sim, tenho uma pilha de cadernos com rabiscos, alguns com mais de 20 anos, a maioria sobreviventes das minhas tentativas frustradas de começar a escrever a história. No computador eu tenho a cronologia de tudo o que vai acontecer. O meu problema sempre foi não saber por onde iniciar a saga, então eu tive essa idéia: ao invés de começar pelo começo, por uma questão de princípios, eu fiz uma prequel (risos). A primeira trilogia está sendo um prelúdio da história original.

Por falar em duas trilogias, é inevitável a comparação entre sua epopéia e a dos filmes de Guerra nas estrelas. Até o lançamento do primeiro livro leva a isso, já que ele foi apresentado ao público durante um evento dedicado aos fãs da série, a Jedicon, que ocorreu em São Paulo no final de 2007. Os filmes de George Lucas são mesmo sua principal referência no gênero? Que outras obras, cinematográficas, televisivas ou literárias, servem de inspiração para seu trabalho?

Eu falo que George Lucas é meu Flamengo. Aquela paixão de criança que não vai morrer. Eu sou daquela categoria de fãs de Guerras nas estrelas que ama a saga mesmo sabendo de todos os defeitos e também dos muitos acertos de George Lucas. Fui um dos “fundadores” do Jedicon e tive a honra de ser o apresentador do primeiro evento em 1999 em São Paulo. Mas acho que há muito tempo deixei Star wars para escanteio como referência principal. De modo algum menosprezando a série, porque, mesmo a nova trilogia, que tanto gostamos de criticar, tem coisas que acho geniais, que poucos perceberam, como a ascensão de Palpatine ao poder, escancarando as falhas na democracia ou a grande sacada de mostrar Anakin tendo que escolher entre dois lados que mentem e tentam manipulá-lo. Como se ele fosse um eleitor tentando descobrir qual dos partidos é o menos pior. Mas acho que minhas maiores referências hoje são literárias. Comecei a ler bem garoto, todos os dias eu ia pegar livros na biblioteca da cidade. Pegava um do Julio Verne, lia em um dia e entregava no outro para pegar o H.G. Wells, depois do Tolkien, do Alexandre Dumas e assim por diante. Me identifico com o Tolkien pelas biografias que li; temos maluquices semelhantes, manias parecidas como criar mundos, línguas, costumes de seres que você nem sabe se vai usar para alguma coisa. Mas acho que o Frank Herbert é uma influência maior, porque ele provou que se podia fazer ficção científica inteligente e eficiente usando elementos de sociologia e política. Fora dessa esfera de ficção científica, tenho como referência o Dostoievski, adoro a maneira como ele cria personagens maravilhosos. O Herman Melville, o Borges, o Guimarães Rosa, a Clarice Lispector, o Machado de Assis, o Douglas Adams. Dos vivos, sou fã da britânica Sue Townsend, pouco conhecida no Brasil, o Stephen King que é uma espécie de Spielberg da literatura, só vão aceitá-lo como genial depois que morrer porque faz um sucesso exagerado. E, principalmente, o Carlos Heitor Cony, que conheci pessoalmente numa aventura entre Rio e Juiz de Fora e que, para mim, é o maior escritor brasileiro vivo. Seu livro de estréia, O ventre, sobre a bizarra história sobre o relacionamento entre dois irmãos e a paixão de ambos pela mesma mulher, narrado em primeira pessoa, é para mim, a maior influência direta a este primeiro Hegemonia.

Como foi o contato inicial com a editora que publicou Hegemonia – O herdeiro de Basten? A vendagem deste primeiro capítulo de sua saga já lhe garantiu o contrato para os próximos lançamentos?

