sábado, 4 de agosto de 2007

Poltergeist cibernético

Após longo período sabático, no qual concluiu sua pós-graduação tendo como tema a ficção científica, um dos melhores escritores brasileiros deste gênero literário volta aos poucos à ativa. Prova disso é o fato de ele ter tornado disponível no banco de obras do Overmundo o livro Interface com o vampiro, premiada coletânea de contos que pode ser considerada uma das mais importantes contribuições à literatura fantástica já lançadas no país. Nesta entrevista, o carioca radicado há alguns anos em São Paulo faz um retrospecto geral da carreira; revela detalhes sobre trabalhos que estão por vir nas diversas áreas artísticas em que atua; comenta alguns aspectos do seu livro originalmente lançado no ano 2000 e revela os detalhes por trás do apelido que ganhou de um colega escritor de FC: cybergeist. Com vocês, uma interface com Fábio Fernandes:

Você está na ativa produzindo textos literários – tanto em prosa quanto em verso - e teatrais, desde meados da década de 1980. Em um balanço rápido: já foram quantas peças escritas e encenadas; quantos livros lançados; quantas traduções de romances e de contos publicadas e de quantos autores diferentes; quantos prêmios recebidos nestas primeiras duas décadas?


Nunca parei para fazer uma contagem exata: crashes em discos rígidos de vários computadores e a perda lamentável de impressos de alguns textos foram em parte responsáveis por isso. Mas creio que é mais ou menos o seguinte: tenho três peças de teatro (Polêmicas, de 1985, peça de três esquetes que ganhou um prêmio em 1986 e que teve um de seus esquetes reescrito em 1998, tornando-se a peça Vestidos brancos, encenada no Rio de Janeiro sob a direção de Luiz Armando Queiroz; Com açúcar, sem afeto, monólogo cômico encenado por mim mesmo e dirigido por Anja Bittencourt; e Ao fim do longo inverno, ainda inédita. Esta última peça é a única que tem uma temática de ficção científica (inverno nuclear), e foi adaptada para o cinema por mim, Anselmo Vasconcellos e Marco Schiavon, para ser dirigida por Emiliano Ribeiro (As meninas). Esse filme está na fase de captação de recursos.

Livros: apenas o Interface com o vampiro, em 2000 e, mais recentemente, minha dissertação de mestrado, A construção do imaginário cyber (2006). Tenho uma coletânea de microcontos completa, o Pequeno dicionário de arquétipos de massa, composto de contos escritos entre 1998 e 2003, e que, embora tenha tido vários contos publicados em várias revistas (inclusive as brasileiras Cult, Et Cetera e Ficções e a portuguesa Periférica) e sites (inclusive o Overmundo), tem sido sistematicamente recusada por editoras. Publiquei vários contos em coletâneas e uma novela meio em formato fanzine, A revanche da ampulheta. Interface e Revanche ganharam dois prêmios Argos, concedidos pela Sociedade Brasileira de Arte Fantástica.

Traduções: algo entre 60 e 70, mas realmente não tenho a conta, até porque alguns desses livros (como Bird lives, uma biografia de Charlie Parker) nunca foram publicados. Contos, entre 20 e 30, todos para a extinta Isaac Asimov Magazine, entre 1989 e 1991. Autores, muitos e variados, de Kurt Vonnegut e Gore Vidal até William Gibson e Philip K. Dick, passando por nomes menos conhecidos dos brasileiros como George R. R. Martin e Frederik Pohl. Neste momento, estou terminando a tradução de Snow crash, de Neal Stephenson, um autor pós-cyber que ainda não é conhecido do grande público, mas que é o responsável pela introdução do termo "avatar" no jargão internético e cujo Metaverso ficcional serviu de inspiração para o Second Life.

Interface com o vampiro segue o caminho de flexibilização dos direitos autorais do copyleft. No ano 2000, a obra teve uma encarnação anterior, também eletrônica, porém o acesso era cobrado e intermediado por uma antiga editora virtual. Mas, antes disso ainda, alguns dos contos já haviam saído impressos na década de 90, em fanzines. Ou seja, seu livro passou por praticamente todas as fases de uma revolução no acesso ao conhecimento. Qual é o futuro que você imagina para a indústria editorial e para os escritores, principalmente os ligados à literatura de gênero, como fantasia e FC?

