Nova Iorque, Londres, Tóquio. Quem acompanha obras de ficção científica em seus diversos formatos - seja em livros, quadrinhos, filmes, seriados de TV, animações, videogames ou jogos de RPG - está sempre sendo apresentado a visões futurísticas daquelas metrópoles mundiais. Menos usual é acompanhar especulações do tipo em lugares célebres por apresentar forte resistência a mudanças, mais afeitos às tradições que ao ritmo adrenalizado das revoluções tecnológicas. Lugares assim como a infinidade de pontos pretos que sinalizam nos mapas os municípios de Minas Gerais, o estado-símbolo do tradicionalismo quando se pensa no Brasil, algo que pode ser resumido em uma frase famosa de um filho da terra, Otto Lara Resende: "Minas está onde sempre esteve". Por isso mesmo, pelo fato de usar Belo Horizonte e outras cidades mineiras ainda lutando para preservar suas características históricas em um futuro não tão distante - ou "no outono do século XXI" - é que Quintessência já começa surpreendendo os leitores.
O livro representou a estréia de um novo escritor brasileiro de FC: Flávio Medeiros Jr., médico especializado em oftalmologia nascido, criado e formado na capital mineira, que em 2004, mesma época de seu aniversário de 40 anos, resolveu se lançar na nova atividade pelas mãos da conterrânea editora Monções. A segunda surpresa da obra é a constatação de que seu autor levou bastante a sério a novidade, muito mais que a média dos iniciantes neste mundo complicado da literatura de entretenimento nacional. Na criação da intrincada trama de Quintessência, ele demonstrou que décadas acumuladas de leitura - principalmente de quadrinhos, já que as referências a eles são onipresentes na obra - acabaram servindo de formação para um contador de histórias muito bom.
Nas primeiras 20 páginas do livro, a impressão que pode passar é a de que estamos diante de um Robin Cook made in Brazil. Flávio Medeiros Jr. tem muitas semelhanças com aquele escritor americano que não só é médico, como também conta com especialização em oftalmologia e tem um passado de professor universitário. Cook é considerado o responsável pela introdução de temáticas ligadas à medicina na literatura popular, sempre as misturando com outros gêneros: suspense, horror e até ficção científica. Para completar, tal e qual o brasileiro novato fez em seu primeiro livro, o veterano é conhecido por dar títulos com apenas uma palavra a suas obras, alguns exemplos são Febre, Coma, Cérebro, Invasão. A impressão é reforçada por algo a mais que tais coincidências. Naquele trecho inicial, o detetive Tomaz Rizzatti, personagem narrador do livro, passa por uma longa - e realista - consulta em que é diagnosticado como portador de epilepsia do lobo temporal, condição muito rara por atingir duas áreas distintas do cérebro e provocar súbitos apagões de consciência.
Mas esse é só o início da história. Ao longo de 232 páginas, Medeiros vai bem além da sessão Plantão Médico, há muitas outras referências, diretas ou indiretas, em seu trabalho. O caso em que o protagonista está envolvido - a serviço de uma força policial que unificou agentes civis e militares - é a investigação de uma série de ataques terroristas em sua cidade. O atentado que abre o livro é cometido em um shopping de Belo Horizonte: um homem não-identificado abre fogo contra visitantes do local e, quando parece que vai ser capturado pela segurança, comete suicídio graças a um poderoso material bélico de uso controlado. Pistas vão aparecendo e tudo indica que há uma bizarra ligação com outros casos de assassinos suicidas, um deles investigado anos antes pelo próprio Rizzatti, o de um franco-atirador em ação na Lagoa da Pampulha, e ainda muitos outros, espalhados entre Europa e EUA. Há motivos para se supor que todos estes crimes tenham sido cometidos por uma mesma pessoa, apesar desse detalhe inquietante levar a se pensar na existência de um suicida serial.
Diante do alcance globalizado dos atentados, que podem estar sendo coordenados por um terrorista internacional, igualmente dado como morto, Tom Rizzatti carrega uma sombra em suas andanças pelos municípios mineiros: um agente paulista da Interpol. O que começa como rivalidade profissional - e aquele sentimento arisco bem mineiro - vai se degenerando em desconfianças mútuas, perseguições automobilísticas, tiroteios, trocas de identidades e todos os componentes que tornam um thriller apto a receber a classificação chavão de "cinematográfico". Essa porção do romance é marcada por descrições rápidas e precisas das paisagens reais, ainda que em suas versões futurísticas. Lembra um tanto os pontos fortes do inglês Frederick Forsyth, velho mestre dos livros de espionagem pé-no-chão, como O dia do Chacal, O Manipulador, Dossiê Odessa, Ícone e longa lista.
