sábado, 4 de agosto de 2007

Sangue e silício

No mundinho dos leitores brasileiros de literatura fantástica em geral, e de ficção científica no particular, certos livros escritos por seus compatriotas carregam um status mitológico semelhante ao do misterioso Necronomicon. Alguns privilegiados juram que já os leram, citam trechos cifrados em conversas ou em trocas de e-mails e até deixam escapar detalhes da trama. Só que não emprestam, nem dizem como seus interlocutores poderiam adquirir algum exemplar, mesmo que seja de terceira ou quarta mão, rasurado, sem capa, com manchas de café espalhadas pelas páginas. Com isso, o mito em torno do objeto de culto cresce e divide o mundo entre os que, mesmo sem provas, crêem em sua existência e aqueles que, meio desdenhosamente, classificam tudo de delírio coletivo ou de teoria conspiratória. Pelo menos, agora, desde junho de 2007, uma dessas lendas urbanas passou a ter sua existência comprovada e se tornou acessível a todos os interessados - sejam crentes ou céticos -, graças à intervenção tecnológica do site Overmundo.

Interface com o vampiro e outras histórias havia sido publicado e comercializado, em formato eletrônico, pelo Writers, um projeto colaborativo para a produção de obras literárias. O problema é que, logo após o seu lançamento, no ano 2000, a editora virtual fechou, prejudicando tanto a divulgação quanto a disseminação daquele título. Somente um seleto grupo de pessoas ligadas ao meio da FC teve acesso ao e-book na época, o que lhe emprestou a mesma aura de inatingível de alguns dos livros clássicos desse gênero lançados no país em meados do século passado. O mistério só acabou porque seu autor, após ter recuperado a totalidade dos direitos autorais da obra, resolveu torná-la disponível na íntegra no Overmundo. O mérito pela iniciativa, portanto, cabe ao escritor e poeta e tradutor e dramaturgo e ator e jornalista e teórico professor e blogueiro Fábio Fernandes.

O livro é um apanhado de histórias curtas escritas entre 1989 e o ano da primeira publicação, ao todo são 11 jogadores, tal e qual nas melhores seleções. Apesar do longo tempo de produção entre um e outro desses textos, o leitor tem mais a ganhar se optar por acompanhá-los na mesma ordem com que foram dispostos nas páginas virtuais ao invés de praticar uma leitura aleatória. Interface com o vampiro tem algo em comum com discos conceituais, a exemplo do aniversariante Sergeant Pepper: a justaposição de suas faixas - ou, no caso, capítulos - empresta sentidos novos à fruição do conjunto. Em alguns casos de maneira explícita, em outros, insinuada, a ordem com que o autor organizou as peças de sua obra sugere relações entre as diversas histórias, fortalecendo o livro como um todo, mais que a simples soma randômica de suas partes. Outro ponto em comum com o famoso álbum dos Beatles, é o gosto por harmonizar cultura erudita e biscoito fino para as massas, terreno pantanoso que costuma engolir muitos de seus exploradores.

Já que a ordem escolhida para a apresentação foi aqui elogiada, não sejamos contraditórios; façamos alguns comentários a respeito dos contos na mesma sequência com que eles entram em campo.

"O artista da carne (uma párabola)" - Interface com o vampiro começa com a história de um... vampiro. Daqueles clássicos, com caninos proeminentes e gosto por sangue. Mas estamos no século XXII, a existência desses seres é reconhecida e até tolerada. O protagonista, sem nome, por exemplo, só se alimenta em bancos de sangue autorizados. Cansado da solidão de uma vida que se estendeu por mais de 200 anos, ele faz uma encomenda ao personagem que dá título ao texto: quer que o Artista da carne providencie o clone de uma mulher que conheceu no passado, antes da opção pelo vampirismo. Narrativa econômica e minimalista ao extremo.

Trecho: "Os meses passam, e tudo continuou perfeito. O vampiro desconfiou: a experiência lhe ensinara que nada continuava perfeito".

"Em camadas" - Existe um texto que é praticamente unanimidade entre os críticos quando perguntados a respeito do que existe de melhor em termos de ficção científica no Brasil. Com justiça, o escolhido é "A escuridão", noveleta escrita em 1963 pelo poeta e decano da FC nacional André Carneiro. Trata de um mundo em que todas as fontes de luz - do sol ao fogo, das lâmpadas às estrelas - vão lentamente se extinguindo, deixando a humanidade, simbolizada por um homem solitário chamado Wladas, totalmente entregue às trevas. O segundo conto da coletânea de Fernandes guarda semelhanças e qualidades que permitem a comparação com o clássico do gênero nacional. O protagonista aqui recebeu o nome de Ivan, aparentemente em homenagem a outro escritor brasileiro de ficção científica Ivan Carlos Regina (um paulista cujos textos também podem ser lidos em alguns sites), a quem a história é dedicada, ao lado do americano Philip K. Dick (autor que já foi traduzido no Brasil por Fernandes, exemplo mais recente, o livro Valis). Aos poucos, Ivan percebe uma série de estranhos fenômenos: primeiro são estações de rádio que aparentemente começam a sofrer interferências, como se as frequências estivessem sobrepostas, e em seguida, fitas de vídeo e de aúdio também dão sinais do mesmo tipo de problema. Em um crescendo rápido, as falas e os idiomas das pessoas, textos de livros, o sabor dos alimentos, os sonhos, as imagens, as impressões táteis, tudo enfim, vira um absurdo sinestésico, se misturando em um amálgama de realidades. O efeito do conto é pertubador. Apesar do ritmo e andamento serem perfeitos, faz o leitor imaginar o que aconteceria se o autor o trabalhasse na forma de um romance à parte.