Toda previsão em termos de tecnologia é perigosa, e não pode ser levada a sério - talvez por isso gostemos tanto da ficção científica, que é um território de experimentações onde podemos deixar a imaginação correr solta. A experiência com a editora digital não foi boa, porque acho que esse sistema já nasceu falho: se todo mundo pode baixar uma imensa quantidade de conteúdo de graça, por que é que vai se dar ao trabalho de pagar o que seja (e lembro que, na época, o livro custava 18 ou 20 reais, o que ainda é muito caro) por um PDF? Por melhor que seja o conteúdo, não vale tanto. O interessante é que, pouco depois do lançamento do livro, entrei no mundo dos blogs - e percebi que a maioria dos blogueiros queria era, no fundo, publicar livros de papel! Ou seja, ainda não nos libertamos do papel.

Mas eu não acho isso ruim, porque a literatura é uma mídia cujo melhor suporte ainda é o papel. Quando ela sai do papel, ou vira hipermídia ou game – até porque, se não virar, fica muito chata e malfeita – dá a sensação de que foi subaproveitada. Cheguei a pensar em fazer hipermídia há algum tempo, mas sei que ainda não explorei todas as possibilidades que as palavras têm para oferecer no simples suporte bidimensional do papel. Basta vermos o que tem sido lançado em literatura brasileira. O que tivemos de realmente revolucionário depois de Guimarães Rosa e de Paulo Leminski? Ainda existe muito chão, e, como disse Antero de Quental, é ideal ocupar estes espaços.

Em oportunidades anteriores, você já disse que pensou em voltar ao universo de alguns dos contos que formam a coletânea, especificamente o de "Um diário dos dias da peste" e "Interface com o vampiro". Tal retorno chegou a ser escrito? Existe a possibilidade de outros temas da coletânea serem revisitados, como o do conto "Em camadas"?

Esse retorno chegou a ser escrito em parte - um conto com o título provisório de "File not found" -, mas não cheguei a terminá-lo. Tive recentemente uma proposta para publicar um livro, e ofereci uma revisitação desse universo, onde eu reescreveria os dois primeiros contos e finalizaria o terceiro, mas a idéia não agradou. Quanto a outros temas da coletânea, ainda é muito cedo para falar, mas tenho pensado seriamente num livro que explore caminhos abertos não por "Em camadas" (que é um dos meus contos favoritos) mas por "M.U.A." Algumas idéias têm surgido na minha cabeça e acho que alguma coisa interessante pode surgir daí.

Há uma certa semelhança na situação vivida por seu personagem Ivan, do conto “Em camadas”, e na que vitima o protagonista de "A escuridão" de André Carneiro. Essa foi uma referência real ou a influência para o texto partiu de outras fontes? E ainda: em um comentário você chegou a dizer que a idéia para o conto partiu de uma experiência real. Poderia detalhar como foi esse ponto de partida?

Quando escrevi "Em camadas", eu tinha em mente as histórias de Robert Sheckley e os episódios de Além da Imaginação, mas não o conto do André Carneiro, apesar de eu gostar muito de "A escuridão". E o que deflagrou todo esse processo foi uma situação vivida por mim em meados da década de 1990, quando tinha acabado de me mudar para um apartamento em Botafogo, no Rio, e instalado minha primeira TV a cabo. Numa madrugada, eu estava assistindo a um filme (A vida segundo Garp) e, pouco antes do fim, a imagem simplesmente sumiu e foi substituída por outro filme (Asas do desejo, de Wim Wenders). A troca dos filmes e dos temas foi tão súbita que me deu um susto. Claro que tudo não passou de um erro da operadora, mas me deu o que pensar. Naquela semana lembro que havia acabado de escrever o conto “O artista da carne”, e tinha lido pouco antes um conto muito bom chamado "In numbers", do escritor australiano de FC Greg Egan. Todos esses fatores conjugados acabaram gerando "Em camadas".

Ainda sobre experiências de vida aproveitadas para a produção literária: quem lê "Um diário dos dias de peste" e "Interface com o vampiro" pode imaginar que se deparou com um expert em informática. A impressão se fortalece pelo fato de você ter se formado como técnico em eletrônica antes de cursar Jornalismo. Mas consta que sua experiência real com hardware não é bem assim, tanto que chegou a receber um apelido de um colega escritor de FC, Braúlio Tavares, para expressar a falta de jeito: cybergeist (literalmente, cyberespírito, mas também pode ser compreendido como "poltergeist cibernético"). O resultado prático dos textos citados são a prova da importância da pesquisa para todo escritor de FC que pretenda publicar algo mais hard, mais ligado ao mundo das ciências exatas e da tecnologia aplicada?

