sábado, 4 de agosto de 2007

O homem que matou Paolo Rossi

Mesmo tendo que dividir o tempo entre as capitais do Rio de janeiro, onde nasceu, e a do Espírito Santo, onde leciona na universidade federal local, o autor de A mão que cria segue pesquisando e escrevendo histórias de ficção científica. Nesta entrevista, publicada originalmente no site omelete.com.br, ele comenta as influências literárias e quadrinhísticas de seu primeiro romance; faz um balanço sobre os quase dez anos da carreira iniciada com "Eu matei Paolo Rossi", texto que deu origem ao universo da Polícia Internacional do Tempo, ou Intempol - atualmente, enquanto o site do projeto está fora do ar, ele se mantém ocupado publicando em capítulos Reis de todos os mundos possíveis em um endereço alternativo. -; e também dá pistas sobre os próximos projetos, entre eles, a continuação para o seu primeiro romance (de quebra, chutamos e acertamos o provável título do segundo livro da série). Com vocês, a mão que escreve, Octávio Aragão.

Lembrando que no próximo ano completa uma década de seu lançamento como escritor profissional, com a noveleta "Eu matei Paolo Rossi". Você poderia fazer um rápido balanço destes primeiros dez anos como autor? Quantos textos já foram criados, quantos foram publicados em livros ou em outras mídias, como a Internet?


Pois é, quase dez anos de "carreira".

Não, dez, não. Nove. Comecei em 1998, na antologia Outras copas, outros mundos, da extinta editora Ano-Luz.

Não me considero um autor "literário", pois ainda tenho muito arroz com feijão para comer, e, talvez por causa disso, não tenho muitas histórias rolando por aí. Até tomar uma decisão e escrever algo, deixo o conceito amadurecer muito - às vezes anos - antes de pegar no papel.

O número de textos publicados é consideravelmente pequeno. Não lembro de todos, mas acho que passaram de vinte. Ou seja, uma média de dois por ano. Em livros, antologias de contos com vários autores, que são os que levo mais em consideração, foram cinco, desde a estréia, em 1998. No ano passado, fui publicado no site da revista Cult e, fora isso, alguns fanzines, prozines e e-zines. Este ano deve ocorrer uma estréia internacional. Vamos esperar para ver.

Com todo o potencial do cenário que você criou e com o final inesperado e em aberto do livro, a pergunta é inevitável: vai haver uma continuação para A mão que cria (talvez A mão que pune, para completar a citação a A ilha do Dr. Moreau?)

Meu editor, Fábio Barreto, quer uma continuação desde que leu a história pela primeira vez. E o título deve ser mesmo A mão que pune. Não sei como vou me virar, pois tenho de defender meu doutorado em junho de 2007 e o Fábio gostaria de ter o manuscrito de A mão que pune em outubro.

Vai ser um trabalho do cão, mas será divertido... tenho algumas idéias aqui na manga e acho que vão dar outras possibiidades à história. Posso adiantar que será um livro maior, um pouco mais denso, mas sem perder a ação.

Na mesma linha: o seu projeto mais conhecido é o Universo Intempol, totalmente colaborativo e multimídia, que reúne mais de uma dezena de autores do Brasil e até de Portugal para contar histórias com um núcleo ficcional em comum. A mão que cria pode seguir esse mesmo caminho ou neste caso você pretende manter a exclusividade autoral?

Não, A mão que cria é um playground particular. A Intempol é legal, porém creio que já pode andar sozinha.

Veja bem, isso não quer dizer que eu não possa voltar ao universo eventualmente. Ainda tenho uma ou duas histórias que gostaria de contar, apenas não pretendo repetir o que já fiz antes. Um shared universe é o suficiente e fico feliz em ter dado oportunidade a autores tão diversos como Hidemberg Frota, Paulo Elache, Jorge Nunes e Osmarco Valladão. Todos são excelentes contadores de histórias que estrearam profissionalmente com os contos da Intempol.

Você pode comentar algumas das obras do gênero ficção alternativa que influenciaram seu livro? O que os brasileiros estão perdendo com a ausência de títulos como Anno Dracula e Tarzan alive nas livrarias locais? Você diria que há chances desses livros serem publicados por aqui?