Trecho: "É como se tudo no universo existisse em camadas, e agora elas estão se interpondo umas no meio das outras, invadindo os espaços alheios, acelerando a entropia, antecipando um novo Big Bang".

"A conta, por favor (ou Salvador almoça no Antiquarius)" - Basicamente, uma piada corriqueira ganha ares de conto fantástico. Escrito com estilo, o texto narra, em primeira pessoa, a refeição que um homem de tapa-olho faz em um restaurante caríssimo. O conto é dedicado a outro escritor brasileiro, Victor Giudice (1934-1997).

Trecho: "Os mais endinheirados sempre trazem um enfermeiro a tiracolo para servir a comida na boca. Pelo menos foi o que vi há um ano, da primeira vez em que vim. Este é o meu segundo jantar aqui. E provavelmente o último. É tudo muito caro hoje em dia. Por isso saboreio o quanto posso".

"Falange vermelha" - Este é um caso em que a justaposição dos contos provoca uma sensação de que tudo pode fazer parte de um contexto mais amplo. Lido isoladamente, o quarto texto de Interface com o vampiro e outras histórias, bastante curto, aparentemente não faz parte de nenhum gênero da literatura fantástica. Parece mais um pequeno tratado naturalista sobre um homem que teve um dedo decepado (ou ainda, um homem que decepou o próprio dedo). Mas quando lido em conjunto com aquele que o antecede, o efeito é de algo bem maior.

Trecho: "No instante do corte, é como quando você corta uma fatia de queijo, só que o queijo é você. Você sente a faca deslizar pela carne, e é tão palpável essa sensação que a impressão é de que você também sente os nervos sendo cortados. Mas é só impressão: você só conseguiria sentir um corte a esse ponto se a faca estivesse muito cega. Porque se estiver bem afiada você não sente quase nada".

"M.U.A." - Início dos anos 80, Ramón e Renata são dois jovens que estão prestes a se casar no Rio de Janeiro quando o rapaz simplemente desaparece. Ele só volta a dar sinal de vida seis anos depois, reaparecendo de súbito na frente de sua ex-noiva para lhe contar uma história absurda. Com uma engenhosa incursão pelas Leis de Newton (as letras do título são a sigla de movimento uniformemente acelerado) usadas para explicar fenômenos da quarta dimensão, Fábio Fernandes criou uma bela história de personagens palpáveis envolvidos em uma situação surreal. Digno dos melhores momentos de um Além da Imaginação, até pela reviravolta do final.

Trecho: "Isso começou a acontecer uns seis meses antes do dia do casamento. Eu comecei a ter brancos estranhos. Atravessava uma rua de manhã, e chegava do outro lado à tarde. Entrava na cozinha à noite e voltava para a sala ao meio-dia".

"Se um viajante a bordo de um disco..." - Outro exemplo de texto curto que parece ter tido origem em uma piada ampliada. Exercício de estilo em narrativa de segunda pessoa sobre uma vítima de rapto espacial. O que os alienígenas poderiam querer com uma cobaia quase cega de tão míope? A dedicatória, desta vez, foi para dois autores internacionais: Ítalo Calvino, nascido em Cuba mas considerado um dos maiores escritores italianos (de quem Fernandes tomou emprestado o título do conto), e H. G. Wells, o inglês que é um dos fundadores da moderna FC.

Trecho: "O medo que você esperava sentir não é tão grande. Tantos filmes de ficção científica tinham que servir para alguma coisa, afinal".

"Declínio e queda" - Sucessão aparentemente interminável de desgraças na vida de Guilherme, por certo o mais azarado jornalista carioca de todos os tempos. Entre um ônibus e outro, ele tem que enfrentar funcionários burocratas e grevistas, sofrer com múltiplos assaltos e arrastões, levar tiros, facadas e pancadas, aguentar chuva, fome e dor. Crueldade autoral na última potência.

Trecho: "Quando salta no ponto final, está chapado, anestesiado, cansado de tudo, os nervos esticados como cordas finíssimas, prontas para se romper com a menor tensão".