Na verdade, hoje eu até que aprendi um pouquinho de informática, o suficiente para não fazer mais jus ao grande e elogioso apelido do Bráulio. Mas na época, eu realmente pouco entendia do assunto: inclusive me identifiquei muito com o Gibson quando ele descreve suas reações ao usar seu primeiro computador para escrever Count zero (porque Neuromancer foi escrito em máquina de escrever).

Como tradutor, aprendi uma coisa que me ajudou e me ajuda muito na hora de escrever meus próprios textos: é muito importante pesquisar e aprender os termos corretos do que você vai traduzir - mas tão importante quanto, ou talvez mais, é conhecer bem seu próprio idioma, para que o texto pareça ter sido escrito por um brasileiro. Ao escrever uma história que exija pesquisa, mais importante que entender os mínimos detalhes do assunto é trabalhar bem a história, a linguagem e os personagens, para que a narrativa flua como se você estivesse, por exemplo, ouvindo alguém contar uma história que aconteceu de verdade. Quando você está numa roda de amigos ouvindo uma história verídica, os detalhes podem até ser fundamentais para você entender o que se passou, mas a maneira de contar é mais importante, porque se a história for boa mas o narrador for chato, não rola, não dá liga. Acho que, primeiro, o escritor de FC precisa ler muita literatura brasileira, de todo tipo, de Machado de Assis a Ana Maria Gonçalves, passando por Clarice, Jorge Amado, Paulo Leminski, Nelson Rodrigues, enfim, é um universo incrível e maravilhoso. Agora, se esse candidato a escritor for daquele que só curte ler FC, então é bom nem começar, porque não vai sair um bom trabalho.

Para encerrar o assunto sobre esses contos: em um deles aparece uma referência à companhia fictícia que se tornou marca registrada de seus textos: a Wells-Kodama. De onde veio a idéia para a concepção dela? A junção dos nomes remete mesmo ao fundador da FC moderna, H. G. Wells, e à viúva de Borges, Maria Kodama, ou há algo mais?

É exatamente o que você falou. A idéia foi um trocadilho, uma homenagem-brincadeira. Que pretendo utilizar ainda mais algumas vezes.

Por falar em Borges, ele parece ser uma referência clara em seus textos mais voltados ao fantástico. Que outros autores fizeram e fazem parte da sua lista de influências assumidas? Entre eles todos, qual a importância de William Gibson, o criador da cultura cyberpunk e que chegou a ser tema de sua pesquisa na pós-graduação?

São muitos autores. Sempre gostei de ler de tudo. Uma lista rápida, pensada de cabeça, sem ordem de importância: Borges, Cortázar, Thomas Pynchon, Donald Barthelme, William Gibson, Alastair Reynolds, David Zindell, Gene Wolfe, Machado, José de Alencar, Martins Pena, Marçal Aquino, Clarice, Jorge Amado, Osman Lins, Guimarães Rosa, Erico Veríssimo, Luis Fernando Veríssimo, e.e.cummings, Sylvia Plath, John Donne, Paulo Leminski, Yeats, Graciliano Ramos, Nelson Rodrigues, Martins Pena, Campos de Carvalho, Patricia Melo, Rubem Fonseca.

Sobre Gibson: a leitura dele, em 1989, foi um divisor de águas na minha cabeça. Eu já gostava muito de FC, mas até então eu era meio que um nerd, um legítimo nerd que, apesar de já ler bastante coisa em inglês e de curtir muita coisa que não era lida no Brasil, não entendia a FC como algo que pudesse ser realmente revolucionário. Claro, já existia a New Wave britânica, mas eu só fui ler esse pessoal depois de ler os cyberpunks. Eu me identifiquei de cara com a atitude punk sem deixar de ser inteligentes: era possível ser um nerd punk sem ser um geek, era possível fazer algo que não se limitasse a robôs e espaçonaves (coisa que, aliás, a leitura dos cyberpunks me travou para fazer; confesso que sempre quis escrever uma space opera ambientada no futuro distante, mas nunca vi futuro para isso no Brasil e não sei se vou conseguir escrever isso algum dia).