Tarzan alive e Doc Savage: His apocalyptic life são dois livros ótimos de autoria de Philip José Farmer, autor de bons romances de ficção científica como Mundo do Rio e Dayworld. Eles estabelecem que os dois personagens eram pessoas reais cujas aventuras foram contadas de maneira "disfarçada". Isso promoveu Edgar Rice Burroughs e Lester Dent de ficcionistas a biógrafos, e a ginástica mental de Farmer para encaixar cada um dos romances produzidos pelos dois autores - e olha, não foram poucos - dentro da história do mundo "real", ou seja, o nosso, é apaixonante, hipnótica.

Anno Dracula, do escritor e crítico de cinema Kim Newman, é divertido, uma verdadeira homenagem ao subgênero do horror. Não é tão bom quanto os livros de Farmer, por quem ele confessa ter sido influenciado. Mas tem valor próprio, por estabelecer um universo coeso, detalhado, cheio de filigranas e referências. Se Farmer foi a base de Newman, ele, sem dúvida, foi a mola-mestra por trás da concepção de A mão que cria.

Quanto ao sucesso dos livros no Brasil, eu arrisco dizer que, graças à paixão que o tema vampiresco desperta nos leitores daqui, Anno Dracula seria um tiro certeiro. Tarzan alive talvez vendesse um pouco menos, mas o personagem é forte o bastante para alavancar o produto, apesar de apelar a um público mais velho.

Quanto às chances de publicação, só Deus sabe. Nosso mercado é surpreendente no bom e no mau sentido.

Sem dúvida, para os leitores ligados aos quadrinhos, a maior referência desse gênero é a obra de Alan Moore e Kevin O'Neill: A Liga Extraordinária. Por terem produzido quadrinhos, os autores puderem ser ainda mais ousados na série e o clima de ficção alternativa não se se restringiu só a protagonistas e coadjuvantes: até a figuração e a cenografia são formadas por citações literárias do século XIX. Qual sua opinião sobre essa série e a respeito do filme que ela inspirou?

Eu fiquei um pouco decepcionado quando a primeira série saiu nos EUA. Estava esperando uma revolução, uma coisa de outro mundo. E, bem, não foi exatamente isso que eu vi. Até porque The League lança mão de algumas idéias antes ventiladas por Newman, como o confronto entre Fu Manchu e Moriarty (em Anno Dracula eles são rivais que estabelecem uma trégua para unificar o submundo de Londres contra o poderio da aristocracia vampírica) ou o desaparecimento de Sherlock Holmes (no romance de Newman, o maior detetive de todos os tempos está preso na Torre de Londres e, portanto, fora da ação do livro).

Sem falar que a tal "fidelidade" aos originais do século XIX, propalada pelos autores na época do lançamento, é discutível. O Capitão Nemo como guerreiro Sikh remete à Ilha misteriosa, mas é uma tremenda liberdade em relação a Vinte mil léguas submarinas (no primeiro romance, Nemo é descrito com características de um eslavo, provavelmente polonês. Usa botas de couro de foca e uniforme bastante condizente com um marinheiro e não aquele turbante e o modelito "hindu chic").

Outra que foge bastante à descrição do romance original é Mina Harker. Ao final de Dracula, ela não apenas está casada com Jonathan Harker, como é mãe de um menino, batizado como Quincy Harker, em homenagem ao companheiro morto na cruzada contra o vampiro. Onde foi parar esse filho, que sequer é citado na série? Não que Mina não pudesse se separar de Jonathan, ok, mas abandonar o filho seria muito fora da personalidade dela.

Curti muito mais o segundo volume, que tem idéias mais radicais envolvendo Moreau e o Homem Invisível, sem necessariamente ferir os conceitos originais dos personagens. Além do mais, aquela descrição de Marte, envolvendo personagens e fatos de diversas vertentes, é sensacional. Lembro que, quando descobri num quadrinho o Ovo de Cristal, do conto homônimo de H.G. Wells, pensei: "Aaah! Agora sim! Os caras estão mesmo botando para quebrar!".