O clima policial do livro continua mesmo após a grande virada que ocorre pouco antes da metade de suas páginas. É uma descoberta feita pelo detetive narrador que faz a trama levar suas características de FC a outro nível, para além da descrição de traquitanas tecnológicas e previsões futebolísticas. Tentar comentar, neste ponto, alguma referência da literatura ou do cinema seria entregar surpresas que aguardam os futuros leitores. Porém, mesmo a reviravolta não muda o rumo de película impressa de Quintessência. Antes pelo contrário, a velocidade da história aumenta, o número de personagens que se alternam e deixam escapar mais algum detalhe do enredo se amplia, sem perder o foco geral. Na verdade, o autor só altera mesmo o ritmo no clímax, nas aproximadamente 40 páginas finais, nas quais o livro deixa de lado o teor cinematográfico. Com um longo, muito longo, quase interminável diálogo - praticamente um monólogo - o mais correto seria dizer que, ao final, o andamento está mais para o do teatro que para o da tela de cinema.
Por sorte, Medeiros é hábil na construção das falas de seus personagens e, com isso, o texto continua fluindo nas revelações finais de sua obra. Para ser mais exato, nesse ponto o autor dedicou especial atenção a detalhes que costumam ser ignorados por muitos escritores de ficção científica, tanto brasileiros quanto estrangeiros. É o caso da especulação sobre como evoluiria a linguagem oral nos quase cem anos que separam nossa realidade e o período em que se passa a história. O escritor soube ser sutil quando necessário para se esbaldar quando há oportunidades. Nas conversas do dia-a-dia, entre adultos, pouco mudou, com apenas o acréscimo de um ou outro neologismo. O mais utilizado é um enigmático "bandjo" que parece ter substituído completamente expressões como "cara", "malaco" ou "malandro". Já nos momentos em que surge algum adolescente no enredo, começa um verdadeiro dilúvio de gírias, felizmente traduzidas pelo contexto. Detalhes pequenos mas que tornam uma trama de FC bem mais plausível.
Outro fator que ajuda a garantir a credibilidade do texto é a construção dos personagens, principalmente do protagonista. Tomaz Rizzatti não é só o detetive com um problema grave de saúde, recém-divorciado - ele se recusa a pronunciar o nome da ex-mulher, prefere chamá-la pela alcunha de Desgraçada - e fã de todo gênero de quadrinhos antigos imaginável. Já que somos testemunhas de seus pensamentos, flagramos suas reflexões sobre o assunto que dá título ao romance: qual a quintessência, a natureza mais profunda do mal? Qual o papel do livre arbítrio, do poder de decisão, nas nossas escolhas morais? Diante das atrocidades que é obrigado a investigar, algumas tão chocantes quanto o massacre das dezenas de pessoas na abertura do livro, esse é o tipo de questionamento a martelar o cérebro já atingido pela tal epilepsia do lobo temporal. Acaba sendo um contraponto interessante ao cinismo canalha da maioria de seus colegas da ficção o comportamento deste detetive tão preocupado com o real alcance do domínio do mal.
É bom avisar: tais questionamentos são sempre feitos a partir de um ponto de vista laico, não religioso. Até para caracterizar tal visão de mundo agnóstica, o autor reitera constantemente que em seu universo as religiões são coisa do passado. Em diferentes trechos da obra, referências bastante óbvias a mitologias greco-romana e indiana, além do próprio Cristianismo, passariam despercebidas aos personagens caso eles não as pesquisassem na ultranet, o próximo passo evolutivo de nossa internet contemporânea. Tudo bem, mas em um ponto isso fica pouco crível, quando uma das referências está ligada à identidade do já citado terrorista internacional. Que a população comum não perceba a ligação seria bem razoável de se acreditar, mas quando falamos de um agente que está na caçada há anos e que, obrigatoriamente, já teria trabalhado na formulação do perfil psicológico de sua presa, isso não soa muito lógico. Este, porém, é um dos raros deslizes de uma trama muito bem trabalhada, funcionando dentro das melhores tradições dos gêneros a que está afiliada.
Com Quintessência a literatura especulativa nacional somou alguns ganhos. O Brasil foi apresentado a Flávio Medeiros Jr. um novo autor de ficção científica que garante ainda ter novas histórias para contar quando surgirem as oportunidades. Aquele clube de detetives que existe entre as ruas Morgue e Baker recebeu Tom Rizzatti como um novo embaixador brasileiro. E os mineiros ganharam um romance de FC que, mesmo com todas as influências internacionais, é tipicamente seu, no mesmo sentido que o distópico Não verás país nenhum, de Ignácio Loyola Brandão, é tipicamente paulista e o lascivo O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro, é tipicamente baiano, isso para citar apenas dois clássicos do gênero produzidos no país. Vale a pena conferir, nem que seja para tirar a limpo se, no futuro próximo, Minas vai continuar onde sempre esteve.
Serviço: Para entrar em contato com o autor utilize o email livro.quintessencia@terra.com.br
quarta-feira, 22 de agosto de 2007
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