"Não temos tempo" - Mudança de cenário: sai o Rio de Janeiro, terra natal do autor que atualmente mora em São Paulo, e entra Itabirito, cidadezinha mineira, entre Belo Horizonte e Ouro Preto, como lembra o narrador do conto. O narrador em questão é um adolescente, cheio de citações cinematográficas na ponta da língua, que escolhe o dia de um baile para escapar com sua namorada. Só sabemos que a dupla foge do que o rapaz identifica simplesmente como eles.

Trecho: "Torci o braço dela e respondi: isto não é cinema mesmo não, sua tonta, é pior, é a realidade".

"O poder e a glória" - Novamente, um texto reforça o que veio antes, aparentando ligação de causa e efeito. Neste conto, um personagem não identificado está sozinho, elaborando teses cada vez mais complexas sobre o mundo que o cerca. A impressão é a de uma resposta ao texto anterior, "Não temos tempo" e, talvez, até mesmo a "Em camadas".

Trecho: "O todo é como um número infinitesimal de folhas transparentes superpostas. Unidas elas se tornam opacas. Obstáculos".

"Um diário dos dias da peste" - Fábio Fernandes entra aqui em um cenário típico da ficção científica, computadores adquirindo consciência, formando o princípio de uma inteligência artificial (IA). Voltamos ao Rio de Janeiro. Paulo é formado em Administração, mas já há quatro anos trabalha como técnico de informática e passa a enfrentar uma crise sem precedentes relacionada às máquinas que ganha a vida consertando. Computadores começam a apresentar um comportamento bizarro, comportando-se como se estivessem vivos, xingando seus proprietários com mensagens nos monitores, se recusando a serem desligados. Em seu diário, digitado quando viável, manuscrito quando não é mais possível controlar os PCs, o personagem relata os efeitos do que a imprensa apelidou de Infodemia, uma doença espalhada pela rede a todos os processadores do mundo.

Trecho: "Meus olhos estavam colados no botão da CPU. Apertei-o e só então levantei a cabeça. As letras continuavam na tela. Desliguei o monitor, o estabilizador de tensão e puxei o fio da tomada. Abri a pasta e peguei um par de luvas de látex e a chave Phillips. Às vezes é preciso destruir o coração do monstro".

"Interface com o vampiro" - No conto que dá nome ao livro, a relação direta com o antecessor é a mais explícita. Na realidade, somando ambos, "Um diário dos dias da peste" e "Interface com o vampiro" representam quase a metade das 124 páginas do livro digital e formam aquela que, muito provavelmente, é a melhor história cyberpunk já escrita no Brasil. E é bom lembrar que o autor é um especialista no assunto, tendo lançado neste ano um ensaio teórico sobre o assunto: A construção do imaginário cyber – William Gibson, criador da cibercultura. Oito anos após o evento que levou o nome de Despertar, ou seja, do surgimento das primeiras IAs (ou Inteligências Construídas, como preferiu o autor), Paulo, auxiliado por seu computador consciente Anjo 45, tem que enfrentar as consequências dos novos relacionamentos entre homens e máquinas.

Agora ele é um importante agente de segurança neste novo mundo tecnológico, trabalha para a multinacional Wells-Kodama, corporação fictícia que surge em vários textos de Fábio Fernandes, desde suas colaborações para o projeto Intempol até uma fanfic que o autor criou para o site Hyperfan sobre Grimjack, personagem dos quadrinistas John Ostrander e Timothy Truman. Se a ameaça anterior era a Infodemia, agora o problema é ainda maior: a humanidade está sendo contaminada por vírus cuja origem vem a ser as cada vez mais necessárias máquinas sapientes. Progredindo em um estilo de escrita cada vez mais minimalista (que ecoa o utilizado na abertura do livro), o conto chega ao fim abrindo várias pontas. O diálogo final entre Paulo e Anjo 45 tanto pode lembrar os leitores da obra mais famosa da escritora de horror Anne Rice (cuja paródia no título do livro de Fernandes é evidente), quanto das cenas clássicas de Hal 9000 e Dave Bowman em 2001 – Uma odisséia no espaço. De quebra, ainda é possível se especular a respeito de uma ligação maior entre este conto e aquele que abre a coletânea, "O artista da carne", o que nos dá um looping narrativo e tanto.

Trecho: "Cogito ergo sum é muito limitador, Paulo. Queremos sair da teoria e entrar na prática. Queremos sentir".

Assim sendo, é desta forma que chegamos ao fim - e podemos até voltar ao começo - deste clássico recente da ficção científica nacional, finalmente disponível a todos os leitores potenciais nele interessados. O fato de que tal acontecimento tenha se dado em junho de 2007, a mesma data em que se encerra o último conto da coletânea, deve ser apenas coincidência. Para nós, leitores, o mais importante é que Interface com o vampiro e outras histórias esteja acessível a qualquer hora e em qualquer lugar, com a capa intacta e sem rasuras nem manchas de café espalhadas por suas páginas. Agora já posso voltar a procurar por uma edição do Necronomicon.

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