Quanto ao filme, claro que não se trata de uma grande peça cinematográfica, mas tem lá seus maus e bons momentos. Adorei, por exemplo, o Dorian Gray, apesar de ter achado aquele Tom Sawyer uma bobagem. Adorei o design do Nautilus como um sabre - apesar de fugir léguas da descrição original de Verne, mas perdoe minha deformação profissional. Afinal, ainda sou designer e isso é o que paga minhas contas. Detestei o Homem Invisível andando pelado pelo ártico ou sendo queimado vivo (e sobrevivendo). Por outro lado o conceito de industrialização dos poderes dos personagens - graças a um hilariante "Kit Extraordinário" - é muito divertido.

Ficção alternativa, por empregar personagens alheios, é um gênero muito dependente das leis de direitos autorais em vigor em vários países. Para voltar a lembrar de Alan Moore, é só citar o sufoco que ele passou na Inglaterra para poder usar uma personagem ligada a Peter Pan em seu trabalho quase pornográfico Lost girls. Existe algum personagem que você gostaria de trabalhar em um livro mas que fica limitado pelas restrições existentes?

Não foi só com Peter Pan que o Moore teve problemas. Fu Manchu também não é citado nominalmente na League, mas pela alcunha genérica de "O Doutor". Farmer teve problemas com seu romance The adventure of the Peerless Peer - um crossover entre Tarzan e Sherlock Holmes -, em que teve de trocar o velho Lord Greystoke por Mowgli. Isso acontece com qualquer um que esteja bulindo com marcas registradas.

Exemplo bom é o da Isabel Allende e seu romance Zorro - Começa a lenda. O mascarado criado pelo escritor Johnston McCullen é uma das marcas mais bem guardadas do showbiz, mas isso não impediu que a autora fosse contratada para recontar sua origem com toda liberdade possível. Mas veja bem, ela foi contratada para o serviço...

Quanto a um personagem sobre o qual eu gostaria de trabalhar, ah, são tantos, mas tantos que dói pensar.

Houve um dia em que o escritor e compositor Bráulio Tavares fez um convite conclamando autores amigos a escrever contos novos de Sherlock Holmes, mas totalmente dentro do cânone, sem inventar nada, sem desconstruir nada, sem ridicularizar ou fazer pastiche. Na época, amarelei. Hoje, acho que toparia o desafio de participar de uma antologia sherlockiana.

Uma maneira ao menos parcial de driblar a questão dos direitos autorais são as fanfictions e os fanfilms, que normalmente são tolerados (e em alguns casos até incentivados) pelos titulares dos personagens desde que não tenham finalidades comerciais. Lembrando que A mão que cria teve uma origem fanfic, quais na sua opinião são as diferenças marcantes entre esse gênero e a ficção alternativa?

Não muitas. Acho que alguns autores de fanfics se auto-impõem rédeas curtas ou então, ao contrário, resolvem contar histórias que são o que eles queriam ver, mas que no fundo descaracterizam os personagens originais e suas premissas.

Por exemplo: li um fanfic de Arquivo X em que, ao final, Mulder e Scully iam para a cama depois de um beijo apaixonado. Bolas, aquilo era o que a autora "sonhava" que eles fizessem, mas não seria como eles, os personagens, fariam. A tensão sexual entre a dupla sempre foi óbvia, mas não era assim que os dois funcionavam. Era totalmente fora do formato e, em conseqüência, anticlimático, falso.

No extremo oposto, há vários fanfics de super-heróis que sofrem por não arriscar nada, enquanto autores profissionais, como Grant Morrison ou Garth Ennis, fazem exatamente o caminho contrário, com resultados bastante interessantes. Eu sempre penso que há pontas soltas nas origens de alguns desses personagens que nunca foram bem exploradas e que dariam muito pano para manga... tenho umas idéias e, algum dia, ainda escrevo algo a respeito.

O segredo, enfim, é o equilíbrio. Tem de ousar, mas fazer isso com conhecimento de causa dos personagens e de toda sua mitologia.