Quanto ao seu relacionamento com a academia, como a produção de escritores de FC, nacionais e internacionais, é encarada hoje no mundo acadêmico brasileiro? Você teve alguma dificuldade em propor seu tema para dissertação de mestrado na universidade e, principalmente, em encontrar outros pesquisadores para orientá-lo e para participar de sua banca?

Felizmente, não tive nenhuma dificuldade. Gibson e Stephenson são escritores lidos na academia, pelo menos no círculo de acadêmicos que estuda novas tecnologias. Minha orientadora de mestrado, a net artist Giselle Beiguelman, me deu muito apoio para escrever sobre Gibson. Não encontrei nenhuma dificuldade, pelo contrário: antes de mim, já trilharam essa seara pesquisadores incríveis, como Gilbertto Prado, André Lemos e Adriana Amaral, com os quais tenho o prazer de travar ótimos diálogos. E, pelo que pude conferir a partir da publicação da minha dissertação, vem mais gente por aí com material interessante para discutir FC. Na minha tese de doutorado, que devo defender até o final de 2007, continuo um pouco desse diálogo com a FC, mas não tratando especificamente do Gibson, e sim autores que exploraram a questão do pós-humano no futuro de diferentes maneiras, como Arthur C. Clarke, Stanislaw Lem, Richard K. Morgan, H.G. Wells e mais alguns.

Você acompanha o que vem sendo escrito atualmente em termos de FC no Brasil?

Infelizmente, não tenho acompanhado a produção atual. Parei na época da Intempol, porque foi justamente quando optei conscientemente por fazer uma espécie de "sabático" de ficção científica brasileira, basicamente porque eu precisava me aprofundar nos cyberpunks e em William Gibson para o mestrado.

Praticamente não escrevi FC nesse período: o que fiz foi terminar o Pequeno dicionário e batalhar pela sua publicação em revistas e como livro em editoras. Depois me formei no mestrado e atualmente estou dando aulas e traduzindo. E tive de mudar o eixo das minhas leituras de forma radical, o que inviabilizou um contato com publicações independentes.

Para finalizar: quais são seus projetos para o futuro nessas áreas todas em que atua?

Traduções: acabo de terminar uma tradução de ficção científica mas não estou autorizado a dar o nome do livro; deverá sair no segundo semestre. Agora estou traduzindo Snow crash e até o ano que vem tenho programada uma nova trilogia de fantasia de Shannara, de Terry Brooks, a sair pela Bertrand Brasil. Traduzi uma trilogia do mesmo autor há alguns anos e parece que ela está fazendo sucesso entre os fãs brasileiros.

Livros: uma editora me encomendou um livro de ficção científica, e comecei a escrever uma história que está com cerca de 120 páginas, mas ainda não fechamos contrato, por isso não posso falar mais a respeito. Os projetos mais concretos que tenho no momento são uma noveleta de 30 páginas que escrevi para o site mojobooks baseada em Charlotte Sometimes, uma história a la Neil Gaiman que publiquei no ano passado num número especial de ficção científica da revista Ficções. A noveleta tem a ver com um dos álbuns da minha vida, Staring at the sea, da banda The Cure (mas não tem nada a ver com ficção científica, apesar de Charlotte Sometimes ser ambientada num universo fantástico). Essa noveleta ainda não recebeu a aprovação dos editores, mas se eles toparem, pode ser que saia (em PDF gratuito) até o final do ano. Se não toparem, tudo bem; o original tem mais de 100 laudas e tenho a intenção de batalhar publicação assim que terminar a história.

Por outro lado, estou finalizando um livro de não-ficção para a Editora José Olympio: trata-se de um pequeno dicionário de verbetes sobre personagens marcantes da literatura brasileira. É um projeto que durou dois anos e me deu muito prazer - e me fez voltar a ler literatura brasileira em profusão, algo de que eu estava sentindo saudades (aliás, foi por isso que acabei criando o blog O Viajante Imóvel para o Overmundo). Além disso, estou finalizando minha tese de doutorado, que tratará do modo de ser na cibercultura, com um foco sobre o pós-humano.

Um comentário:

Perry Rhodan disse...

A maior série de ficção científica espacial do mundo, Perry Rhodan, tem centanas de leitores que se encontram, trocam informações e debatem projetos em prol da série, na comunidade no ORKUT: PERRY RHODAN BRASIL
Participe também.
Até lá...