Fiquei sabendo através de uma lista da discussão que a Arte & Cultura estava pretendendo lançar um livro de ficção científica e estava aceitando originais. Mandei três capítulos e fui aprovado uma semana depois. A partir daí, foi uma suadeira para terminar em oito meses o que eu não conseguia concluir há sete anos. Sobre a continuação, sim, as vendas estão boas e eu tenho a sorte de ter, no meu editor, um verdadeiro fã que acredita no sucesso do livro já faz planos para lançar no exterior, fazer HQ e até videogame. Só acho que, por isso mesmo, eu tenho que suar muito, a exemplo do que o André Vianco, por exemplo, fez: correr mesmo atrás do leitor, ir a eventos, livrarias, para que a continuação seja publicada como bom negócio para a editora e não como um risco. Mas, ao que tudo indica, devo publicar a continuação em 2009. A propósito, deixa eu dar um furo de reportagem para você, o segundo livro já tem nome: Hegemonia – Os anéis de fogo. Quem leu o primeiro, já sabe que anéis são esses...

Além de jornalista, você é cartunista. O universo que você criou é muito visual, com naves gigantescas, planetas exóticos e aliens multiformes. Já pensou em adaptar a história para os quadrinhos?

Na verdade, nos quadrinhos que eu faço, Os invasores, há uma participação dos frânios, a raça de insetos da Hegemonia em uma versão bem humorada. Assim como no livro, eles são divididos em duas sub-raças, as mabéias, as baratinhas marrons e os slystacs, verdes. A inspiração veio do tempo em que eu trabalhei na Petrobras onde há essa diferença de classes, os concursados, de crachá verde e os terceirizados, de crachá marrom. Mas, como eu disse, já existe esse projeto da editora de levar o primeiro livro para os quadrinhos. Tive várias conversas sobre o assunto com o Osmarco Valladão, criador da capa do livro, mas queríamos fazer algo com a qualidade comparável a da capa. Para isso, precisaria de, pelo menos, um ano trabalhando intensamente e exclusivamente. Não sei se isso é viável no Brasil.

Seu nome é o mesmo do de um físico americano ganhador do prêmio Nobel nos anos 30. Partindo do pressuposto que isso não é uma coincidência, qual foi a importância desta ciência na sua formação intelectual e qual a sua intimidade com o assunto, já que neste seu livro surgem vários conceitos teóricos próprios da física, como as propriedades de estruturas giga e nanométricas ou ainda a conversão de matéria em energia?

Meu pai é formado em física e dá aulas até hoje em Juiz de Fora. Daí veio esse nome esquisito que eu rejeitei desde pequeno, tanto que “criei” um apelido para mim. Todo mundo da família e os amigos próximos me chamam de “Tato”. Quando eu jogava futebol, estava escrito “Tato” nas minhas costas e não Clinton Davisson que, para mim, é quase um nome artístico. Mas eu herdei do meu pai a paixão pela física e astronomia. Ele tem, até hoje, uma pilha de enciclopédias de ciências; antes de aprender a ler, eu folheava aquelas fotos de foguetes, planetas e achava o máximo. Meu pai também adora ficção científica, só que muito mais para o lado de Star trek. Da minha mãe herdei o amor pela literatura, ela me fez ler o meu primeiro autor nacional, o Luiz Fernando Veríssimo, que é fera. Aliás, sempre me incomodou essa separação entre literatura e ficção científica. Vejo certos autores que se esmeram em conceitos científicos e esquecem de criar personagens que vão além de um cientista que está ali para vomitar conceitos. Se meu pai e minha mãe puderam se casar, a ficção científica também pode casar com a literatura, não é? (risos)

Fora a conclusão da saga da Hegemonia, você tem planos para trabalhar com a FC em outros projetos?

Em ficção científica tenho apenas estes curtas que devem ficar prontos até o fim do ano e o meu projeto de mestrado que envolve ficção científica no cinema dos anos 80. Depois da terceira parte do Hegemonia, vou dar um tempo na FC e engatar um romance que venho rascunhando há um tempo que se chama O moinho de vento sobre a juventude dos anos 80, um projeto bem pessoal e que não vai ter nada de ciência, ou sobrenatural. Os primeiros rascunhos ficaram parecendo uma versão abrasileirada do The body do Stephen King, que deu origem ao filme Conta comigo, por isso achei que precisava amadurecer um pouco antes de retomar. A longo prazo, tenho um projeto de romance histórico sobre a Guerra do Paraguai, também com nada de ficção científica.

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