Por falar em fanfic, não há referências no livro sobre esse passado da obra. Foi uma decisão sua ou da editora não mencionar a questão? E do mesmo modo, na lista de anotações não existem citações aos vários personagens inspirados nos quadrinhos. Por que isso acontece se até obras com direitos ativos (caso dos filmes da série Alien e Sexta-Feira 13) foram listadas?

É diferente. As referências a Alien e Sexta-Feira 13 são tangenciais, mais homenagens mesmo. As outras, não.

A decisão a respeito de não se tocar nas encarnações anteriores da história foi editorial, mas eu sempre falo a respeito disso quando perguntado ou não. Nunca fugi das origens "fanfiqueiras" de A mão que cria.

Outra coisa, achei por bem não mastigar tudo para o leitor. Para você ter uma idéia, todos - eu disse "todos" - os personagens são referenciais, com duas exceções. No entanto, a maioria não está creditada nos anexos. Penso que os leitores têm de fazer uma forcinha também. Faz parte da brincadeira.

Tem quem ache que eu "esqueci" de citar alguns homenageados. Não foi o caso, homens de pouca fé... Eu apenas deixei a bola quicando na grande área. Cabe ao leitor chutar.

Houve alguma reação na comunidade ligada à ficção científica nacional por sua editora apresentar A mão que cria como o primeiro romance de ficção alternativa do Brasil. Lembrando que autores como Monteiro Lobato, Raimundo Caruso, J. J. Veiga e até Jô Soares lançaram livros que podem ser encaixados tranqüilamente no gênero, qual sua posição sobre o assunto?

Houve quem chiasse, mas isso não me incomoda, muito pelo contrário. Quero mais é que falem a respeito.

Eu mesmo cito Lobato e Veiga como precursores de peso, mas creio que a diferença crucial é que usei o termo cunhado pelo teórico francês Eric Henriet, Ficção Alternativa, e os outros nem sabiam que isso existia quando pensaram suas histórias. Ou seja, fiz de caso pensado, os outros talvez não. Ao menos, que eu saiba.

Mas honestamente, discutir isso me parece mais um caso de procurar cabelo em ovo. Por outro lado, repito: em termos comerciais, qualquer polêmica é positiva.

Voltando a falar sobre o Intempol e seus outros projetos: depois de um portal, livro de coletânea de contos e história em quadrinhos, vai vir mais alguma ação multimídia por aí? Qual a opinião predominante dos autores de ficção científica brasileiros para projetos como esse, que abrange tantos meios distintos?

As opiniões, como em tudo mais, se dividem. Há quem goste muito; existem aqueles que pensam saber como deveria ser feito, sem jamais ter tido ou a disposição ou a coragem ou a grana para desenvolver um projeto desses. E há quem simplesmente ignore (mesmo que tenham proposto vários contos e tenham sido repetidamente rejeitados).

Pretendo retomar a Intempol em 2007, se tiver tempo, e não o contrário. Mas encarei alguns problemas contratuais referentes à publicação da graphic novel [The long yesterday], que foi um bom passo, mas não o "elemento definidor", como querem alguns. Explico: o Projeto Intempol já existia antes da graphic novel e existirá depois. Se The long yesterday foi indicada a prêmios, teve muito mais a ver com a qualidade do material que com o fato de ter sido efetivamente publicado. Postular o contrário é inverter a realidade. Foi publicado porque é um bom material, não é um bom material porque foi publicado.

Acredito na força da marca e creio que ainda podemos alcançar outros públicos neste segmentado mundo do entretenimento brasileiro.

O mais engraçado é que o público de HQs ignora solenemente a versão literária, enquanto o leitor de ficção científica não ligou muito para a graphic novel e a pequena história publicada na revista Wizard. Isso tudo, porém, em lugar de ser uma complicação, pode ser mais uma vantagem. Segmentação é uma saída viável para esse tipo de produto.

O fato é que tenho uma verdadeira coleção de idéias que dependem apenas de mim, entre elas um romance de hard science fiction, que vai me tomar um tempão de pesquisa, e outras coisas que devem estar pipocando em alguns meses.

Adoro a Intempol e não vou abandoná-la, mas a vida é curta e tenho muita coisa para fazer nos próximos dez anos.

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